Morre Brizola
1922 – 2004
O ex-governador Leonel Brizola morreu ontem à noite, aos 82 anos, vítima de infarto agudo do miocárdio. Presidente nacional do PDT, Brizola foi internado ontem, no fim da tarde, no Hospital São Lucas, em Copacabana, onde foi detectada uma infecção. Ele era um dos últimos defensores de uma doutrina que dominou a política brasileira por mais de três décadas, o trabalhismo. Herdeiro orgulhoso de Getúlio Vargas, Brizola copiou-lhe o estilo de fazer política – centralizador, personalista, a quem ninguém conseguia ficar indiferente, seja para amar ou odiar – e formou seguidores apaixonados. Governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, por duas vezes, não conseguiu realizar seu maior sonho, pelo qual lutou durante toda a vida: ser presidente da República.
Gaúcho nascido no vilarejo em 22 de janeiro de 1922, o ex-governador vivia no Rio. Viúvo desde abril de 1993, tinha três filhos, netos e bisnetos.
O velório começou às 5h de hoje no Palácio Guanabara. Às 16h, o corpo será levado para o Ciep Tancredo Neves, no Catete, e, no fim da tarde, segue para Porto Alegre, para nova sessão de homenagem no Palácio Piratini. Ao meio-dia de amanhã o corpo vai para São Borja, onde será enterrado à tarde.
Herdeiro de Getúlio e parceiro de Jango
Leonel de Moura Brizola começou na política em 1945, por simpatia aos ideais de Getúlio. Em agosto daquele ano, entrou no PTB ao lado de um grupo de sindicalistas de Porto Alegre para começar a luta pelo trabalhismo. A política esteve presente até no casamento com Neusa, prima de João Goulart, em março de 1950. Eleito deputado federal em 1954, prefeito de Porto Alegre em 1955 e governador do Rio Grande do Sul em 1958, Brizola consolidou-se como líder nacional. Iniciando um estilo de governar mantido ao longo dos anos, tomou medidas polêmicas, como a encampação de empresas da área de infra-estrutura (que repetiria mais de 20 anos depois, com os ônibus no Rio de Janeiro).
A ascensão definitiva deu-se com a crise da renúncia de Jânio Quadros. Brizola deflagrou a Cadeia da Legalidade e foi um dos articuladores do governo João Goulart. Cassado de primeira hora após o golpe militar de 1964, foi para o exílio e voltou com a anistia. Candidato ao governo do Rio, venceu de maneira surpreendente, pavimentando a candidatura a presidente na volta à democracia plena, em 1989. Brizola ficou fora do segundo turno, perdendo apertado para Luiz Inácio Lula da Silva – a quem durante a campanha chamara, em uma de suas expressões inesquecíveis, de “sapo barbudo”.
Ao tentar o sonho novamente em 1994, sofreu sua maior derrota, terminando em 5 lugar. Em 1998, foi vice de Lula (com quem sustentou uma relação de permanente vaivém), na derrota para Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, tentou o Senado e perdeu novamente. Sobrevivente solitário de uma geração, mantinha-se na oposição a Lula, adotada a partir das reformas propostas pelo governo ano passado.
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Leonel Brizola segundo Darcy Ribeiro
Nasceu em 22/01/1922, no povoado de Cruzinha, antes pertencente ao município de Passo Fundo, e hoje a Carazinho. Estudante de engenharia, ingressou no recém-fundado Partido Trabalhista Brasileiro- PTB -, em agosto de 1945, para apoiar a política social de Getúlio Vargas. Era um universitário atípico, uma vez que a maioria de seus colegas era comunista ou udenista. Provavelmente porque ele vinha de uma dura vida – infância pobre, trabalhando para estudar – que o identificava com a classe trabalhadora. Atípico, também, porque, já alcançando êxito naquela idade, não aderia aos ideais das elites e até se orgulhava de sua origem popular.
Assim é que, quando Getúlio saiu na sua memorável campanha eleitoral pelo Brasil adentro, levou consigo, como assessores, a Jango, Brochado da Rocha, e a Brizola, que eram chamados o “Jardim da Infância” do Presidente.
No curso dessas lutas, Brizola cresceu e se afirmou como principal líder brasileiro de esquerda. Como tal, convocou as forças progressistas a se unirem a ele, numa Frente Nacional de Libertação, para as lutas anti-imperialistas de combate à espoliação estrangeira e ao latifúndio improdutivo. Tal era então seu prestígio que, mantendo-se no governo do Rio Grande do Sul, se candidatou a Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, alcançando a maior votação registrada na história brasileira.
Líder popular
No Parlamento, Brizola se tornou o líder das esquerdas e o principal coordenador do grupo de pressão sobre Jango na consecução das reformas de base, principalmente a reforma agrária, que a seu ver devia ser feita “na lei ou na marra”. Articulou a Frente de Mobilização Popular, integrada pela Frente Parlamentar Nacionalista, pela UNE e pela CGT, e apoiada pelas principais lideranças de esquerda, inclusive por Prestes, Arraes e Julião. Surgiu, assim, o que Santiago Dantas chamou de “esquerda negativa”, para contrastar a combatividade das forças lideradas por Brizola, com o caráter persuasório do movimento que apoiava o Presidente João Goulart na sua política de reformas.
Desde então, as forças progressistas se bipartiram. De um lado, o governo lutava pelas reformas fundamentais que considerava possíveis, e que eram vistas pela direita como tão avançadas que a unificavam e lançavam no golpismo contra revolucionário. Do outro lado, Brizola utilizava intensa e vivamente o rádio e percorria todo o Brasil em pregações, mobilizando o povo para forçar as reformas estruturais. Simultaneamente, organizava seus seguidores em “Grupos de Onze”, semelhantes às células comunistas, estruturando-os em seus locais de moradia e de trabalho para o ativismo político radical.
Nesse ambiente é que se desencadeou o golpe militar de 1964. Jango o enfrentou pelo diálogo, negociando com os chefes militares, mas negando-se a dar ordem de combate contra as forças sublevadas. Brizola articulou no Rio Grande do Sul um movimento de resistência armada, ao lado do general Ladário, Comandante do 3º Exército. Jango desembarcou em Porto Alegre a 2 de abril, desautorizando a resistência armada. Optou pelo exílio na Uruguai, onde Brizola, eu e muitíssimos companheiros fomos compelidos a nos exilar, também.
Exílio de 15 anos – No exílio, Brizola prosseguiu no esforço de organizar a luta armada contra a ditadura militar. Acreditava ele, como muitos mais, naqueles anos de entusiasmo pela figura de Che Guevara, que era possível repetir a façanha cubana. Mas a ditadura se consolidou, tornando cada vez mais inviável aquela estratégia de lutas. Acabamos confinados, por pressão da ditadura brasileira sobre o governo uruguaio. Eu, em Montevidéu, lecionando na universidade, mas proibido de sair do país. Brizola, enclausurado numa praia inóspita. Daí sairia para residir numa pequena fazenda que comprou no interior do país, onde viveria vários anos.
Mesmo isolado na campanha uruguaia, tão grande era seu prestígio político e tão decisiva continuava sua influência sobre as eleições do Rio Grande do Sul que, em setembro de 1977, a ditadura militar obrigou os governantes uruguaios a decretarem a expulsão de Brizola, dando- lhe o prazo de cinco dias para sair do país. Era seu segundo exílio e todos esperávamos que ele fosse viver na Venezuela ou em Portugal.Surpreendentemente, Brizola, que era tido como o principal adversário político norte-americano na América do Sul, procurou a embaixada dos Estados Unidos, solicitou e alcançou o apoio do Presidente Carter – enquanto defensor dos direitos humanos – na qualidade de dissidente político perseguido pelo militarismo brasileiro.
A partir desse novo pouso, Brizola voltou a crescer. Agora, como um dos principais líderes latino-americano. É nessa condição que se transladou para Lisboa, aproximou-se da Internacional Socialista através do patrocínio de Mário Soares, sendo recebido, na qualidade de iminente estadista, por diversos governantes europeus, tais como Mitterand, Olav Palm e Willy Brandt.
Carta de Lisboa
Em julho de 1978, Brizola realizou em Lisboa um encontro de trabalhistas e socialistas brasileiros com o propósito de fazer renascer o PTB, com um grande número de trabalhistas do Brasil e do exílio para concretizar aquele projeto. Foi aprovada, então, a Carta de Lisboa, com os princípios programáticos que deveriam regar o novo PTB, assentados na representação popular, no pluripartidarismo, no nacionalismo getuliano, no sindicalismo moderno e no desenvolvimento capitalista, orientado pelo Estado.
Promulgada a anistia, Brizola retornou ao Brasil em setembro de 1979. Dedicou-se à reorganização do PTB, no que foi obstado por Golbery, o ideólogo da ditadura, que fez entregar a sigla a um grupo de aventureiros, em cujas mãos ela se converteu em legenda de aluguel, patronal, submissa ao governo e controlada por banqueiros. Recuperando-se rapidamente desse novo golpe do regime militar, Brizola criou o Partido Democrático Trabalhista – PDT. Em sua liderança retomou a militância política, cercado pelos velhos companheiros do trabalhismo e do nacionalismo de Vargas, do reformismo de Jango, que, sob sua condução, transcende para o socialismo democrático, integrado já na Internacional Socialista, da qual Brizola foi eleito Vice-Presidente.
No mês de novembro daquele ano, sentado a seu lado no jantar final de congratulação os participantes do Congresso da Internacional Socialista, realizado em Madri, vi Brizola ser saudado como um futuro chefe de estado. Constatei ali, uma vez mais, o imenso poderio do carisma de Brizola, que vira exercer-se tantas vezes no Brasil. Carisma é a qualidade daquele líder distinguível entre todos , como se tivesse uma estrela na testa. Os gregos antigos o definiam como aquele que ao entrar no templo enche o templo.
Na luta política brasileira, Brizola destacou-se como o principal adversário do governo militar em declínio, com tão grande apoio popular que foi eleito Governador do Rio de Janeiro. É o único caso em nossa história em que um político, já tendo sido governador, consegue eleger-se por um outro estado.Anos depois, vi Brizola escolher se queria reeleger-se pelo Rio Grande do Sul ou pelo Rio de Janeiro, tão evidente era o desejo do eleitorado dos dois estados de reconduzi-lo ao ser governo.
Volta ao Brasil
Estive ao lado de Brizola nos dois governos que ele exerceu no Rio de Janeiro. No primeiro, como Vice- Governador, no segundo, como Senador. Em ambos, como coordenador de seu programa educacional. Fizemos juntos muitas coisas recordáveis. A mais importante delas foi reinventar a escola primária brasileira na forma dos Centros Integrados de Educação Pública – CIEP’s. Admiráveis por sua arquitetura, devida a Oscar Niemeyer, e muito mais pela revolução educacional que representam, como escola de tempo integral para professores e alunos; como de treinamento em serviço na arte de educar; como centro produtor de variado material didático de excelente qualidade e ainda como oficina de elaboração de cursos audiovisuais, através de tele-vídeos e de programas de informática educativa.
Aos CIEP’s acrescentamos outra inovação, que é o Ginásio Público, onde os alunos ingressados dos CIEP’s prosseguem os estudos de 6º à 8º séries primárias e de todo o curso e nível médio, recebendo educação da mais alta qualidade. Nossa invenção mais desafiante, porém, é a Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, estruturada nas bases do MIT, como uma Universidade – laboratório destinada a integrar o Brasil na civilização do 3ª Milênio.
Todos esses feitos, de que me orgulho muito, não são criações minhas, mesmo porque eles apenas concretizam ideais antigos dos principais educadores brasileiros, encabeçados por Anísio Teixeira. O que os tornou viáveis foi o fato de eu poder contar para concretizá-los com o primeiro estadista de educação que o Brasil conheceu: Leonel Brizola. Como Prefeito de Porto Alegre e como Governador do Rio Grande do Sul, Brizola já revelara um paixão pela educação, que, aprofundada nos seus longos anos de vivência no exílio, pôde florescer no Rio de Janeiro. Como efeito, Brizola é o primeiro governante brasileiro a compreender em toda a sua profundidade a inexcedível importância do problema educacional, cuja solução é requisito indispensável para que o Brasil progrida.
Concluindo essas apreciações, devo assinalar que nós, militantes do PDT, somos os herdeiros da ideologia e da experiência de ação governamental dos três estadistas mais lúcidos, destemidos e fecundos que o Brasil conheceu: Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Como se vê, nós viemos de longe, trazendo nos braços gloriosas bandeiras de luta, grandes vitórias e terríveis frustrações.
Fomos nós que fizemos a revolução de 1930 para modernizar o Brasil. Legalizando as lutas trabalhistas, através de sindicatos e da promulgação das principais leis, ainda vigentes, de garantia dos direitos dos assalariados. Criando o Ministério da Educação e da Saúde e a primeira universidade brasileira. Assentando as bases da industrialização do Brasil, com a criação da Companhia Vale do Rio Doce, da Companhia Siderúrgica Nacional, da Petrobrás, da Eletrobrás e de numerosas outras estatais. Tudo isso provocou tanta raiva nos reacionários, que nos custou o suicídio do nosso líder maior, Getúlio Vargas. Fomos nós que assumimos de forma mais profunda a responsabilidade de superar o atraso e a pobreza da população brasileira, espoliada desde sempre por uma classe dominante, infecunda e estéril. O fizemos através da Reforma Agrária e da lei de controle da espoliação estrangeira, propugnadas pelo Presidente João Goulart. Também elas provocaram tamanha reação na velha classe descendente de senhores de escravos e de vassalos servis do capital estrangeiro, que nosso governo foi derrubado e o Presidente e seus associados sofreram atrozes perseguições e amargaram anos de exílio, em que muitos morreram. Somos nós que encarnamos, hoje, essa luta, sob a liderança de Leonel Brizola. Ele ressurge, depois de 15 anos de exílio e 40 anos de difamação, como o líder que vem passar nossa instituicionalidade a limpo, a fim de que o Brasil floresça, afinal, como a pátria livre de um povo civilizado, próspero e feliz. Deus salve o Brasil! (Rio de Janeiro, 1994).
Darcy Ribeiro
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Por: Redação do Migalhas
Atualizado em: 22/6/2004 09:37