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Entrevista
Miguel Reale Júnior
O jornal O Estado de S. Paulo de hoje publica entrevista com o jurista Miguel Reale Júnior, concedida ao jornalista Fausto Macedo. Reale diz estar impressionado com a dimensão da crise e diz que teme pela democracia. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
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‘Nunca houve um processo assim’
Jurista Reale Júnior, que já viu muito em 35 anos de carreira, está impressionado com a dimensão da crise e teme pela democracia
O rastro de crimes do mensalão choca até Miguel Reale Júnior, que fez da advocacia sua vida e sua história, que já viu muito nesses 35 anos de peregrinação pelos tribunais, que produziu os principais trechos da petição do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, que é doutor e professor titular da Faculdade de Direito da USP – mas que agora se confessa “estarrecido”, porque nunca viu caso assim. “Dinheiro vivo! “, exclama ele. “Uma via de cooptação pela distribuição de verbas. Nunca houve um processo assim, eu nunca vi.”
Corrupção, ativa e passiva, prevaricação, sonegação, remessas ilegais, lavagem de dinheiro, até crime de responsabilidade e improbidade administrativa que apontam para ministros e para o Palácio do Planalto. Essa é a fiada de delitos que Miguel Reale Júnior identifica à sombra do mensalão, por enquanto. “É um cenário impressionante”, avalia.
Vem mais por aí. “Os fatos ainda não estão claramente definidos nos seus contornos, mas já há provas testemunhais, algumas bem consistentes, e muitos documentos.”
A democracia sob risco,teme o criminalista das grandes causas e desafios. Inconformado, ele comandou, semana passada, sob a tradição e a solenidade das Arcadas do Largo São Francisco, manifesto contra o mensalão – intitulado “Da indignação à ação”-, que reuniu expoentes do mundo jurídico.
“O País está completamente atônito, um episódio que disseminou sentimento de grande frustração em todos”, alerta Reale Júnior.”Sabemos da fragilização dos partidos políticos e o quadro pode se agravar mais em 2006. Teremos uma enxurrada de votos nulos.”
O advogado, que foi assessor especial da Presidência da Assembléia Nacional Constituinte e ministro da Justiça (2002), falou ao Estado sobre o enquadramento criminal, em tese, a que poderão ser submetidos os senhores do mensalão, entre operadores, sacadores e beneficiários. Tudo o que as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) – Correios, Mensalão e Bingos – produziram até aqui, lhe permite mapear o esquema do ponto de vista policial.
Quais são as provas que o sr. Já identificou?
Se juntar todos os elementos é possível formar um conjunto harmônico de provas, testemunhais e documentais. Desde os saques na boca do caixa, que coincidiram com as datas de votações no Congresso (matérias de interesse do Palácio do Planalto) ou a migração de deputados de um partido para outro, reforçando a base aliada do governo. Há, também, as datas anotadas na agenda da secretária (Fernanda Karina Somaggio, ex-secretária do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, acusado de ser um dos operadores do mensalão), ocupação de salas em hotéis de Brasília e a ida de parlamentares ou de assessores ao Banco Rural.
São provas cabais?
Existe um conjunto de indícios veementes, que pode passar a ser conjunto suficiente inclusive para um juízo penal, admitido em processo penal. Tudo isso forma um conjunto do qual se extrai que a versão que se apresenta inconsistente é prova da versão consistente. Ou seja, dizer que recebeu R$ 10 milhões, como no caso do Valdemar Costa Neto (que renunciou ao mandato de deputado pelo PL) para quitar contas de uma campanha realizada um ano e meio antes do recebimento, sem exibição de nota ou nenhum elemento sobre quem recebeu e a quem foi pago, é um forte indicativo disso.
Quais são os crimes?
Há provas indiciárias muito significativas. Os fatos até aqui conhecidos podem configurar corrupção passiva e a corrupção ativa também. Inclusive crime de responsabilidade, que pode alcançar o presidente da República. Se ele sabia (do esquema) pode ser enquadrado por crime de responsabilidade, uma das formas do artigo 6.º da Lei do Impeachment, de 1951. Se a primeira-dama ganhou vestidos de um estilista é demonstração da insensibilidade dos valores de quem preside a administração pública. É um misto de ingenuidade com insensibilidade. A comissão de ética da alta administração proíbe terminantemente que se receba presentes dessa ordem.
Corrupção?
Corrupção é quando se recebe alguma coisa para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Os indícios são nessa direção. Pode configurar improbidade também. A improbidade é quando o funcionário ganha um presente, como uma coleção de vestidos para a primeira-dama com o conhecimento do presidente.
Outros crimes?
A sonegação fiscal. Receberam dinheiro, mas não contabilizaram, não declararam. Seja para campanha, seja de suborno. No caso dos deputados, doações não declaradas constituem evidentemente quebra de decoro. Está na Constituição, recebimentos indevidos.
Evasão de divisas?
As contas lá fora caracterizam evasão de divisas. Há evidências de dinheiro lá fora e remessas de contas no exterior para outras contas no exterior, como a do Duda Mendonça (marqueteiro de Lula na campanha presidencial). Sonegação, evasão de divisas, dinheiro não enviado legalmente, operações não comunicadas ao Banco Central e omitidas da Receita.
Lavagem de dinheiro?
É mais um nessa lista, porque o crime de lavagem fica comprovado quando há um crime antecedente. No caso, a corrupção. Uma gama imensa. Se juntar todos os elementos de prova vai se verificar um conjunto harmônico sobre quem recebeu e quem pagou.
Prevaricação?
A prevaricação existe quando, por interesse pessoal, o funcionário deixa de cumprir dever ou ato de ofício. Se o dinheiro foi usado para interferir em votações no Congresso aí entra mais no suborno, na corrupção passiva. No caso do presidente a prevaricação pode ter ocorrido se não determinou apuração sobre os fatos. Ele teria sido alertado. O presidente tem como seu principal dever zelar pela administração pública. Caracteriza interesse pessoal quando o presidente, tendo conhecimento de uma situação, deixa de atuar para dar proteção ou beneficiar o governo com a obtenção de maioria (no Congresso). Os fatos se relacionam. A contratação de empresas de Gushiken (ex-ministro Luiz Gushiken) é fato que pode entrar na prevaricação. São hipóteses, não estou afirmando que existe situação delituosa.
O que mais?
O que não está claro, ainda, são as movimentações bancárias. Os empréstimos que Marcos Valério fez junto ao BMG (R$ 2,4 milhões) e ao Banco Rural (R$ 3 milhões) e teria repassado ao PT. O relatório da CPI (a dos Correios) demonstra empréstimos bancários sem a menor garantia, por conhecimento ou por amizade. O Marcos Valério disse que tinha o aval do José Dirceu (ex-ministro da Casa Civil). Ainda que tivesse esse aval ele tinha caráter político. Não é um aval bancário. Empréstimos nessa base, sem nenhuma garantia, sem o menor lastro, configuram gestão temerária dos bancos. Aliás, esses empréstimos estão vencidos há tanto tempo. Agora vão cobrar.
A análise desses papéis pode levar à descoberta de novos crimes?
O que falta efetivamente é fazer o cruzamento de dados, pegar os extratos bancários e verificar o dinheiro movimentado nas contas de Marcos Valério. É quase R$ 1 bilhão. De onde veio esse dinheiro?Está faltando também saber o destinatário final. Existem alguns indicativos sobre quem recebeu. São valores altamente suspeitos. É preciso chegar à origem. De onde saiu tanto dinheiro? Devem (a CPI e a Polícia Federal) se debruçar sobre os papéis. Houve um processo que se espalhou por vários segmentos e não se tem ainda elemento claro sobre a fonte desse dinheiro.
O rastreamento telefônico é prova dos crimes?
Buratti (Rogério Tadeu Buratti, ex-assessor do ministro Antonio Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto) ligou cerca de 100 vezes para o Ministério da Fazenda. Não foram oito ligações. E tem a presença de Marcos Valério no Palácio do Planalto. Tem os encontros dele com os bancos, reuniões com José Dirceu. São elementos que vão conjugando. Marcos Valério é operador (do mensalão) e apresenta os bancos ao chefe da Casa Civil. Como se explica isso?
Qual a diferença do esquema PC Farias para o mensalão?
Elaborei grande parte da petição de impeachment de Fernando Collor de Mello. No caso PC os fatos eram circunscritos. Aqui os fatos se espalham a cada hora. Ato do momento surge uma prova aqui, outra ali.
Quais as conseqüências?
Isso tudo vai repercutir intensamente nas eleições de 2006. Teremos uma abstenção muito grande. Votos nulos e brancos, uma enxurrada deles vai se abater, principalmente sobre a Câmara, trazendo o risco até de anulação da eleição. O que me impressiona é que realmente todo o processo democrático está contaminado. Tudo isso choca porque põe em jogo a credibilidade da democracia.
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Frases
“Os fatos ainda não estão claramente definidos nos seus contornos, mas já há provas testemunhais, algumas bem consistentes, e muitos documentos”
“O País está completamente atônito, um episódio que disseminou sentimento de grande frustração em todos”
“Os fatos até aqui conhecidos podem configurar, inclusive, crime de responsabilidade que pode alcançar o presidente da República”
“A contratação de empresas de Gushiken é fato que pode entrar na prevaricação”
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Por: Redação do Migalhas
Atualizado em: 5/9/2005 08:19