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Entrou em vigor no dia 18 de julho passado, o decreto 11.129/22 (que revoga o decreto 8.420, de 18 de março de 2015) e que trouxe nova regulamentação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), a qual dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Pela Lei Anticorrupção são passíveis de responsabilização as empresas que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito. A apuração da responsabilidade administrativa de pessoa jurídica, decorrente do exercício do poder sancionador da administração pública, será efetuada por meio de Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) ou de Acordo de Leniência.
Consideramos que, em relação ao novo texto então vigente, alguns dos principais aspectos modificativos de atenção aos interessados:
Importante observar que agora a Autoridade Competente possui o prazo fixado para a conclusão da investigação preliminar, que não excederá cento e oitenta dias, admitida a prorrogação, mediante ato da autoridade.
Ao final da investigação preliminar, o novo decreto dispõe que serão enviadas à Autoridade Competente as peças de informação obtidas, acompanhadas de relatório conclusivo acerca da existência de indícios de autoria e materialidade de atos lesivos à administração pública federal, para decisão sobre a instauração do PAR.
Este, na nossa visão, é um dos principais pontos da alteração normativa da Lei Anticorrupção: exigência de indícios de autoria e materialidade dos atos lesivos sob pena de se impedir a instauração de um Procedimento Administrativo de Responsabilização.
Isso porque essa questão remonta tanto à garantia da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF) quanto aos princípios fundamentais constitucionais orientadores de qualquer atuação da Administração Pública, endossados também na Carta Magna, no seu art. 37 e no art. 2º da lei federal 9.784/99, o que perfaz necessário também o diálogo de fontes com a matéria da “Justa Causa” para a ação penal, prevista no art. 395, III do CPP, em que impõe o lastro mínimo probatório para o oferecimento de denúncia ou queixa (art. 41 do CPP) sob pena de rejeição da exordial acusatória.
Pois bem, a presunção de inocência milita em favor de todos os administrados, não podendo ser descartada no procedimento administrativo-disciplinar, pois compete à Administração provar a irregularidade ou a culpa da pessoa jurídica que atue lesivamente ou de eventual servidor.
E, em face dos pilares da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência nos processos administrativos, o art. 2º da lei 9.784/99 exigiu em seu inciso IV que o Poder Público atue rigorosamente, em nome de interesses públicos, com padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, ou seja, que haja um atuar descomprometido com pensamentos ou interesses pessoais, o que deve reger tanto a suposição quanto da decisão de instauração de um procedimento administrativo ou disciplinar. Ou seja, comprovada a má-fé ou a falta de justa causa para a instauração do procedimento administrativo ou disciplinar, é retirada a faculdade do Poder Público em promover a apuração através do aludido inquérito administrativo genérico, sem elementos ou substâncias.
Vale endossar que no Processo Administrativo Disciplinar o ônus da prova incumbe à Administração, o que impõe nos processos administrativos de responsabilização por atos de corrupção esse ônus também, trazendo-se a obediência à Autoridade Administrativa promover o levantamento de elementos informativos para se evitar a devassa a pessoas jurídicas e de inúmeras pessoas a elas envoltas por suposta prática de ato previsto na Lei Anticorrupção (v.g. AGU – Parecer AGU/MF – 04/98- Processo 10168.001291/95-93, de 23 de abril de 1998.).
Essa transposição no âmbito das investigações preliminares da Lei Anticorrupção desvela um importante passo para fins de sancionamento estatal e de limitação dos atos investigativos em geral: os limites democráticos indeléveis para evitar a exposição a riscos reputacionais indevidos às pessoas jurídicas, capazes de, por si sós, gerarem prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.
Assim deve ser para que o indivíduo a quem se imputa determinado fato ilícito previsto na Lei Anticorrupção e para possa se defender adequadamente, deve haver elementos mínimos que especifiquem circunstâncias objetivas e subjetivas narradas e minimamente comprovadas para que um Procedimento Administrativo de Responsabilização seja sequer iniciado.
O fato de a lei exigir que o relatório das investigações preliminares traga o maior detalhamento possível das circunstâncias do suposto ato ilícito não significa, de forma nenhuma, que o processo administrativo só possa ser deflagrado com fundamento em provas cabais a respeito do fato e de sua autoria. O procedimento investigatório preliminar não pode pretender angariar provas irrefutáveis ou incontestes de que o ato ilícito contra a Administração Pública nacional ou estrangeira tenha ocorrido e tenha sido praticado – inequivocamente – por tal pessoa jurídica
A investigação preliminar bem delimitada existe para reunir, minimamente, os indícios, ou seja, os elementos informativos que indiquem a materialidade delitiva e indícios de autoria. É suficiente, para a abertura do Processo Administrativo de Responsabilização, que a investigação preliminar revele indícios das circunstâncias nas quais ocorreu o fato ilícito e quem “possivelmente” o praticou. Isso, ao menos, já impede abertura de PAR’s de forma genérica e ampla, o que é um ganho com o novo decreto.
Analogicamente ao caso do relatório das investigações preliminares da Lei Anticorrupção, o STJ firmou a tese de que, em se tratando de conceituação de indícios de materialidade (elementos informativos de que o fato ocorreu) e autoria (indícios de que o imputado é o possível autor do fato narrado como ilícito), no processo penal, a denúncia que cumpre os requisitos do art. 41 do CPP, descrevendo adequadamente o fato criminoso, deve ser recebida se houver Justa Causa, mas caberá à instrução processual demonstrar a certeza necessária para a condenação (HC 433.299/TO, j. 19/4/18).
Após relatada a investigação preliminar e iniciado o PAR, e, após a sua instrução obedecido o devido processo legal administrativo, de acordo com o art. 19 do novo decreto que altera a lei 12.846, de 2013, as pessoas jurídicas podem ser sancionadas em: I – multa; II – publicação extraordinária da decisão administrativa sancionadora e, III) restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a administração pública, a serem aplicadas no PAR na forma da legislação de licitações.
Para fins de avaliação do faturamento como base de cálculo para a fixação da multa que trata a reforma na Lei Anticorrupção, o valor será o atualizado até o último dia do exercício anterior ao da instauração do PAR. Caso não haja prova desse valor o valor da multa será estipulado observando-se o intervalo de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais) e o limite mínimo da vantagem auferida, quando for possível sua estimação.
E, por fim, para fins de acordo de leniência, ou seja, para a formalização de termo de negociação entre a Autoridade Competente e a empresa supostamente responsável pelo ato ilícito que colabore com as investigações preliminares e que detenha os demais elementos legais para se comprometer a reparar danos causados à Administração Pública nacional ou estrangeira, é imprescindível: a adoção, a aplicação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo V, bem como o prazo e as condições de monitoramento.
Por falar em programa de integridade, cabe destacar que o novo decreto ainda exige a sua “efetividade”, em relação à sua existência e à sua aplicação. Para fins do disposto neste Decreto, o programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no “conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes”, com objetivo de: I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.
O programa de integridade deve, sob a nova ótica, ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual, por sua vez, deve garantir o constante aprimoramento e a adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.
E, por fim, para atribuição de avaliação quanto à sua “efetividade”, o que vai impactar na redução da sanção ou das medidas negociais do Acordo de Leniência, o programa de integridade nos termos da nova redação legal deve estar de acordo com os quatorze parâmetros ou pilares estabelecidos no art. 57, § 2º, do decreto 11.129/22, dentre eles: o comprometimento da alta administração; as normativas internas sobre padrões de conduta e códigos de ética; os treinamentos; a gestão de riscos; registros contábeis e controles internos; procedimentos de fiscalizações e investigações internas; canais de denúncia e proteção aos denunciantes; diligências com terceiros; supervisão e políticas de brindes e patrocínios; monitoramento contínuo e independência dos membros do Compliance para fiscalização e aplicação das sanções em caso de descumprimento das normativas internas e externas previstas etc.
Em suma, percebe-se que as inovações trazidas a partir da Secretaria-Geral da Presidência da República, com a promulgação desse novo decreto, almeja, de um lado, o aprimoramento da ação da Controladoria-Geral da União na responsabilização de pessoas jurídicas por atos ilícitos contra entes públicos com o fomento (ainda que normativo) das estruturas de integridade das pessoas jurídicas, e, de outro, a delimitação de critérios de autoria e materialidade para barrar processos administrativos de responsabilização que possam ter consequências reputacionais e financeiras às empresas brasileiras.
Rafhaella Cardoso
Advogada Criminalista. Pós-Doutoranda pela UFMG e Doutora pela USP.