Os Juros legais: para uma interpretação do art. 406 do Código Civil   Migalhas
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Os Juros legais: para uma interpretação do art. 406 do Código Civil – Migalhas

 

Os Juros (moratórios) legais: para uma interpretação do art. 406 do Código Civil

Judith Martins-Costa*

Poucas regras do novo Código Civil têm suscitado tanta polêmica quanto a do art. 406. Por detrás dessa regra subjazem as montanhas submersas da milenar timagem30-11-2021-08-11-03radição do combate à usura, os revoltosos mares da economia mundializada, a complicada transposição de conceitos da economia para o Direito e a compreensão teórica do novo modelo jurídico proposto à nossa consideração pelo Código de 2002. Essas breves linhas têm como objetivo tão-somente evidenciar esses dois últimos aspectos.

Em primeiro lugar, é preciso ter presente, para além do conceito jurídico de juros como “frutos civis” do capital, a idéia econômica de “juros reais”, assim adjetivados em norma constitucional. É preciso também compreender que o novo Código – considerado como uma estrutura de conexões inter-sistemáticas – enseja a busca de um conceito de juros que não é meramente formal ou descritivo, mas substancial ou material, derivando do tratamento que lhe é conferido pela ordem jurídico-econômica globalmente considerada.

Nessa perspectiva, o novo Código já não acolhe – como o Código de 1916 – um tratamento micro-jurídico dos juros.Essa era a forma tradicional, na qual o regramento da estipulação de juros (fosse por meio de leis restritivas, fosse de leis permissivas), caracterizava-se por tentar um equilíbrio entre os interesses particulares dos sujeitos envolvidos na relação contratual. Consoante o tratamento micro-jurídico, “o espectro da análise legislativa restringia-se sempre às operações unitariamente consideradas, não envolvendo qualquer ponderação sobre os seus reflexos na economia global da sociedade”. (Assim, ANDRADE, Roberto Braga. A Limitação Constitucional da Taxa de Juros Reais: Gênese, Fundamentos e Regime Jurídico. Belo Horizonte, 1991, inédito, p. 7). Em outras palavras, os juros eram vistos, fundamentalmente, na relação intersubjetiva e a coibição dos juros usuários era tratada como uma questão de justiça comutativa.

Com o crescimento do planejamento econômico, a inserção, nas Constituições, da expressão “ordem econômica” e uma diversa forma de codificar – que não considera o Código sob a ótica da razão monológica -, a estipulação de juros já não é tratada micro-juridicamente, “e sim macro-juridicamente, como elo de uma cadeia de operações capaz de irradiar efeitos positivos ou negativos sobre todas as engrenagens do processo econômico – produção, comercialização e consumo” (ANDRADE, Roberto Braga, op. Cit., p. 38-39). Compreende-se que o tratamento dos juros tem direta relação com o desenvolvimento do país, com o crescimento da sua atividade produtiva ou, contrariamente – se os juros são excessivamente altos – com o empobrecimento e com as dificuldades da atividade produtiva, pois é favorecida a especulação e a roda da “ciranda financeira” põe-se a girar em detrimento da produção. Assim, se alcança a compreensão que o tema dos juros não encontra lindes meramente nos interesses interindividuais envolvidos em determinada relação contratual: diversamente, estão em jogo interesses transindividuais e metaindividuais.

Essa observação é importante para que não se veja no art. 406 do novo Código a mera transposição – em parte, alterada – dos arts. 1.062 e 1.063 do Código de 1916. O que muda, e mais do que o enunciado da regra, é a sua pré-compreensão. No tratamento dos juros resta evidente a extremada ligação com a Economia, considerada globalmente, e com as funções políticas da Economia.

A extremada ligação entre Economia e Direito que permeia a história dos juros tem um dos seus muitos pontos de contato na idéia de “juros reais”, expressão introduzida pelo art. 192, § 3° da Constituição Federal, estando no centro da polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal na Adin n° 4-7 – DF, que versou sobre a interpretação e o alcance do referido dispositivo constitucional. Muito embora a regra constitucional verse os juros compensatórios (cuja finalidade é diversa da espécie de juros tratados no art. 406 do Código, quais sejam, os juros legais moratórios), o certo é que a Constituição adjetivou os juros, sejam quais forem, utilizando a expressão “real” para deixar claro que a taxa de juros real é a parcela da taxa de juros que excede a taxa de inflação de um determinado período e que tem como fim remunerar o dinheiro, abrangendo “o elemento de risco e os custos da transação ou remuneração do intermediário” (GISCHOW PEREIRA, Sérgio, in A Luta Contra a Usura, Graal, p. 64,).

A exclusão de qualquer parcela referente à correção monetária diferencia o juro real do juro calculado segundo o “valor nominal” que é o valor tal e qual se apresenta, traduzindo um “juro aparente, consoante expressou o Ministro Paulo BROSSARD DE SOUZA PINTO, na mesma Adin n° 4-7, verbis: “Por isto se diz juro real; é o juro propriamente dito e não juro aparente; se, indiscriminadamente, se englobasse numa só verba o juro e o que seria apenas e tão somente atualização da importância mutuada, a soma cobrada não seria de juro; embora com esse rótulo, não se trataria de juro real. Ele estaria inflado com parcela que não seria juro”. O valor real, diferentemente, é o valor nominal deflacionado (se houver inflação) ou inflacionado (se houver deflação). Como averbou com notável simplicidade o Ministro Carlos Velloso, “os juros reais são juros deflacionados, são os juros que se calculam desprezando-se a parcela referente à correção monetária”.

Ora, tendo a Constituição adjetivado os juros, como gênero, não há como pretender que o Código, ao dispor sobre espécie (juros legais moratórios) trate de coisa diversa, de um juro que seja “aparente” ou “irreal” na sua função de “fruto civil” do capital. Portanto, para examinar a constitucionalidade (ou não) do emprego da taxa SELIC, é preciso ter claro que os juros legais moratórios são, também (ou devem ser) “reais”.

Parece haver já consenso no fato de entender-se que, segundo o STF, o art. 192 da Constituição diz respeito às entidades integrantes do Sistema Financeiro Nacional, e estas estão livres da imposição de limites, salvo se sobrevier lei complementar (o que não é o caso do Código Civil, lei ordinária). Por lógica conseqüência, há de se concluir que há uma cisão ratione personae no que concerne à fixação da taxa de juros: de um lado, tem-se em vista disciplinar a situação das entidades integrantes do Sistema Financeiro Nacional; de outro, as que não integram esse sistema. Portanto, a regra do art. 406 não tem incidência nas relações entre particulares e instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, mas, tão somente, nas relações interprivadas em que não esteja, na posição ativa ou passiva, ente integrante do Sistema Financeiro Nacional.

Já não há consenso, porém, no que toca ao conteúdo material do art. 406, pois, atualmente, para a mora no pagamento dos tributos federais utiliza-se uma taxa flutuante, também sujeita às injunções do mercado, a chamada “taxa SELIC”. Para saber se o Código determina a remissão a essa taxa, ou se o art. 406 está a merecer interpretação que o harmonize com o sistema jurídico integralmente considerado (o que dará efetividade ao Código como uma estrutura de conexões intersistemáticas) é necessário desvendar o funcionamento da taxa SELIC, para saber se constitui, ou não, uma taxa de juros adstrita ao patamar dos “juros reais” .Se não o for, será preciso buscar, no ordenamento jurídico, solução harmoniosa entre a regra do Código Civil e o conceito constitucional de “juros reais”.

Dito de outro modo: o art. 406 está conectado à idéia de “juros reais”. Assim, para o cálculo dos juros legais moratórios, deve ser utilizada taxa empregada para a cobrança dos juros de mora devidos à Fazenda Nacional desde que essa taxa seja adstrita aos juros reais. Portanto, o emprego de qualquer taxa que englobe mais do que juros reais, ou coisa diversa do que os juros reais, será inconstitucional, contrariando a eficácia inibitória`do art. 192, § 3° .

Relembre-se: juro real é o juro nominal deflacionado, ou seja, o juro excedente à taxa inflacionária. A taxa SELIC (Taxa Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia- SELIC) – fixada por ato unilateral do Poder Executivo através do Conselho de Política Monetária do Banco Central(COPOM) -, é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável, em operação financeira com cláusula de recompra. É uma taxa que reflete a remuneração dos investidores pela compra e venda de títulos públicos. Portanto, é uma “taxa flutuante”, determinada exclusivamente pela relação entre o mercado (“investidores”) e o Governo, servindo para mensurar a remuneração de títulos públicos.

O problema está em transformar a taxa SELIC em taxa de mensuração de juros por mora. Como desvendou o STJ (no RESP 215881/PR – Rel. Min. FRANCIULLI NETO, in DJ de 19.06.2000) na taxa SELIC não está embutido apenas o juro real, mas também a correção monetária, e, “mesmo nas hipóteses em que não há adição explícita de correção monetária e Taxa SELIC”, esta contém “embutida fator de neutralização da inflação”, na medida em que “é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável em operação financeira com cláusula de compromisso de recompra e não sobre a diferença entre o valor de compra e de resgate dos títulos”, refletindo “a remuneração dos investidores pela compra e venda dos títulos públicos e não os rendimentos do Governo com a negociação e renegociação da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi)”.

Como se vê, em nenhuma hipótese a taxa SELIC refletirá a “taxa de juros reais”, de modo que não serve para os fins do art. 406. O próprio sistema oferece, contudo, solução para a aparente lacuna, na medida em que o parágrafo 1° do art. 161 do Código Tributário Nacional tem critério indicativo da taxa de juros devidos na hipótese de haver mora no adimplemento de impostos. Essa regra determina a aplicação de juros de mora à razão de 1% ao mês. Estes são os juros prescritos em matéria tributária, e prescritos por lei, e não por mero ato administrativo, ato unilateral do Poder Executivo. Relembre-se que a taxa SELIC pode ser fixada não só pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (COPOM), pois esse Comitê pode delegar ao Presidente do Banco Central a prerrogativa de aumentá-la ou reduzi-la: ficariam, assim, os particulares, sujeitados ao alvedrio da Administração Pública em matéria que, em última ratio, não é da competência do Executivo, mas da lei, o que acabaria por ferir tanto o princípio da legalidade quanto o da segurança jurídica.

Por esses motivos, cremos que a interpretação do art. 406, ora proposta, estabelecendo-se a remissão com o art. 161, § 1° do CTN, a que melhor está adequada ao sistema, visualizadas as regras do Código Civil à luz da Constituição Federal.

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*Professora de Direito Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Direito na Universidade de São Paulo e sócia do escritório Martins-Costa & Tatsch Advocacia associada do escritório Reale Advogados Associados.

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Atualizado em: 1/4/2003 11:49

Judith Martins Costa

Judith Martins-Costa

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