O crescimento dos casos de furto famélico   Migalhas
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O crescimento dos casos de furto famélico – Migalhas

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Em um país onde a insegurança alimentar avança assustadoramente, o furto famélico deve ser considerado como estado de necessidade.

A crise alimentar que assola nosso país, cresce exponencialmente e foi agravada com os reflexos da pandemia do COVID-19, saltando de 19,1 milhões de pessoas em 2020, para 33,1 em 20221 de pessoas que vivem sob a tortura da insegurança alimentar.

Isso significa que a cada 10 (dez) famílias, somente 4 (quatro) famílias possuem acesso total à alimentação, dobrando os casos de fome com famílias com crianças menores de 10 (dez) anos, o que acarreta em pouco mais de 1 (um) ano, 14 (quatorze) milhões de novos famintos no Brasil2.

Com esses dados alarmantes, tem aumentado, principalmente, a partir do ano de 2019 os casos de furto famélico em razão das pessoas estarem passando fome. A Constituição Federal em seu artigo 6º, através da Emenda Constitucional nº. 64/2010, erigiu como direito social a alimentação, conforme depreende-se:

“As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O art. 6º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (NR)

Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, em 4 de fevereiro de 2010″. Grifo nosso.

Assim, como as necessidades básicas de um ser humano são direitos inerentes a todas as pessoas, o furto famélico pode ser definido como aquele estado em que o agente ou terceiro, furta diante de uma situação de risco (fome, higiene pessoal, medicamentos) e não tenha opção de realizar outra conduta em razão de sua sobrevivência. É necessário que seja a única opção para o agente.

Nesses casos, o Código Penal em seu artigo 23, inciso I3 e artigo 244 , discorrem sobre o estado de necessidade que é uma excludente de ilicitude.

Em que pese muitos magistrados e membros do Ministério Público analisarem a questão da reincidência para a condenação no crime do artigo 155 (furto), a questão deve ser sopesada e verificada caso a caso. Não que a reincidência deva ser desprezada, mas analisada para saber se no momento do cometimento da conduta, esta seria a única alternativa para o agente.

Ademais, na prática o que está acontecendo é a decretação da prisão pelo juízo singular e sua manutenção na segunda instância, sendo o problema resolvido apenas nos tribunais superiores (STF e STJ), mantendo no cárcere, pessoas que furtaram por estarem com fome ou necessitando de um produto de higiene pessoal ou, então, de um medicamento.

É necessário coibir o punitivismo como modelo ideal na resolução da lide penal. É hora de se perguntar qual será o aprendizado e a relevância da manutenção da prisão, que sempre deverá ser a última ratio.

É cediço que o cárcere não educa e deve ser disponibilizado somente em casos, que realmente a não decretação da prisão causarão um malefício para a sociedade, com risco imediato, colimando para a segregação cautelar.

No HC 119672/STF , foi reconhecido o furto famélico, de ofício. Veja-se a seguinte Ementa:

EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA ATO DE MINISTRO DE TRIBUNAL SUPERIOR. INCOMPETÊNCIA DESTA CORTE. TENTATIVA DE FURTO. ART. 155, CAPUT, C/C ART. 14, II, DO CP). REINCIDÊNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. FURTO FAMÉLICO. ESTADO DE NECESSIDADE X INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. SITUAÇÃO DE NECESSIDADE PRESUMIDA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. HABEAS CORPUS EXTINTO POR INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. A aplicação do princípio da insignificância deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de se evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais. 3. O valor da res furtiva não pode ser o único parâmetro a ser avaliado, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato para decidir-se sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela, bem assim o reflexo da conduta no âmbito da sociedade. 4. In casu, a) a paciente foi presa em flagrante e, ao final da instrução, foi condenada à pena de 4 (quatro) meses de reclusão pela suposta prática do delito previsto no art. 155, caput, c/c o art. 14, II, do Código Penal (tentativa de furto), pois, tentou subtrair 1 (um) pacote de fraldas, avaliado em R$ 45,00 (quarenta e cinco reais) de um estabelecimento comercial. b) A atipicidade da conduta está configurada pela aplicabilidade do princípio da bagatela e por estar caracterizado, mutatis mutandis, o furto famélico, diante do estado de necessidade presumido evidenciado pelas circunstâncias do caso. 5. O furto famélico subsiste com o princípio da insignificância, posto não integrarem binômio inseparável. É possível que o reincidente cometa o delito famélico que induz ao tratamento penal benéfico. 6. Os fatos, no Direito Penal, devem ser analisados sob o ângulo da efetividade e da proporcionalidade da Justiça Criminal. Na visão do saudoso Professor Heleno Cláudio Fragoso, alguns fatos devem escapar da esfera do Direito Penal e serem analisados no campo da assistência social, em suas palavras, preconizava que “não queria um direito penal melhor, mas que queria algo melhor do que o Direito Penal”. 7. A competência desta Corte para a apreciação de habeas corpus contra ato do Superior Tribunal de Justiça (CRFB, artigo 102, inciso I, alínea “i”) somente se inaugura com a prolação de decisão do colegiado, salvo as hipóteses de exceção à Súmula nº 691 do STF, sendo descabida a flexibilização desta norma, máxime por tratar-se de matéria de direito estrito, que não pode ser ampliada via interpretação para alcançar autoridades – no caso, membros de Tribunais Superiores – cujos atos não estão submetidos à apreciação do Supremo. 8. Habeas corpus extinto por inadequação da via eleita. Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da ação penal, em razão da atipicidade da conduta da paciente.

O Superior Tribunal de Justiça, também vem acolhendo os casos de furto famélico6 e decidindo monocraticamente, mesmo denegando a ordem em Habeas Corpus, estão concedendo de ofício a exclusão da ilicitude, conforme dito alhures.

Com efeito, o que se denota e se espera, é que os casos de furto famélico sejam julgados sob a ótica da cautela, pois aquele que se encontra em condição de penúria e desespero alimentar, não pode ser punido com o rigor da lei que se pune uma pessoa que age de forma livre e consciente na prática  do crime.

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1 https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2022/06/12/fome-cresce-atinge-33-milhoes-e-se-torna-o-maior-problema-do-brasil.htm.

2 Extraído do site: https://www.brasilsemfome.org.br.

3 Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:  I – em estado de necessidade

4 Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

§ 1º – Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.         

§ 2º – Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.  

5 HC 119672 / SP – SÃO PAULO. HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. LUIZ FUX. Julgamento: 06/05/2014. Publicação: 03/06/2014. Órgão julgador: Primeira Turma. 

6 PROCESSO HC 752076. RELATORA MINISTRA LAURITA VAZ. DATA DE PUBLICAÇÃO: 01/07/2022. PROCESSO HC 750328. RELATOR MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA. DATA DA PUBLICAÇÃO: 23/06/2022.  PROCESSO HC 734359. RELATOR MINISTRO JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJDFT). DATA DA PUBLICAÇÃO 23/06/2022.

 

Maurício Luís Maranha Nardella

Maurício Luís Maranha Nardella

Advogado criminalista com cursos de extensão em processo penal, direito penal, execução penal e tribunal do júri. Parceiro em outros escritórios que não atuam na área penal.

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