Novo padrão probatório para aceitação de testemunhos policiais    Migalhas
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Novo padrão probatório para aceitação de testemunhos policiais – Migalhas

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Há tempos consolidou-se em nossos Tribunais o entendimento pela validade dos depoimentos prestados por agentes estatais, havendo inclusive julgados afirmando que mereceriam maior crédito porque prestados por servidores, no exercício de suas funções.

Entretanto, recentes decisões judiciais têm causado alteração no padrão de provas anteriormente exigido apontando no sentido de que as palavras dos policiais, como toda prova testemunhal, são passíveis de falhas, o que  recomenda (ou exige) a adoção, por parte do Estado, de cautelas maiores que a de simplesmente carrear à Defesa o ônus de comprovar a parcialidade do agente ou de equívoco fático em seu testemunho.

Não se pretende aqui colocar em xeque indistintamente a idoneidade dos agentes estatais, mas apenas apontar que a falibilidade de nossa memória e, portanto, da prova testemunhal em si, recomenda, como padrão probatório mínimo a fundamentar condenações criminais, a exigência de elementos outros, antes impossíveis devido ao “estado da arte” no ramo tecnológico, mas hoje facilmente acessíveis ao Estado.

Reporto-me aqui, para ilustrar a precariedade da prova testemunhal, ao famoso caso Watergate, citado no livro Subliminar, de Leonard Mlodinow, em que John Dean, conselheiro do Presidente Nixon, com alto envolvimento na trama criminosa, prestou depoimentos detalhados, levando todos a crer que detinha memória extraordinária, sendo apelidado de “gravador humano”.

Posteriormente, contudo, seus depoimentos foram comparados com as reais gravações pelo psicólogo Ulric Neisser, concluindo que John Dean “estava mais para romancista histórico do que para gravador humano. Não acertou quase nada em suas recordações do conteúdo das conversas. Aliás, nem chegou perto.” (p. 68/69, do livro Subliminar, de Leonard Mlodinow, editora Zahar, 2013).1

Assim sendo, basear condenação criminal exclusivamente em prova testemunhal – sabidamente o mais precário dos meios de prova -, inclui, ainda que tacitamente, a aceitação de condenações injustas, algo inaceitável num Estado Democrático de Direito.

A prova testemunhal, que por si só é falível, suscita ainda maior suspeita quando oriunda de agentes estatais diretamente envolvidos nos fatos.

Isso porque, conforme há mais de século advertia Cessare Beccaria, a verdadeira credibilidade do testemunho deve ser na proporção de seu interesse em declarar ou ocultar a verdade nota2.

Logo, sendo certo que as pessoas em geral (o que inclui os agentes estatais) tenham interesse em justificar as próprias condutas, tem-se que sendo a testemunha policial a responsável pela prisão ou acusação de alguém, tem ela o humano interesse em justificar sua conduta, o que, por si só, pode macular a isenção de seu depoimento.

É, sem dúvida, portanto, urgente a adoção de critérios mais rigorosos para sua aceitação como meio válido de prova.

Desta forma, novo entendimento jurisprudencial tem surgido de modo a exigir consistência intrínseca e extrínseca do depoimento testemunhal, ou seja, o depoimento deve ser verossímil e encontrar respaldo tanto nos elementos dos autos quanto naquilo que comumente se verifica no mundo real.

Nesse sentido, já decidiu o E. STJ. Vejamos:

“(…) O testemunho prestado em juízo pelo policial deve ser valorado, assim como acontece com a prova testemunhal em geral, conforme critérios de coerência interna, coerência externa e sintonia com as demais provas dos autos, não atendidos na hipótese. Inteligência dos arts. 155 e 202 do CPP. (…)” (STJ, AREsp 1.936.393/RJ, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgamento em 25/10/2022, DJe 8/11/22).

Não basta assim a burocrática comparação entre os depoimentos dos agentes estatais prestados em juízo e na fase de investigação, mas além disso, deverá o julgador atentar-se para afirmações que ofendam as chamadas máximas de experiência, de forma que testemunhos que atentem ao que ordinariamente acontece não devam ser considerados aptos a fundamentar eventual condenação.

Nesse sentido, o art. 375, do CPC, com aplicação subsidiária ao processo penal, autoriza o uso das regras de experiência comum com base no que ordinariamente acontece.

Evidentemente, portanto, nem sempre os testemunhos dos agentes estatais devem ser considerados meio idôneo de prova, eis que, quando contrariarem os demais elementos dos autos ou as regras de experiência, caberá ao Estado (e não à Defesa) demonstrar, por outros elementos, sua veracidade.

Exemplos corriqueiros de afirmações de agentes estatais que colidem com as regras de experiência comum e que, portanto, não podem ser consideradas, quando isoladas, como prova judicial apta a embasar condenação criminal são as de autorização de ingresso domiciliar, autorização de acesso a mensagens em aparelhos de telefonia e a confissão informal3.

De fato, não se pode admitir tamanha ingenuidade ao analisar as provas em matéria penal, pois em jogo está, não só a liberdade do acusado (o que já seria muito), mas ao direito de todos à privacidade, a intimidade do lar e a dignidade da pessoa humana, em especial dos cidadãos menos favorecidos  que, quase sempre, são o alvo preferencial de abusos estatais.

Medida interessante no sentido de robustecer as provas judiciais consiste na adoção do uso de câmeras pelos policiais, o que eliminaria eventual dúvida (seja por lapsos de memória ou pela ânsia em justificar sua conduta), não ficando o julgador adstrito exclusivamente aos testemunhos, quase sempre em dissonância ao alegado pelo réu.5

Corroborando a tese acerca da necessidade de elementos outros a fortalecer os testemunhos dos agentes policiais, convém mencionar os posicionamentos dos ministro Ribeiro Dantas Reynaldo Soares da Fonseca que, embora vencidos, declararam a necessidade de que tais testemunhos sejam corroborados por gravação de áudio e vídeo, “ex vi”:

“(…) Ressalta-se a visão minoritária do Ministro Relator, acompanhada pelo Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, segundo a qual a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo. (…) Embora não tenha prevalecido no julgamento essa compreensão restritiva do Ministro Relator sobre a necessidade de corroboração audiovisual do testemunho policial, foi unânime a votação pela absolvição do réu, por insuficiência de provas, na forma do art. 386, V e VII, do CPP.” (STJ, AREsp n. 1.936.393/RJ, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgamento em 25/10/2022, DJe 08/11/2022 – grifos nossos).

Válido aqui consignar também a recente decisão do E. STF, na ADPF 635, com a determinação ao Estado do Rio de Janeiro de apresentação de cronograma de instalação e funcionamento de câmeras corporais e em viaturas policiais de unidades especiais e batalhões de maior letalidade, que poderá, embora não seja sua precípua função, auxiliar no fortalecimento das provas, gerando maior grau de confiança nas condenações criminais.

Em 1980, por exemplo, talvez fosse impossível exigir-se do Estado a apresentação de gravações das ocorrências policiais. Em 2023, não.

Os tempos mudaram e, com isso, a tecnologia avançou, permitindo atualmente ao Estado o uso de câmeras corporais e em viaturas com gravação de imagens e áudio dos fatos, o que inclusive já é realidade, ainda que parcial, no Estado de São Paulo, com grande sucesso e previsão de expansão.

Concluindo, as alterações jurisprudências decorrentes da evolução tecnológica e do amadurecimento dos direitos civis, em especial decorrentes de recentes decisões do E. STJ, apontam para um novo standard probatório em que não mais será suficiente (se não agora, em futuro breve), para fundamentar condenações criminais, o surrado argumento de que “as palavras dos policiais envolvidos na ocorrência são meio válido de prova em juízo”.

Rafael P. de M. Filgueira

Rafael P. de M. Filgueira

Juiz de Direito do Estado de São Paulo, desde agosto de 2006, exercendo a titularidade da Vara Criminal da Comarca de Araras/SP, desde janeiro de 2013, com especialização em Direto Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.

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