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Antes que fosse possível fazer essa definição, com certa segurança, e hoje contar com legislação específica, a demanda de mercado, a prática empresarial trataram de agir e, como sempre, chegaram primeiro. O resultado desse “agir” foi positivo: a doutrina e a jurisprudência desempenharam seu valioso papel de colocar os pingos nos “is” e respaldar o que o mercado já vinha fazendo na prática há anos. Essa etapa do processo ficou conhecida como desmaterialização ou despapelização dos títulos de crédito e o princípio da incorporação (cartularidade) foi colocado em xeque, pois essa movimentação visava reconhecer que os registros eletrônicos também são aptos a armazenar todos os requisitos e exigências da obrigação cambiária, tal qual fazia a cártula.
O marco jurisprudencial dessa desmaterialização ocorreu, em 2012, com o julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp 1.024.91/PR), pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu que a evolução do comércio e da atividade empresarial exige dinamismo e celeridade, o que permite, com base em sua marcante fonte consuetudinária, incorporar novos meios e novas formas através de interpretação mais ampliativa dos dispositivos, sobretudo, à exceção ao princípio da cartularidade já existente no art. 13 §1º da lei 5.474/68 (Lei das Duplicatas), e por fim, reconheceu a legislação existente até então como suficiente a embasar a existência e a exequibilidade da duplicata virtual.
Essa orientação foi influenciada pelo advento do Código Civil, mais precisamente do art. 889, §3º que passou a admitir no ordenamento jurídico brasileiro a emissão de títulos de crédito a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente.
Essas duas premissas reuniram as condições ideais para influenciar o mercado e pressionar o legislativo a regular especificamente o tema, já a utilização os títulos escriturais eram uma realidade e havia uma normatividade assistemática.
O primeiro título de crédito escritural concebido por lei própria foi a duplicata escritural ¾ decerto por toda construção consuetudinária que antecedeu o reconhecimento da duplicata virtual ¾, através da edição da lei 13.775/18, que além de criá-la, determinou que seu registro passe a ser feito por uma entidade de registro devidamente autorizada a prestar os serviços de escrituração e alterou o art. 8º da Lei de Protestos (lei 9.492/97), passando a admitir o envio das indicações para protesto por meio magnético ou gravação eletrônica de dados.
Seguindo esse movimento, em 2019, foi editada a Medida Provisória 897, convertida na lei 13.986/20, que trouxe novas previsões e alterou o texto normativo da lei 8.929/94, lei 11.076/04, a lei 10.931/04 e decreto-lei 167/67 passando a admitir que os títulos de crédito por elas regulados passassem a admitir a emissão sob a forma escritural, respectivamente, Certificado de Depósito Bancário (CDB) Cédula de Produto Rural (CPR), Certificado de Depósito Agropecuário(CDA), Warrant Agropecuário (WA), Letra de Crédito Imobiliário (LCI), Cédula de Crédito Imobiliário (CCI), Cédula de Crédito Bancário (CCB), Cédula de Crédito Rural (CCR) e Nota Promissória Rural (NPR).
Essa forma de suporte documental dos títulos de crédito, estabelece uma forma diferenciada de emitir, circular, pagar, protestar e executar, que exige dos operadores do direito muito cuidado, porquanto a escrituração quebra inúmeros paradigmas e modifica a maneira de se constituir e circular o crédito. Para promover uma execução, por exemplo, será necessária a emissão do relatório (certidão) do título escritural expedido pela entidade escrituradora para que a inicial possa ser instruída, contudo, esse documento não pode ser confundido com títulos cartulares, porque saíram do meio eletrônico e corporificaram-se em um documento¾ o que Fabio Ulhoa Coelho, com propriedade, chama de transmutação do suporte ¾, que nada mais é do que a representação gráfica daquilo que está registrado sob a forma escritural.
A escrituração deve ser feita por entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil, e especificamente, para a Cédula de Crédito Bancário e Cédula de Crédito Rural, as próprias instituições financeiras emitentes poderão fazê-lo conforme autoriza a lei reguladora e a Circular BCB 4.036/20.
A legislação instituindo títulos de crédito específicos sob a forma escritural, se deve a um movimento político-legislativo contínuo de modernização da legislação empresarial para melhoria do ambiente de negócios no Brasil e da posição no ranking doing business iniciado com a edição da lei 13.874/19, apelidada de Lei da Liberdade Econômica, de modo que a regulação cambiária não poderia ficar de fora haja vista seu papel de instrumento de circulação de crédito.
Sem crédito a economia não gira, e sob a forma escritural, a operação bancária torna-se mais célere, mais segura – mais segura não significa totalmente livre de inseguranças, diga-se – e tem potencial para baratear a concessão de crédito, já que impedirão que títulos possam ser descontados mais de uma vez, evitando-se fraudes e dando mais higidez ao mercado.
Simone Menezes Gantois
Doutoranda e mestre em Direito Empresarial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Coordenadora Adjunta da pós-graduação em Advocacia Empresarial do CEPED-UERJ. Professora de Direito Empresarial. Advogada. Mediadora