Greve dos servidores
Raquel Cavalcanti Ramos Machado*
A greve de alguns servidores federais, como policiais, procuradores da Fazenda e advogados da União, demonstra uma certa crise de governabilidade no país. Sim, porque as reivindicações de agora já eram feitas pelos servidores desde o início do Governo Lula, e a greve apenas significa que os servidores não mais acreditam que o Governo vá cumpri-las espontaneamente. Ou seja, essa greve representa, sobretudo, patente e assumida falta de confiança no Governo. E vejam, logo por parte de quem? Justamente daqueles que, de modo mais direto, estão encarregados de defendê-lo.
Tal dado demonstra, por isso, ainda que o atual Governo não está sendo inteligente, pois um dos maiores passos para garantir uma boa administração é exatamente propiciar um ambiente de trabalho agradável e dar estímulo, ainda que psicológico, àqueles de quem se serve.
Por outro lado, essa crise deixa ver aos servidores federais quão falível e injusto pode ser o Governo. Como se sabe, muitos servidores, policiais federais e advogados públicos, “vestem a camisa” do Governo e defendem-no a qualquer custo, mesmo nos casos em que é evidente a prática de ilegalidades, como no caso de procurador da Fazenda que sustenta a possibilidade de cobrança de tributos de forma flagrantemente ilegal. E mais. Não só o defendem no cumprimento do dever formal de suas funções, como o defendem com paixão, e, com freqüência, invocam o “interesse público” para tentar justificar a violação a direitos do cidadão e, assim, atribuir um pouco de legitimidade ao ato respectivo.
Mas crises como esta demonstram que esse tipo de defesa não deve ser empreendida, pois tanto o Governo não reconhece esse esforço extra, como porque – e isso é o mais importante – agora que pretendem ver seus justos interesses por uma remuneração mais digna serem atendidos, os servidores sabem e compreendem efetivamente que, em regra, os atos do Governo não são guiados pela consecução do interesse mais justo ou mesmo do interesse público. Com efeito, o valor que deixará de ser utilizado para aumentar os vencimentos dos servidores não será, por exemplo, destinado ao atendimento dos necessitados da chuva ou a outro fim social. Tal valor provavelmente se perderá, como no caso de considerável parte das receitas públicas, no pagamento de juros ou em algum labirinto de projetos não realizados. E, de qualquer sorte, tais servidores – policiais, procuradores e advogados da União – devem agora estar percebendo que o “interesse público” de utilizar os recursos públicos para outros fins, ainda que mais nobres, não justifica o desrespeito aos direitos individuais dos cidadãos, sejam eles contribuintes, sejam servidores públicos com vencimentos defasados.
Tal crise, portanto, deve ser tomada como reflexão por parte dos servidores para que se conscientizem de que a defesa do Governo deve ter como limite último o respeito à Constituição Federal e deve ser realizada sem paixões por um ideal social que não existe e que, em verdade e em regra, é usado muitas vezes apenas como pretexto para a violação de direitos e garantias individuais. Como afirma o prof. Hugo de Brito Machado em frase que não canso de citar porque a percebo, a cada dia, mais pertinente à construção de uma democracia efetiva, é preciso ter em mente que “autoridades são apenas alguns e durante algum tempo, enquanto cidadãos somos todos nós, e durante toda a vida.”
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* Advogada e membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários
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Atualizado em: 22/3/2004 07:35
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.