Arrecadação e psicologia jurídica
Raquel Cavalcanti Ramos Machado*Como se sabe, os julgamentos em geral, de qualquer objeto que seja, são feitos não apenas com base nos conhecimentos objetivos que se tem da realidade que se julga, mas também com a influência de sentimentos, como o medo, a esperança, etc. Os julgamentos de questões jurídicas dão-se da mesma maneira.Em relação ao Direito Tributário, observa-se que um grande medo presente na mente dos julgadores é o de que a declaração de invalidade da cobrança de determinado tributo represente, para o Governo, elevada perda de receita. É como se se sentissem responsáveis por eventuais problemas que se venha a enfrentar no orçamento público. E é exatamente por ter ciência desse medo que muitos procuradores de entes públicos invocam em petições o argumento em questão. Pelo mesmo motivo, antes de os Tribunais Superiores se posicionarem definitivamente sobre a validade de alguns tributos, o Governo apresenta à mídia dados segundo os quais a arrecadação poderá ser muito prejudicada com a supressão do tributo, e geralmente afirma que a prestação de muitos serviços públicos terá de ser reduzida ou perderá a qualidade.Os julgadores, porém, não se devem deixar influenciar por esse medo. Tanto, no atual momento, o Governo vem experimentando crescentes recordes na arrecadação, como diante da declaração de invalidade de um tributo, o Governo dispõe de todos os instrumentos para validamente criar outro que o substitua.Seja como for, em um Estado de Direito, não se pode entender como justificáveis os meios pelos fins: a necessidade de arrecadação, portanto, não torna válida a cobrança de qualquer valor que seja.Até para que se tenha mais responsabilidade na criação e majoração de tributos, o Poder Judiciário deve declarar a invalidade de toda relação tributária que assim entender, e o Governo deve submeter-se aos ônus daí advindos, por mais graves que sejam à arrecadação. A submissão aos ônus pela prática de um ato equivocado, com efeito, está diretamente relacionada à responsabilidade pelo mesmo, ao temor de praticá-lo novamente. Assim, caso o Poder Judiciário aja de modo contrário, estará estimulando a criação de tributos sem preocupação com as limitações constitucionais e com a coerência do Sistema Jurídico, já que, a qualquer momento, o argumento da perda de arrecadação poderá ser invocado pelo Governo.Há alguns dias, o Poder Executivo Federal editou medidas provisórias e decretos reduzindo alguns impostos e isentando produtos da cesta básica do pagamento da COFINS e do PIS. Essa atitude foi bastante elogiada por diversos setores da sociedade e pela mídia. O próprio Governo afirmou estar certo de que a redução nas alíquotas e a isenção não prejudicarão o aumento da arrecadação, pois a redução dos tributos será compensada pelo aumento de relações econômicas, ou seja, pelo automático aumento no número de fatos geradores do dever de pagar tributos.Pois bem. Tão ou mais salutar do que a edição de normas que reduzem ou isentam tributos é a declaração, pelo Poder Judiciário, da invalidade das normas tributárias que, quase de forma consensual, são assim consideradas pelos doutrinadores e pelos próprios julgadores, mas só não são julgadas, a final, dessa maneira, por questões de alegada necessidade orçamentária. Os contribuintes sentir-se-iam, de um modo geral, muito mais seguros, pois confiariam no Judiciário para fazer efetivas suas garantias constitucionais, não dependendo de eventuais “favores” do Governo, até porque a tributação deve encontrar limites na Constituição e nas leis, e não na “generosidade” do Poder Executivo, até porque, como se observa da prática, não se pode comparar ao número de normas editadas pelo Poder Executivo Federal “reduzindo” a carga tributária com as leis que invalidamente a aumentam._________________
* Advogada em Fortaleza/Ce Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET e da Comissão de Estudos Tributários da OAB/Ce
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Atualizado em: 20/8/2004 14:11
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.