A boa-fé contratual no novo Código Civil
Sílvio de Salvo Venosa*
A questão da boa-fé atine mais propriamente à interpretação dos contratos. O código italiano já estabelecera que, no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, as partes devem portar-se com boa-fé (artigo 1.337). Esse dispositivo serviu, certamente, de inspiração para nosso novo Código Civil. O aspecto guarda muita importância com relação à responsabilidade pré-contratual.
Coloquialmente, podemos afirmar que esse princípio se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do contrato. Isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais.
Importa, pois, examinar o elemento subjetivo em cada contrato, ao lado da conduta objetiva das partes. A parte contratante pode estar já, de início, sem a intenção de cumprir o contrato, antes mesmo de sua elaboração. A vontade de descumprir pode ter surgido após o contrato. Pode ocorrer que a parte, posteriormente, veja-se em situação de impossibilidade de cumprimento. Cabe ao juiz examinar em cada caso se o descumprimento decorre de boa ou má-fé. Ficam fora desse exame o caso fortuito e a força maior, que são examinados previamente, no raciocínio do julgador, e incidentalmente podem ter reflexos no descumprimento do contrato.
Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. É ponto da interpretação da vontade contratual.
Diz-se que o novo Código Civil constitui um sistema aberto, predominando o exame do caso concreto na área contratual. Trilhando técnica moderna, esse estatuto erige cláusulas gerais para os contratos. Nesse campo, realça-se o artigo 420, e especificamente o artigo 421 que faz referência ao princípio basilar da boa-fé objetiva, a exemplo do código italiano acima mencionado: “Os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Essa disposição constitui modalidade que a doutrina convencionou denominar cláusula geral. Essa rotulação não nos dá perfeita idéia do conteúdo. A cláusula geral não é, na verdade, geral. O que primordialmente a caracteriza é o emprego de expressões ou termos vagos, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um sentido norteador no trabalho de hermenêutica, de interpretação. Trata-se, portanto, de uma norma mais propriamente dita genérica, a apontar uma exegese.
A idéia primordial é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé. Na verdade, levando-se em conta que o direito gira em torno de tipificações ou descrições legais de conduta, a cláusula geral traduz uma tipificação aberta.
Como o dispositivo do artigo 421 se reporta ao que se denomina boa-fé objetiva, é importante que se distinga da boa-fé subjetiva. Na boa-fé subjetiva o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
A boa-fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
Há outros dispositivos no novo código que se reportam à boa-fé de índole objetiva. Assim dispõe o artigo 112: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Ao disciplinar o abuso de direito, o artigo 186 do novo estatuto estabelece: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo. excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Desse modo, sob o prisma do novo código, há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (artigo 112); função de controle dos limites do exercício de um direito (artigo 186) e função de integração do negócio jurídico (artigo 421).
Em qualquer situação, porém, não deve ser desprezada a boa-fé subjetiva, dependendo seu exame sempre da sensibilidade do juiz. Não se esqueça, contudo, que haverá uma proeminência da boa-fé objetiva na hermenêutica, tendo em vista o novo descortínio social que o novo Código Civil assume francamente. Nesse sentido, portanto, não se nega que o credor pode cobrar seu crédito; não poderá, no entanto, exceder-se abusivamente nessa conduta porque estará praticando ato ilícito.
Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional), a boa-fé objetiva é fator basilar de interpretação. Dessa forma, avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do direito ao caso concreto. Caberá à jurisprudência definir o alcance da norma dita aberta do novo diploma civil, como aliás, já vinha fazendo como regra, ainda que não seja mencionado expressamente o princípio da boa-fé nos julgados. É no campo da responsabilidade pré-contratual que avulta a importância do princípio da boa-fé objetiva, especialmente na hipótese de não justificada conclusão dos contratos.
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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil – sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados – Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes
Atualizado em: 1/4/2003 11:49
Sílvio de Salvo Venosa
Sócio consultor de Demarest Advogados, Está no escritório desde março de 1996. Foi juiz no estado de São Paulo, tendo se aposentado como desembargador. Autor da coleção de direito civil, atualmente em 5 volumes, na 20ª edição e várias outra obras. Direito Empresarial. Lei do Inquilinato Comentada. Introdução ao Estudo do Direito – Primeiras Linhas, entre outras.