A verdadeira Reforma do Judiciário
Luís Roberto Barroso*
O Judiciário ingressou na paisagem institucional brasileira. Já não passa despercebido nem é visto com indiferença. É certo que vive uma crise de identidade, na verdade uma crise de crescimento: a Constituição de 1988 criou uma demanda por justiça que, por razões diversas, não pode ser integralmente atendida por juízes e tribunais. Como justiça é gênero de primeira necessidade, tal circunstância gera insatisfação e percepção crítica por parte da sociedade. Ao lado desse e de outros fatores, há também uma razoável dose de incompreensão e desinformação sobre os limites e possibilidades da atuação judicial.
Quando o novo governo tomou posse, já havia uma proposta de emenda constitucional de Reforma do Judiciário tramitando por mais de uma década no Congresso. O Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, constituiu uma comissão para desempenhar duas tarefas: a) examinar o texto que estava em fase de votação no Senado, destacando os pontos que mereciam apoio; b) apresentar um conjunto de idéias aptas a democratizar e aprimorar as instituições judiciais. Quem se dispuser a ler de ponta a ponta a proposta em discussão chegará a duas conclusões importantes, uma boa e a outra ruim. A ruim: sem embargo de algumas inovações positivas, sua aprovação afetará muito limitadamente o funcionamento da justiça. A boa: pouquíssimas modificações verdadeiramente relevantes dependem de emenda à Constituição.
É possível sistematizar as grandes questões do Judiciário em três planos distintos: o ideológico-estrutural, o humano e o normativo (que importa em modificação das normas constitucionais e legais em vigor). O plano ideológico-estrutural envolve, em primeiro lugar, dar justiça a quem não tem acesso a ela, o que significa a criação e o aparelhamento de defensorias públicas e de juizados especiais, destinados ao julgamento de pequenas causas. E, em segundo lugar, a melhoria da justiça prestada a quem já tem acesso, tornando-a mais ágil e confiável. Ampliar acesso e melhorar a qualidade exige políticas públicas bem definidas e constantes, bem como investimentos adequados em pessoal capacitado, estruturas físicas, informatização. Sem surpresa, constata-se que o primeiro conjunto de problemas não exige nenhuma reforma constitucional ou legislativa.
O plano humano compreende diversos aspectos, que serão meramente referidos, sem ser possível aprofundá-los. Em primeiro lugar, o recrutamento de juízes deve ser precedido de um exame nacional de magistratura e o ingresso deverá ser para cursar a Escola da Magistratura, e não diretamente no cargo. Em segundo lugar, é preciso mudar a mentalidade de partes, advogados e juízes em relação à solução do litígio: em países como Inglaterra e Estados Unidos, bem mais da metade dos processos terminam mediante acordo entre os litigantes, com intenso envolvimento do juiz na busca de uma composição. Isso ocorre tanto no cível (amicable settlement) como no crime (plea bargain). No Brasil, salvo na Justiça do Trabalho, juízes investem mínima energia nessa atividade conciliatória, que abreviaria imensamente o processo. E, por fim, o Poder Público de todos os níveis precisa mudar sua conduta processual de se defender agredindo o direito e os fatos, de recorrer mesmo quando já se pacificou o entendimento contrário e de se empenhar em empurrar a condenação para o próximo governo.
Chega-se, afinal, ao plano normativo, que envolve, aí sim, a Constituição e as leis. Algumas alterações constitucionais são indispensáveis, como a introdução do controle social do Judiciário ou a redução de competências do Supremo Tribunal Federal, que está à beira da paralisia, soterrado pela média anual de mais de cem mil processos. No plano legislativo, é imperativa a mudança do sistema de recursos processuais, para dar-lhe mais racionalidade e celeridade. Hoje em dia, a melhor coisa que uma pessoa mal-intencionada pode pretender é ser demandada na Justiça. Tudo se arrasta interminavelmente, mesmo que se trate de um juiz ou de um tribunal extremamente operoso. É o sistema que está feito para não funcionar.
Em suma: a verdadeira Reforma do Judiciário não se concentra nem se exaure na proposta em votação no Senado. No verso inspirado do poeta espanhol Antonio Machado, “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. A evolução e o amadurecimento dos povos e das instituições se inserem – sem trocadilho – em um processo lento, a ser percorrido com idealismo e sem amargura. A superação de etapas e de obstáculos envolve não apenas recursos financeiros e humanos, como também, e principalmente, mudança de mentalidade e atuação esclarecida.
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* Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Comissão de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça. Escritório Luís Roberto Barroso & Advogados Associados.
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Atualizado em: 24/3/2004 23:48
Luís Roberto Barroso
Mestre pela Universidade de Yale, doutor e livre-docente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Visiting Scholar na Faculdade de Direito de Harvard e Senior Fellow na Harvard Kennedy School. Professor titular da UERJ e do Centro Universitário de Brasília – UniCeub. Ministro do Supremo Tribunal Federal.