O cavalo de Tróia tributário:A não-cumulatividade da Cofins e do PIS
Ricardo Lodi Ribeiro*
Num ambiente político em que é inviável a proposta de aumento da carga tributária, que já supera os limites do confisco, o Governo Federal agiu como os aqueus que, não conseguindo pela força vencer a resistência inimiga, lançam mão do ardil, introduzindo, com grande habilidade, o cavalo repleto de guerreiros para a destruição da cidadela troiana. Assim, conseguiu vencer resistências e emplacar um astucioso mecanismo de aumento da carga tributária: a chamada não-cumulatividade da COFINS e do PIS.Aproveitando o clamor de todos os segmentos econômicos contra o efeito cascata das referidas contribuições que, incidindo sobre a receita bruta, oneram inclusive aqueles que amargam prejuízos, em grave violação ao princípio da capacidade contributiva, as Medidas Provisórias nºs 66/02 e 135/03, convertidas, respectivamente, nas Leis nºs 10.637/02 e 10.883/03, passaram a contemplar uma sistemática que se convencionou denominar de não-cumulativa.Com a nova disciplina a alíquota do PIS aumentou de 0,65% para 1,65% e a da COFINS de 3% para 7,6%, com o direito de o contribuinte deduzir da base de cálculo as contribuições incidentes sobre os bens e serviços adquiridos.A medida não pode, entretanto, ser comparada ao fenômeno da não-cumulatividade no âmbito do ICMS e do IPI, por serem estes impostos incidentes sobre a circulação de bens pelas várias etapas da cadeia econômica. Já as contribuições sociais em exame incidem sobre o faturamento das empresas, realidade que extrapola a circulação de cada um dos bens isoladamente considerado, o que constitui o fato gerador dos impostos citados.Na verdade, só há que se falar no fenômeno da cumulatividade em tributos que incidam sobre a circulação de bens e serviços sobre as várias etapas da cadeia econômica. O faturamento, base de cálculo do PIS e da COFINS, não diz respeito ao fenômeno circulatório, senão a partir de uma visão exclusivamente vinculada à repercussão econômica. É claro que a incidência de PIS e COFINS sobre todos os agentes da cadeia econômica acaba gerando um ônus fiscal em cascata para o preço final do bem ou serviço, mas não há que se confundir essa circunstância econômica com o fenômeno jurídico da cumulatividade tributária, realidade restrita aos tributos sobre circulação de bens e serviços.Por outro lado, não há que se falar em regime não-cumulativo em que a incidência recai sobre todas as receitas da empresa, e o direito de crédito é concedido topicamente sobre algumas despesas salpicadas pelo “benevolente” legislador, deixando de fora muitas outras como as de natureza financeira.Deste modo, o que as Leis nºs 10.637/02 e 10.883/03 criaram não foi um sistema não-cumulativo, mas um brutal aumento de alíquota adoçado por um invulgar direito a crédito-prêmio, o que quebra a lógica sistêmica em tributos que, pelas suas características constitucionais, não se subordinam ao regime de conta-corrente de débitos e créditos, mesmo após a Emenda Constitucional nº 42/03.Mas a pior conseqüência na adoção do citado regime é o abandono do princípio da isonomia tributária, a partir da adoção genérica do regime “não-cumulativo” a segmentos econômicos que não possuem volume de aquisições de bens e serviços significativo, capaz de gerar créditos que possam compensar o brutal aumento de alíquota das contribuições, como é o caso das empresas prestadoras de serviços. Para essas os efeitos das novas medidas são o de simples aumento de alíquota de 253,42%! Embora alguns setores com mais poder de barganha no Congresso Nacional tenham obtido a exclusão do regime não-cumulativo com a Lei nº 10.865/04, a grande massa das empresas prestadoras de serviço continua submetida ao garrote fiscal.Hoje, infelizmente, a carga tributária não é dividida de acordo com a riqueza revelada por cada operação econômica, mas em razão do maior ou menor poder de barganha no Parlamento de cada setor organizado.O Governo Federal, por ocasião da edição da MP nº 135/03, pela Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República, justificou a medida pela necessidade de desonerar os bens produzidos pelos segmentos de grande cadeia produtiva, especialmente os exportadores, reconhecendo o aumento da carga tributária para os prestadores de serviços. Segundo a argumentação oficial, não haveria aumento de carga tributária, pois o sacrifício de uns segmentos seria compensado pelos benefícios a outros, o que acabaria por incentivar o desenvolvimento econômico em favor de toda a sociedade.Como o tempo não demorou a demonstrar, a medida representou expressivo aumento da carga tributária em relação à COFINS. Segundo dados da própria Secretaria da Receita Federal, a arrecadação da contribuição de março de 2003 a março de 2004 aumentou em 13,41%, o que foi atribuído pelo secretário-adjunto da SRF aos efeitos da Lei nº 10.883/03. Cumpre lembrar que o crescimento da economia brasileira no mesmo período foi próximo a zero.No entanto, mesmo que não existisse qualquer aumento, o benefício a determinados segmentos econômicos não pode se fazer à custa de um brutal aumento da carga tributária de outros, sob pena de grave violação ao princípio da isonomia.Embora o desenvolvimento econômico e o incentivo às exportações sejam medidas tuteladas constitucionalmente, não podem servir de pretexto ao aniquilamento dos direitos constitucionais de vários segmentos econômicos discriminados pela medida, de proporcionalidade duvidosa, vez que a medida não passou, como se viu, de estratégia para o aumento da já insuportável carga tributária, o que é incompatível com o desenvolvimento econômico, utilizado como pretexto para o inconfessável objetivo de aumento de arrecadação.Durante muito tempo o Governo alimentou os anseios dos que, sinceramente, desejavam uma tributação não-cumulativa sobre bens e serviços, e que apressadamente comemoraram o advento da nova legislação. Mas, agora, passado algum tempo e baixada a poeira, todos querem sair do novo regime. Alguns conseguiram legislativamente, quando da conversão da MP nº 164 na Lei nº 10.865/04. Outros, que não foram contemplados pelo Congresso Nacional, esperam do Poder Judiciário uma postura altiva em mais essa violação da igualdade tributária, a fim de dar efetividade aos princípios assegurados constitucionalmente._____________* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
Atualizado em: 19/8/2004 11:49
Ricardo Lodi Ribeiro
Reitor da UERJ. Professor Associado de Direito Financeiro da UERJ, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário e advogado.