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É obrigação do Poder Judiciário tratar de forma isonômica as partes de um processo judicial. O art. 7º do Código de Processo Civil (CPC) estabeleceu a regra de que Deve ser garantido às partes um tratamento equilibrado no processo, e lhe devem ser oportunizadas condições equivalentes, ao longo do trâmite processual. Ademais, incumbe ao Juiz, enquanto aplicador da lei, garantir a isonomia de tratamento (art. 139, inciso I, do CPC).
Essa regra geral de tratamento igualitário, no entanto, não deve ser observada apenas em sua acepção literal. Isso porque, em situações específicas, não será possível aplicar essa igualdade de imediato. A depender da capacidade de cada uma das partes, deve o julgador zelar pela isonomia substancial, cuja premissa é o tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades. Um exemplo prático deste cenário é a famigerada “inversão do ônus da prova”, teoria comumente aplicada no Direito do Consumidor.
Existem cenários em que se fará necessária uma flexibilização desta regra, uma vez que o objetivo final da demanda judicial é o de eliminar conflitos e fazer justiça por meio da aplicação da Lei ao caso concreto. O objetivo, portanto, é o de “fazer Justiça”. E quando as partes estão desiguais na demanda, se faz necessário um tratamento individual e específico ao caso.
E quando se fala em uma discussão judicial de natureza tributária, normalmente se vislumbra um abismo entre o contribuinte e o Estado brasileiro. O contribuinte luta contra um adversário feroz, uma vez que se presume que os atos do agente público que ensejaram aquela autuação fiscal são corretos. Mas isso não significa, necessariamente, que não possa ser questionado. O processo tributário é, exatamente, o meio (judicial ou administrativo) que o contribuinte pode se valer para apontar desrespeito da Administração Pública a leis e regulamentos, afastando, assim, possíveis atos inconstitucionais e abusivos.
No caso ora analisado, o Estado de Pernambuco executou um contribuinte pessoa jurídica que atua no ramo de mineração de gipsita, por supostos débitos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) oriundos de operações de venda desse minério para empresas de fora daquela unidade da federação. Em Pernambuco, decretos estaduais que versam sobre a comercialização de gipsita estabelecem que a tributação de ICMS deve ser feita na origem, em se tratando de casos em que o contribuinte real não possui inscrição na Secretaria da Fazenda do estado (Sefaz-PE). Portanto, as mineradoras atuam como contribuinte-substituto, que é aquele eleito para efetuar a retenção e/ou recolhimento do tributo.
Esta empresa de mineração sofreu autuação por parte da Sefaz-PE, que lhe imputou uma multa superior a R$ 1.300.000, por supostamente ter deixado de cumprir com sua obrigação de contribuinte-substituto. Esta autuação administrativa rapidamente se transformou em uma Execução Fiscal. Em análises contábeis, o contribuinte autuado observou que, dentre as transações citadas pelo auditor fiscal, constavam notas fiscais que envolviam vendas para empresas cujas sedes estavam localizadas em Pernambuco, e que possuíam inscrição estadual na Sefaz-PE. Portanto, não cabia à empresa autuada o papel de contribuinte-substituto. Ademais, a existência de empresas locais na listagem de transações comerciais apontadas como carentes de repasse de ICMS apontava para uma ausência de certeza e de liquidez daquele crédito tributário. E, em sendo incerto e ilíquido, o lançamento tributário deve ser considerado nulo.
Esta tese foi apresentada pela empresa autuada em sede de Embargos à Execução Fiscal, em que se pugnou pela produção de prova pericial, notadamente a realização de uma análise contábil. Para tanto, a empresa autuada apresentou petição nos autos do processo eletrônico, onde justificou que, por força do §5º do art. 11 da Lei 11.419/06 (Lei do Processo Eletrônico), faria a apresentação de toda a documentação comprobatória de sua tese junto à secretaria da Vara.
A documentação consistia, basicamente, nos arquivos originais dos registros das transações fiscais analisadas pelo auditor fiscal, que ultrapassavam a casa do milhar. Ademais, em razão das limitações de compatibilidade do PJe, o formato original dos arquivos não era aceito pela ferramenta. Toda a documentação foi gravada em mídias físicas, e apresentadas ao chefe de secretaria, que certificou o ato e fez o depósito destas no arquivo da vara.
O processo, então, restou paralisado em função da pandemia, até que foi abruptamente sentenciado pelo juízo da comarca de Ipubi. Em um julgamento antecipado do feito, foi indeferida apenas na sentença a juntada das mídias físicas, e julgado o feito improcedente sob a alegação de ausência de provas. Insatisfeita, a empresa autuada apresentou Apelação em face da sentença, em que apontou, em suma:
a) O equívoco na prolação da sentença, o que agride o princípio da não-surpresa (art. 10 do CPC) e da cooperação (art. 6º do CPC), uma vez que constava pedido expresso de realização de perícia técnica contábil, tendo o juízo de primeiro grau ignorado este pedido, e, ato contínuo, julgado que inexistiam elementos de provas aptos a embasar a pretensão da empresa autuada;
b) O cerceamento do direito de defesa, uma vez que não foi aberta uma fase instrutória, implicando em inobservância do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF; e art 7º, do CPC), e do contraditório e ampla defesa (art. 5.º, LV, da CF).
Todos esses pontos foram analisados pela 2ª Câmara Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco. A Corte analisou que a apresentação de mídias digitais contendo documentos essenciais para comprovar a tese de defesa, deveria ter sido aceita, uma vez que não se pode imputar às partes qualquer penalidade processual em face das limitações técnicas do PJe. Ademais, ao tratar da quantidade relativa à documentação – que superava a casa do milhar -, ainda que fosse possível digitalizar uma grande quantidade de documentos, no momento em que fosse feita a separação de arquivos para respeitar o limite máximo de 3Mb do sistema PJe, atingiria-se uma quantidade exorbitante de anexos, inviabilizando o seu protocolo via sistema.
Apesar das facilidades trazidas pelo sistema eletrônico do processo, não se pode negar que ainda existem mazelas que dificultam seu uso pelos operadores do direito, especificadamente, quando se volta para a protocolização das peças processuais e documentos. Destarte, não é razoável a vedação à produção da prova pericial, e o posterior julgamento do feito por suposta ausência de comprovação do alegado.
E assim, a 2ª Câmara Direito Público, de forma unânime, considerando a existência de evidente cerceamento do direito de defesa, determinou a anulação da sentença, promovendo a imediata devolução dos autos ao juízo a quo, para que admita o recebimento de toda a documentação apresentada, e posteriormente realize a perícia contábil necessária.
Evilasio Tenorio da Silva
Advogado com mais de uma década de atuação. Atuação especializada em Direito da Saúde, Civil, Societário e Empresarial. Consultor. Fundador do Tenorio da Silva Advocacia.