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Como vocês sabem, o direito à moradia é assegurado pela Constituição Federal, mais precisamente, no caput do art. 6º. Com isso, o chamado Bem de Família é, via de regra, impenhorável, seja na modalidade legal (Lei n. 8009/90), seja na convencional (arts. 1.711 a 1.722 do Código Civil).
Nas últimas décadas, porém, não foram poucas as situações em que os Tribunais Superiores precisaram enfrentar as implicações e as nuances do tema. Dentre as situações mais debatidas está a discussão acerca da impenhorabilidade do bem de família do fiador de contratos de locação.
É bem verdade que art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90, traz expressamente:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(…)
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Em 2018, quando do julgamento do RE 605709/SP, o STF decidiu que, contra o fiador de contratos de locação comercial, o bem de família não poderia ser objeto de penhora.
Na ocasião, a Ministra Rosa Weber entendeu que o referido dispositivo era incompatível com o direito fundamental social à moradia, embasando seu seu voto na distinção entre a hipótese de locação para fins comerciais e a locação residencial – nesta última, o bem de família poderia sim, ser penhorado.
Segundo Rosa Weber, no contrato de locação residencial existe a possibilidade de contraposição entre o direito à moradia dos fiadores e o mesmo direito em relação aos locatários, o que não ocorre na locação comercial. Por esta razão, seu voto – que foi acompanhado pela maioria dos ministros – sustentou a impenhorabilidade do bem de família do fiador, em se tratando de locação para fins comerciais.
Em 2022, no entanto, a discussão foi retomada. No julgamento do RE 1.307.334/SP , o Supremo mudou de rota e passou a considerar constitucional a penhorabilidade do bem de família do fiador, tanto em contratos de locação residenciais quanto comerciais.
Revisitando o entendimento então prevalecente, o STF concluiu pela validade do art. 3º, VII, da lei 8.009/90. Nos dizeres no Excelso Pretório, o dispositivo se mostra “necessário, razoável e proporcional”.
O Min. Alexandre de Moraes, relator nesse novo julgamento, pontuou que, ao tipificar a exceção no referido artigo, a lei não fez qualquer ressalva em relação à finalidade da locação.
Dessa forma, segundo Moraes, em atenção ao princípio da isonomia, não seria possível criar uma condição particularizada para o bem de família do fiador de contrato de locação comercial quando a própria lei não demonstrou o interesse do legislador em fazê-lo.
Mais do que isso, Moraes ponderou que o fiador, na celebração do contrato, tem ciência de que todo o seu patrimônio responderá por eventuais dívidas do locatário. Assim, ao assinar o instrumento, o fiador estaria, de maneira livre e espontânea, renunciando à impenhorabilidade de seu bem de família.
Ainda em 2022, no julgamento do REsp 1.822.040-PR , o STJ seguiu o novo entendimento do STF e passou a considerar válida a penhora do bem de família do fiador em contratos de locação de imóveis, independentemente da finalidade.
Sem dúvidas, a mudança de posicionamento em relação à penhorabilidade do bem de família do fiador é polêmica e dá abertura para questionamentos, especialmente, quando comparada a outras recentes decisões dos Tribunais Superiores em situações similares.
Vale lembrar que, também em 2022, o STJ entendeu pela impenhorabilidade do bem de família oferecido em caução em contrato de locação comercial , bem como, em relação ao devedor solidário do contrato de locação.
As idas e vindas do tratamento concedido ao bem de família do fiador junto aos Tribunais Superiores pode causar estranheza, especialmente ao leigo, e por isso merece toda nossa atenção. Uma anedota, porém, segue firme como uma cláusula pétrea: “Quer estragar uma boa amizade? Convide essa pessoa para ser seu fiador.” Quase nunca falha.
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1 Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6087183&numeroProcesso=1307334&classeProcesso=RE&numeroTema=1127. Acesso em 20 mar.2023.
2 “Entendo não ser possível criar distinção onde a lei não distinguiu, pois haveria flagrante violação ao princípio da isonomia, haja a vista que o fiador de locação comercial, embora também excepcionado pelo artigo 3º, VII, da Lei 8.009/1990, teria incólume seu bem de família, ao passo que o fiador de locação residencial poderia ter seu imóvel penhorado.”
3 Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/24062021-Repetitivo-discute-penhora-de-bem-de-familia-dado-pelo-fiador-como-garantia-de-locacao-comercial.aspx. Acesso em 20.mar.2023.
4 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05052022-E-impenhoravel-bem-de-familia-oferecido-como-caucao-em-contrato-de-locacao-comercial–decide-Quarta-Turma.aspx. Acesso em 20.mar.2023.
5 Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1689902179. Acesso em 20.mar.2023.
César Fiuza
Advogado. Professor da UFMG. Doutor em Direito Civil. Parecerista. Atuação nos Tribunais Superiores. Autor do livro “Curso de Direito Civil”, com mais de 100.000 exemplares vendidos no Brasil.