A autonomia das agências reguladoras   Migalhas
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A autonomia das agências reguladoras – Migalhas

 

A autonomia das Agências Reguladoras e a estabilidade de seus dirigentes

 

José Alberto Bucheb*

 

1. Considerações iniciais

 

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O tema da autonomia das agências reguladoras vem sendo objeto de debate desde a criação desses organismos, na segunda metade dos anos 90. As agências foram concebidas, na legislação que as criou, como autarquias especiais, cuja principal característica é a independência em relação à Chefia do Poder Executivo.

 

Este modelo de administração de serviços públicos teve por inspiração o paradigma em vigor nos Estados Unidos e em alguns países europeus e se aplica também às atividades econômicas monopolizadas pelo Estado em face de seu relevante interesse coletivo, como é o caso das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural.

 

O ponto comum a todos os autores que se dedicaram ao estudo das agências reguladoras é a importância conferida à independência ou à autonomia destes organismos:

 

“o jurista espanhol Gaspar Ariño, por exemplo, enfatiza que ‘as duas notas fundamentais que as caracterizam – suas duas grandes vantagens – são a especialização e a independência’. Um pouco mais adiante em seu texto, continua: ‘a independência de juízo e a de decisão resultam particularmente necessárias nestas matérias por razões fundamentais: primeiro porque para o político o mais fácil é adiar o problema; segundo porque nos encontramos diante de situações que afetam diretamente os direitos e liberdades dos cidadãos, onde as decisões devem ser tomadas com a imparcialidade e independência de um juiz”.

 

Nessa linha, alguns autores, como Floriano Azevedo Marques Neto não admitem, sequer, a figura do contrato de gestão, concebida no Direito francês, e que constitui o mecanismo pelo qual “o estado outorga alguma autonomia a um ente público, fixando, de outro lado: i) metas que devam ser atingidas; ii) sanções – apenatórias ou premiais – aos dirigentes em caso de descumprimento ou atingimento de tais metas”.

 

De modo geral, para justificar-se a necessidade de independência ou autonomia das agências reguladoras, busca-se, tácita ou expressamente, desqualificar o “político” – movido quase sempre pelo interesse meramente eleitoral – e supervalorizar o “técnico” – este sim, merecedor da confiança da sociedade.

 

Nesse contexto, e dentro desses pressupostos, foram criadas as agências reguladoras brasileiras. No setor do petróleo, por exemplo, a Lei nº 9.478 (Lei do Petróleo), de 6 de agosto de 1997, instituiu a Agência Nacional do Petróleo – ANP. De acordo com o art. 7º da referida lei, a ANP é uma entidade integrante da Administração Federal indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do petróleo, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Nos artigos 8º, 9º e 10 são definidas as atribuições da ANP. Os artigos 11 e 14 cuidam da estrutura organizacional, os artigos 15 e 16, das receitas e do acervo e os artigos 17 a 20, do processo decisório da autarquia.

 

2. A estabilidade dos dirigentes das agências reguladoras

 

Os requisitos essenciais à independência ou autonomia político-institucional das agências reguladoras com mais freqüência enumerados pela doutrina são listados a seguir:

 

1. estabilidade dos dirigentes: impossibilidade de demissão, salvo falta grave apurada mediante devido processo legal;

2. mandato fixo;

3. nomeação de diretores com lastro político;

4. impossibilidade de recurso administrativo ao Ministério a que estiver vinculada: inexistência de instância revisora hierárquica dos seus atos, ressalvada a revisão judicial;

5. autonomia de gestão: não-vinculação hierárquica a qualquer instância de governo;

6. estabelecimento de fontes próprias de recursos para o órgão, se possível geradas do próprio exercício da atividade regulatória.

 

Mais precisamente, o requisito fundamental para configurar-se a autonomia das agências reguladoras foi destacado com extrema objetividade por Carlos Ari Sundfeld:

 

“na realidade, o fator fundamental para garantir a autonomia da agência parece estar na estabilidade dos dirigentes. Na maior parte das agências atuais o modelo vem sendo o de estabelecer mandatos. O Presidente da República, no caso das agências federais, escolhe os dirigentes e os indica ao Senado Federal, que os sabatina e aprova (o mesmo sistema usado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal); uma vez nomeados, eles exercem mandato, não podendo ser exonerados ‘ad nutum’; isso é o que garante efetivamente a autonomia”.

 

Neste diapasão, o art. 12 da Lei do Petróleo, cuja redação é reproduzida a seguir, tratava da estabilidade dos dirigentes da ANP, mas foi vetado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso:

 

“Art. 12. Os membros da Diretoria da ANP somente poderão ser exonerados em razão de:

 

I – condenação penal, transitada em julgado;

 

II – prática de ato de improbidade apurado em processo administrativo;

 

III – violação administrativa grave ou descumprimento manifesto de suas atribuições, reconhecidos em decisão fundamentada do Senado Federal, por provocação do Presidente da República.

 

Parágrafo único. Nas hipóteses deste artigo, o Presidente da República poderá afastar temporariamente do cargo o Diretor sob investigação, até decisão final do Senado Federal”.

 

Na Mensagem nº 870, de 6 de agosto de 1997, do Presidente da República ao Presidente do Senado Federal são apresentadas as razões do veto:

 

“Por inconstitucional, pois o inciso III do art. 12 condiciona a exoneração de membros da Diretoria da ANP pelo Presidente da República ao reconhecimento pelo Senado Federal, em decisão fundamentada, numa flagrante ingerência em área de competência privativa do Presidente da República, qual seja a de dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal (CF art. 84, VI), configurando-se assim infringência ao princípio da independência dos poderes reconhecidos pela Constituição Federal em seu art. 2º”.

 

O veto ao art. 12 da Lei nº 9.478/97 foi mantido, e assim os mandatos dos membros da Diretoria da ANP, na sua origem, poderiam ser revogados ad nutum, pelo Presidente da República.

Essa situação perdurou até o advento da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, que tratou do tema da gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras. Nesse momento, a ANP já contava com todos os seus cargos de direção preenchidos e se encontrava em pleno funcionamento. O art. 9º da Lei 9.986/00, abaixo transcrito, trouxe à tona, novamente, o tema da estabilidade dos dirigentes das agências reguladoras:

“Art. 9º Os Conselheiros e os Diretores somente perderão o mandato em caso de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar.

 

Parágrafo único. A lei de criação da Agência poderá prever outras condições para a perda do mandato”.

Desta feita, entretanto, não houve veto presidencial e o princípio consagrado no art. 9º da Lei 9.986/00 deu contornos definitivos ao requisito de impossibilidade de demissão dos diretores das agências, essencial à autonomia político-administrativa das chamadas “autarquias especiais”, tornando sem efeito, em termos práticos, dispositivos como a regra contida no art. 7º da Lei do Petróleo que define a ANP como órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia.

 

Na realidade, anteriormente ao advento da Lei nº 9.986/00, a questão da imposição de restrição ao Chefe do Poder Executivo para demitir dirigentes de agências reguladoras já havia sido examinada pelo STF, na medida liminar requerida na ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul contra os artigos 7º e 8º da Lei estadual 10.931/97, que criou a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS. O art. 8º da referida lei estatuía que “o conselheiro só poderá ser destituído, no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa”.

 

As conclusões do STF, em relação ao caso em tela, podem ser assim sumarizadas:

 

a) a regra contida no art. 8º da Lei estadual do RS nº 10.931/97 encerra aparente ofensa ao princípio constitucional da separação dos poderes, pelo que deveria ter sua eficácia suspensa;

 

b) entretanto, o vazio legislativo decorrente da suspensão desta norma, que contém a única regra de demissão prevista na referida Lei, seria mais inconstitucional do que a própria norma impugnada, daí a razão para que permaneça em vigor até a superveniência de legislação válida;

 

c) até a superveniência de tal legislação válida, o conselheiro da AGERGS não é demissível ad nutum, mas seu afastamento poderá ser determinado, pelo Governador do Estado, se houver justa motivação para tanto.

 

É razoável supor que o “motivo justo”, mencionado na referida decisão para a demissão do dirigente de agência reguladora, não se limita simplesmente às hipóteses de condenação judicial transitada em julgado e de prática de ato de improbidade apurada em processo administrativo, mas alcança, também, situações como o descumprimento de suas atribuições e a não observância das diretrizes formuladas pelo Poder Executivo.

 

Em suma, constata-se que as razões do veto presidencial ao art. 12 da Lei do Petróleo e a decisão do STF na ADIn-MC 1.949-RS têm em comum o fato de que em ambas se reconhece que a imposição de restrição à demissibilidade dos dirigentes das agências reguladoras, por parte do Chefe do Poder Executivo, viola o princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes. Aliás, é importante assinalar que, por força do inciso III do § 4º do art. 60 da Constituição Federal, nem mesmo por via de emenda constitucional é possível alteração normativa tendente a abolir a separação dos Poderes. Assim, pelos mesmos fundamentos, pode-se concluir que a regra contida no art. 9º da Lei 9.986/00 padece de vício de inconstitucionalidade.

 

Na verdade, o STF já enfrentou essa questão anteriormente, sob a égide da Constituição de 1946, ao decidir, por maioria de votos no Mandado de Segurança nº 8.693, pela possibilidade de o Presidente da República exonerar membros do Conselho Administrativo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, apesar de a nomeação para exercício de tal cargo ser por prazo fixo.

 

Em sede doutrinária, a questão da estabilidade dos administradores tem sido tema de estudo de diversos autores. Marcos Juruena Vilela Souto, interpretando o art, 37, I, da Constituição Federal, argumenta que “se o requisito é a aprovação política de profissional de reputação ilibada e notória especialização no setor regulado, não pode haver perda do cargo senão nas hipóteses na lei autorizadas”. Ocorre, entretanto, que o artigo 37, II da Constituição Federal, determina que a nomeação e a exoneração são livres para cargo em comissão declarado em lei.

 

E foi justamente com base no princípio contido no Art. 37, II da Constituição Federal, que a Governadora do Estado do Rio Grande do Norte ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei estadual nº 7.758/99, que dispõe sobre a Agência de Serviços Públicos do Estado (ARSEP). Nessa ação foi requerida a concessão de medida liminar para a suspensão do art. 10, parágrafos 1º e 2º e do artigo 11 da lei potiguar. O artigo 10 da referida lei estabelece que o diretor-presidente e os diretores-superintendentes da agência são nomeados pelo governador para mandatos não coincidentes de quatro anos, sendo renováveis por mais um período, e o art. 11, que estes dirigentes só perdem os mandatos em caso de prática de atos lesivos ao interesse público. Além da afronta ao “princípio de livre exoneração nos cargos de provimento em comissão”, a Governadora do Rio Grande do Norte alega, ainda, que as disposições legais contestadas impedem o executivo estadual de implantar a política pública idealizada para a agência reguladora, com risco de prejuízo aos cofres públicos.

 

Mesmo entre os defensores da autonomia das agências reguladoras encontram-se autores que reconhecem a inconstitucionalidade do instituto da estabilidade de seus dirigentes. Nesse sentido, Leila Cuéllar assinala que:

 

“embora se pretenda garantir a autonomia das agências também através da limitação das hipóteses de exoneração de seus diretores, parece-nos que a impossibilidade de demissão ‘ad nutum’ dos dirigentes das agências pelo Chefe do Poder Executivo é inconstitucional, porque, ainda que indiretamente, viola o princípio da República, ao possibilitar que pessoa nomeada por um governante, porque de sua confiança, permaneça no exercício das funções para as quais foi designado durante o governo posterior. Sabemos que esta afirmação é perigosa, pois pode vir a desnaturar um pouco a independência que se quer conferir aos entes reguladores. Porém, note-se que a independência da agência não deriva do ato de nomeação de seu dirigente, mas das garantias quanto ao exercício das prerrogativas que são atribuídas à entidade. Dessa forma, e rigorosamente, a singela substituição do presidente por sujeito que apresente afinidades técnico-políticas com o projeto social (e econômico) da Presidência da República (no caso de agências federais) não implicaria agressão à prestigiada independência das agências reguladoras. Assim, no intuito de reforçar e resguardar a independência política que se pretende conferir às agências, talvez fosse oportuno que se estabelecesse uma ‘regra fixa’ acerca da substituição dos seus diretores, de governo a governo. Reitere-se, ainda, que a alteração do titular do cargo não viola a independência da agência. Esta continua a ser independente, vez que os demais itens relativos à independência permanecem inalterados”.

 

Nessa linha, Celso Antônio Bandeira de Mello, um dos críticos mais contundentes do modelo da estabilidade dos dirigentes das agências reguladoras, conclui que “a garantia dos mandatos dos dirigentes destas entidades só opera dentro do período governamental em que foram nomeados; encerrado tal período governamental, independentemente do tempo restante para conclusão deles, o novo Governo poderá sempre expelir livremente os que os vinham exercendo”.

 

Em resumo, a independência das agências reguladoras, sustentada pela estabilidade de seus dirigentes, tem como fundamento a presunção absoluta de que as decisões desses dirigentes, ao contrário daquelas tomadas pelos políticos eleitos pela população, têm motivação estritamente técnica e são isentas de eventuais interesses eleitorais. Busca-se, com o instituto da estabilidade, em última análise, “proteger” a sociedade dos governantes por ela mesma eleitos.

 

3. Os controles externo e interno das atividades das agências reguladoras

 

A discussão acerca da autonomia das agências passa ainda pela análise das funções atribuídas a esses entes da administração indireta. Como sumarizado por Luís Roberto Barroso, é possível classificar as atividades das agências reguladoras em executivas, decisórias e normativas.

 

Em relação à função executiva, a Lei do Petróleo (art. 8º, I), por exemplo, estabelece que a ANP deve, dentre outras atribuições, implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo e gás, contida na política energética nacional. Essas políticas são propostas ao Presidente da República pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, vinculado à Presidência da República e presidido pelo Ministro de Estado de Minas e Energia, nos termos do art. 2º da Lei do Petróleo. As leis da ANEEL (Lei nº 9.427/96) e da ANATEL (Lei nº 9.472/97) contêm dispositivos similares.

 

Assim, se o papel das agências é o de executar as políticas formuladas pelos órgãos auxiliares da chefia do Poder Executivo e aprovadas pelo Presidente da República, a questão que se coloca é a de como se dará o controle do Poder Executivo sobre esta função das agências reguladoras. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso observa que nas leis criadoras das agências não há previsão de recurso hierárquico impróprio, contra suas decisões, dirigido à Administração direta, e assim, as agências reguladoras funcionam como última instância administrativa para julgamento dos recursos contra seus atos, “sendo em princípio inadmissível que as decisões tomadas pelas agências possam ser revistas ou modificadas por algum agente político (Ministro ou Secretário de Estado)”.

 

Dessa forma, descartada a via do recurso hierárquico impróprio, conclui-se que a possibilidade de controle das ações dos dirigentes das agências reguladoras, pelo Executivo, limita-se tão somente à escolha de seus diretores, sendo importante observar que esta escolha será ainda submetida à aprovação do Senado Federal e que o mandato desses diretores, em regra, estende-se além do mandato do Presidente da República que os nomeou.

 

Ainda em relação ao controle externo dos atos das agências reguladoras, Luís Roberto Barroso sustenta a tese segundo a qual “escapa às atribuições dos Tribunais de Contas o exame das atividades dessas autarquias especiais quando elas não envolvem dispêndio de recursos públicos” .

 

E mais, no tocante ao controle judicial, a despeito da norma do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, alguns autores postulam que “o controle judicial do ato administrativo, consoante doutrina tradicional, seria limitado aos aspectos de legalidade, não alcançando o mérito da decisão administrativa”. Mesmo admitindo que “à luz dos novos elementos gerados no âmbito do pós-positivismo e da normatividade dos princípios, já não é mais possível afirmar, de modo peremptório, que o mérito do ato administrativo não é passível de exame”, Luis Roberto Barroso adverte que “a doutrina convencional em tema de controle dos atos administrativos, aí incluídos os das agências reguladoras, não perdeu a validade, mas sofre exceções importantes”.

 

Assim, prevalecendo o entendimento segundo o qual as agências reguladoras não estão subordinadas hierarquicamente ao Poder Executivo e de que o controle dos atos de seus dirigentes por parte do Tribunal de Contas sofre as limitações acima descritas, estaria configurada a plena autonomia desses organismos em relação aos Poderes Constituídos, chegando-se à insólita conclusão de que a sociedade não dispõe de mecanismos de controle das agências, além do recurso à tutela jurisdicional, esta também sujeita a determinadas restrições, segundo parte da doutrina.

 

Em relação especificamente à função decisória dessas entidades, é curiosa a visão de alguns juristas que coloca a agência reguladora num patamar acima e eqüidistante em relação ao concessionário, ao usuário dos serviços e ao próprio Estado, como se, paradoxalmente, a agência constituísse um organismo não só à parte, mas também hierarquicamente superior ao aparelho estatal:

 

“identificamos no interior do processo decisório das agências ao menos três tipos de interesse em jogo: o interesse do próprio ‘Estado’, o interesse das ’empresas concessionárias’ e o interesse dos ‘usuários’. Desvelar qual destes é atendido numa decisão concreta da agência é de fundamental importância para não nos curvarmos à enunciação de um interesse público genérico. Terá legitimidade democrática, portanto, a agência que der canais de representação a cada um destes interesses”.

 

Nesse sentido, é emblemático o fato de diversas agências reguladoras, tanto do âmbito federal como do estadual, terem criado a “organização não-governamental” Associação Brasileira de Agências de Regulação – ABAR, pessoa jurídica de direito privado, sob a forma de associação civil.

 

A autonomia das agências reguladoras é mais expressiva ainda dado o seu poder normativo, ou seja, a atribuição concedida a esses órgãos, nas leis que os criaram, para expedir normas jurídicas. Trata-se, como admite Leila Cuéllar, “de situação polêmica frente ao direito constitucional brasileiro, pois uma interpretação rígida dos princípios da separação dos poderes e da legalidade vedaria a possibilidade de detenção de poder normativo por parte das agências”.

 

A legitimidade democrática desse modelo de Administração Pública é, supostamente, assegurada “por alguns aspectos que, idealmente, seriam capazes de neutralizar as conseqüências do deficit democrático”:

 

“o Legislativo conserva o poder de criar e extinguir agências, bem como de instituir as competências que desempenharão; o Executivo, por sua vez, exerce o poder de nomeação dos dirigentes, bem como o de traçar as políticas públicas para o setor específico; o Judiciário exerce o controle sobre a razoabilidade e sobre a observância do devido processo legal, relativamente às decisões das agências”.

 

No entanto, não fica claro, como já assinalado, como é possível ao Executivo garantir o cumprimento das políticas públicas traçadas, em face da impossibilidade de demissão dos dirigentes das agências reguladoras.

 

Ainda em relação à legitimidade democrática desse modelo, Conrado Hübner Mendes admite que a alegação da doutrina americana, que a justifica pela simples nomeação dos dirigentes pelo Presidente da República, é por demais simplificadora. Esse autor sustenta que “tal conceito de legitimidade democrática é muito mais amplo que a simples nomeação dos dirigentes” e passa por aquilo que houve por bem denominar “procedimentalização do agir do ente regulador”: “a construção de um critério que paute a legitimidade democrática muito mais pelos procedimentos e pela transparência do que pelo mero mecanismo de acesso do dirigente ao seu cargo pode trazer uma verdadeira análise crítica”.

 

Conrado Hübner Mendes identifica, ainda, na redação do art. 1º da Constituição Federal – segundo o qual a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania e o pluralismo político – a possibilidade para a construção de uma interpretação que venha a “dar certa coloração jurídica à exigência de legitimidade democrática das agências reguladoras”. Entretanto, longe de enfrentar a discussão acerca da constitucionalidade do modelo de independência das agências, este autor conclui, simplesmente, que a leitura “dogmática e conservadora” do texto constitucional leva a derrubar toda essa construção, razão pela qual se deva buscar uma interpretação constitucional que leve a “uma visão diferenciada do que seja e de qual seja a função do Direito”.

 

Nesse sentido, é importante destacar que os únicos organismos da Administração Pública federal dotados de autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial, por força da regra contida no art. 207 da Constituição Federal, são as universidades e as instituições de pesquisa científica e tecnológica.

 

4. Considerações acerca dos modelos adotados no exterior

 

As agências reguladoras despontaram no cenário de abertura da economia brasileira e do processo de reforma do Estado, iniciado no Brasil, nos anos 90. Esse modelo de administração pública, com variações importantes, vigora em diversos países do chamado primeiro mundo.

 

Com o objetivo de avaliar os papéis dos órgãos reguladores, ministérios e instituições de defesa da concorrência no setor energético foi conduzido o estudo “Desenhos Institucionais de Regulação de Energia”, coordenado pelo professor Helder Queiroz Pinto Jr., do Grupo de Economia da Energia, do Instituto de Economia da UFRJ.

 

Algumas das conclusões desse estudo foram sumarizadas na matéria publicada no jornal O Globo e são transcritas a seguir:

 

“as agências reguladoras das áreas de energia elétrica, petróleo e gás – o chamado setor energético – têm características bem diversas em outros países. Em alguns, como os Estados Unidos elas têm muita força. Em outros casos, como na Bélgica, são subordinadas a algum ministério. No entanto, todas têm em comum a atribuição de regular, fixar tarifas e fiscalizar o setor energético. Outra característica em comum é que todas, sem exceção, seguem as diretrizes gerais da política energética de seus governos. Países como a Alemanha e o Japão, contudo, não têm agências reguladoras”.

 

“Nenhuma agência nos países pesquisados é independente porque, de uma forma ou de outra, têm que prestar contas ao governo federal ou estadual, seguindo as diretrizes para o setor. Todos os outros países se inspiraram no modelo americano, embora nem todos os órgãos tenham funções dos três poderes”.

“Em todos os países pesquisados, independentemente do grau de autonomia que as agências têm, elas seguem as diretrizes da política macroeconômica dos governos federais para os quais prestam contas”.

 

Os comentários acima são suficientes para se concluir que o legislador brasileiro inovou a disciplina das agências reguladoras ao estender a autonomia desses órgãos em relação ao Poder Executivo além dos limites praticados na maior parte dos países pesquisados. O trabalho foi realizado a partir do estudo da legislação de 25 países, dentre os quais se incluem Argentina, Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Japão, França e México.

 

5. As propostas de alterações legislativas em tramitação no Câmara e no Senado

 

O saldo de toda essa reflexão, neste momento, aponta, inequivocamente, na direção da necessidade de revisão, ao menos parcial, do modelo de plena autonomia das agências reguladoras.

 

Nessa linha, mesmo os mais extremados liberais admitem que “ninguém contesta o direito e o dever de o Estado traçar as diretrizes e planejar, a longo prazo, o desenvolvimento dos setores estratégicos”, assim como defensores do paradigma em vigor reconhecem que “se couber às agências a determinação integral das políticas públicas do setor regulado, pouco restará ao Chefe do Executivo em termos de competência decisória, valendo lembrar que é ele quem detém a legitimidade democrática, recebida nas eleições, para exercer a função administrativa”. No mesmo compasso, Joaquim Benedito Barbosa Gomes acrescenta:

 

“advirta-se, contudo, que não basta conferir estabilidade aos dirigentes de uma agência para que ela automaticamente passe a ser “independente”. Mesmo nos EUA, onde o Congresso exerce com zelo implacável a atribuição hoje crucial de todo órgão legislativo (a fiscalização e o controle), e em que o sistema de ‘checks and balances’ funciona com razoável eficiência, não são raras as críticas de que as agências, ao invés de atuarem em busca do cumprimento do interesse público, procuram preferencialmente atingir seus próprios interesses e os de lobbies eficazmente incrustados e com atuação concertada, tanto nos comitês do Congresso incumbido de supervisioná-las, quanto no âmbito das atividades privadas que lhes incumbe regulamentar e fiscalizar. Noutras palavras, é sério o risco de, ao se retirar as agências do âmbito de influência da Política, submetê-las ao jugo de forças econômicas poderosas”.

 

Neste contexto, foram apresentados dois projetos de lei no intuito de disciplinar a questão do controle das agências reguladoras.

 

O Projeto de Lei do Senado nº 38, de 2003, de autoria do Senador Arthur Virgilio, altera a Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, que “dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências”, instituindo o controle externo das Agências Reguladoras. O art 1º do referido projeto de lei assim estatui:

 

“Art. 1º A Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, que “dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências”, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

 

Art. 10-A. As Agências Reguladoras terão suas atividades submetidas ao exame e sugestões do órgão competente de controle externo.

 

Art. 10-B. O controle e fiscalização externos das atividades das Agências Reguladoras serão exercidos pelo Poder Legislativo na forma a ser estabelecida em ato do Congresso Nacional.

 

§ 1º Integrarão o órgão de controle externo das atividades das Agências Reguladoras os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assim como o presidente da Comissão de Infra-Estrutura do Senado Federal e o presidente da congênere Comissão Permanente da Câmara dos Deputados.

 

§ 2º O ato a que se refere o caput deste artigo definirá o funcionamento do órgão de controle e a forma de desenvolvimento dos seus trabalhos com vistas ao controle e fiscalização dos atos decorrentes da execução das atividades das Agências Reguladoras”.

 

Em que pese o mérito da iniciativa, no sentido de estabelecer uma forma de controle externo das agências reguladoras como previsto no art. 70 da Constituição Federal, a regra contida no art. 1º do PL nº 38/2003 do Senado Federal apenas restaura parcialmente o espírito do art. 50 da Constituição Federal, esvaziado pela autonomia das agências reguladoras em face do Poder Executivo, conferida pela regra do art. 9º da Lei 9.986/00. O art. 50 da Constituição Federal permite que a Câmara Federal ou o Senado Federal, suas respectivas Mesas, bem como qualquer de suas Comissões solicitem informações a Ministros de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República, enquanto que o PL nº 38/2003 concede a prerrogativa de controle e fiscalização das atividades das agências reguladoras a apenas uma comissão mista específica do Congresso Nacional.

 

Com o mesmo propósito do PL nº 38/2003 do Senado Federal, qual seja o de criar mecanismos de controle para as agências reguladoras, porém com solução e pressupostos absolutamente distintos, foi apresentado o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 413/2003, de autoria da Deputada Telma de Souza, cujo art. 3º é reproduzido a seguir:

 

“Art. 3º – O art. 9º da lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

Art. 9º – A exoneração dos Conselheiros e dos Diretores poderá ser promovida pelo Chefe do Poder Executivo em qualquer época, observado o disposto neste artigo.

 

§ 1º – Constituem motivos para a exoneração de dirigentes das Agências, em qualquer época a prática de ato de improbidade administrativa; a condenação penal transitada em julgado, o descumprimento injustificado do contrato de gestão, e a não observância das políticas determinadas pelo Ministério ou Órgão Superior.

 

§2º – A lei de criação da Agência poderá prever outras condições para a perda do mandato”.

 

Na Justificativa do PL nº 413/2003 da Câmara dos Deputados, elaborada com a contribuição de Eros Roberto Grau, sustenta-se que a ausência de subordinação hierárquica das agências reguladoras constitui afronta ao art. 84, II da Constituição Federal.

 

Em síntese, o PL nº 413/2003 da Câmara dos Deputados, se tornado lei, limitará a autonomia das agências reguladoras, sem contudo restabelecer a possibilidade da demissão ad nutum de seus dirigentes por parte do Chefe do Poder Executivo, o que, a rigor, é garantido pela dicção do art. 37, II da Constituição Federal, como discutido acima. Assim, a par das hipóteses previstas na norma contida no art. 9º da Lei 9.986/00 – renúncia, condenação penal transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar – os conselheiros e os diretores serão exonerados, em qualquer época, em caso de descumprimento injustificado do contrato de gestão ou de não observância das políticas determinadas pelo Ministério ou Órgão superior.

 

6. Conclusão

 

Se, por um lado, é forçoso admitir que “as agências reguladoras tornaram-se peças fundamentais no ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos e de sua universalização, integrando ao consumo, à cidadania e à vida civilizada enormes contingentes mantidos à margem do progresso material”, é importante verificar também, que a adoção do modelo de autonomia irrestrita dessas entidades conduz ao paradoxo da coexistência de “administrações paralelas”, no âmbito da Administração Pública.

 

Fundamental, também, a reflexão acerca da ponderação de Carlos Ari Sundfeld sobre o tema:

 

“É inevitável reconhecer que a defesa apaixonada de um modelo de agências independentes pode carregar, no mínimo, uma forte carga de ingenuidade. Protótipos abstratos costumam gerar monstrengos no mundo real, cujas complexidades com freqüência se encarregam de distorcer, mesmo sem negá-los explicitamente, todos os belos princípios de que se partiu. Sonhar com autoridades equilibradas, imparciais, tecnicamente preparadas, democráticas, comprometidas com os interesses gerais, respeitadoras do Direito etc., em nada garante que a realidade vá se ajustar aos sonhos”.

 

Por fim, é importante assinalar que a garantia de estabilidade dos dirigentes dessas agências, sustentada pela regra contida no art. 9º da Lei 9.986/00, vai de encontro aos seguintes dispositivos da Constituição Federal:

 

a) art. 2º: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

 

b) art. 37, II: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;”

 

c) art. 70 (parte final): “A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.”

 

d) art. 84, II: “Compete privativamente ao Presidente da República exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;”

 

e) art. 84, VI: “Compete privativamente ao Presidente da República dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;”

 

f) art. 87, parágrafo único, I: “Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;”

 

Adicionalmente, a autonomia das agências reguladoras, garantida pela estabilidade de seus dirigentes nos termos do art. 9º da lei 9.986/00, torna inócuas, em relação às atividades abrangidas por estes órgãos, as regras contidas nos seguintes dispositivos constitucionais:

 

a) Art. 50: “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando em crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada.”

 

b) Art. 50, § 2º: “As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de informação a Ministros de Estado ou a qualquer das pessoas referidas no caput deste artigo, importando em crime de responsabilidade a recusa, ou o não atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas.”

 

Nesse contexto, as alterações propostas têm o mérito de restaurar o respeito ao princípio da separação dos Poderes e dos demais dispositivos constitucionais acima relacionados, ao mesmo tempo em que preservam, dentro de um critério de razoabilidade, elevado grau de autonomia das agências reguladoras, desejável para o bom desempenho das funções para as quais foram criadas.

 

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* Advogado

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Atualizado em: 27/1/2004 10:57

José Alberto Bucheb

José Alberto Bucheb

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