Teoria Chenery e sua aplicação no ordenamento brasileiro   Migalhas
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A atuação na Procuradoria-Geral do Município de São Luís tem me propiciado o contato direto com uma ampla área de conhecimento. Assim foi que, nos últimos tempos, pude contemplar a aplicação da Teoria Chenery pelas mãos da Desembargadora do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, Sônia Amaral, em judiciosa decisão. Propus-me, assim, a entender melhor a sua dogmática e subsunção em nosso ordenamento jurídico, sendo o presente artigo resultado de leituras que nem de longe encerram a temática.

Por se tratar de uma tese de origem norte-americana, é preciso referir, pelo menos, duas particularidades primordiais para analisá-la, com o auxílio do direito comparado. A primeira delas é que o Direito Administrativo nos Estados Unidos se desenvolveu em torno da atuação das agências administrativas (administrative agencies) e reguladoras1.

Importa, ademais, pontuar que a relevância de tais entidades está ligada a um movimento de contenção de falhas de um mercado liberal, estimulado pelo New Deal para a recuperação da economia nos anos 1930. A esse respeito, Pavan2 revela que o estabelecimento das agências ocorreu com relutância e teve por consequência o aumento de litígios:

Em um primeiro momento, a Suprema Corte norte-americana resistiu à regulamentação governamental da atividade econômica. Posteriormente, o Tribunal Constitucional reconheceu a constitucionalidade da maioria das agências e dos regulamentos do New Deal, tendo criado alguns posicionamentos jurisprudenciais para controlar a atuação das agências. A Corte admitiu, assim, a regularidade do processo decisório das agências e adotou uma supervisão judicial da adequação de mérito das decisões dessas instituições. Diante da discordância dessas regras erigidas pelo Judiciário, foi editado a Lei de Procedimento Administrativo (Federal Administrative Procedure Act – APA) em 1946, fruto da convergência dos interesses das empresas e do Poder Executivo.

Ainda assim, a Suprema Corte continuou a ter um papel central na interpretação da legislação e na estruturação de diretrizes para o controle judicial administrativo (judicial review), aspecto que é reforçado pela força vinculante de suas decisões. É, portanto, desse contexto que surge a doutrina Chenery, desenvolvida a partir do julgamento de dois casos envolvendo a Securities and Exchange Comission3 (SEC) e Chenery Corporation.

O primeiro caso foi apreciado em 1943 (318 U.S. 80) e teve como ensejo a decisão administrativa da SEC sobre a aquisição de ações preferenciais realizadas por diretores, executivos e acionistas, durante o processo de reorganização da sociedade federal Water Service Corporation. Segundo sustentou a decisão administrativa, a conduta estava em desacordo com os deveres de equidade fixados no ordenamento norte-americano. Por isso, determinou que, depois de findo o citado processo de reestruturação, esses valores mobiliários deveriam ser cedidos pelo valor de custo, somados a juros4.

Ao confrontar os fundamentos invocados na decisão administrativa, os julgadores constataram que não se poderia evidenciar a quebra da equidade nem a obtenção de vantagens indevidas pelos investidores na citada aquisição, deduzindo-se, portanto, que a agência deveria reavaliar sua ordem. Foi igualmente ponderado que os novos motivos invocados pela SEC, em sua defesa judicial, não poderiam ser objeto de análise, já que a revisão estava circunscrita àqueles articulados quando avaliou a questão no âmbito administrativo.

A lide voltou ao conhecimento da Corte em 1947 (332 U.S. 194), considerando que a agência manteve sua posição e ordem, sustentando, desta feita, que a aquisição violara os §§ 7º e 11 da Public Utility Holding Company Act (PUHCA). Diferentemente do sufragado em 1943, a Suprema Corte manteve a decisão administrativa, por considerar que a agência agira dentro da esfera de discricionariedade que lhe foi conferida e que não havia impedimento para que, no âmbito de sua reavaliação, adotasse conclusão semelhante, sustentada em motivos diversos.

A partir dessas premissas estabelecidas pelos julgados, a doutrina que se erigiu reconhece que o processo de tomada de decisões delegado às agências não pode ser substituído em uma revisão judicial, inclusive porque são as instituições mais qualificadas para esse propósito e nas quais o Congresso delegou autoridade para legitimamente atuar. Entender de modo diverso poderia, portanto, ser equiparado a uma usurpação de poderes. A respeito da teoria, Farrat e Navarro5 acrescentam:

[…] no contexto de fixação de limites à extensão do controle judicial, compreendeu-se na ocasião que alguns atos discricionários representam alto grau de complexidade e tecnicidade, de forma a não caber sua revisão pelo Poder Judiciário, órgão sem igual expertise técnica e administrativa para tomar tal decisão e sem o conhecimento pleno da realidade administrativa que a ensejou.

Segundo Motomura6, houve uma evolução na aplicação dessa teoria nos tribunais norte-americanos. Por vezes, o seu alcance foi ampliado, contemplando decisões adotadas em diversas esferas de atuação das agências. Em outras ocasiões, a jurisprudência limitou o escopo da doutrina, introduzindo várias exceções à regra geral.

Pavan7, por seu turno, complementa essa informação exemplificando que a doutrina Chenery não pode ser invocada quando a revisão judicial envolve leis que estão fora do âmbito do poder regulatório conferido à agência pelo Congresso e quando a atuação da agência está expressamente prevista em lei.

No Direito Administrativo brasileiro, repercutiu a sua aplicação no julgamento do Agravo Interno no Agravo Interno na SLS nº 2240/SP8, de relatoria da Ministra Laurita Vaz. O litígio envolvia a suspensão de medida liminar deferida em Ação Popular que determinava a suspensão do aumento de tarifas do transporte público integrado das regiões metropolitanas da grande São Paulo, em face do questionamento judicial dos métodos aplicados.

Entre as razões deduzidas e aquiescidas pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça para negar provimento ao referido recurso, reforçou-se que a análise da decisão administrativa estava circunscrita à esfera da legalidade. Foi também ponderado, com base na Teoria Chenery que, por não ter expertise, a apreciação pelo Poder Judiciário não poderia avaliar o acerto dos critérios adotados em atos administrativos com motivações políticas, em especial os embasados em questões técnicas e complexas, como a do caso concreto apreciado.

É assente no ordenamento brasileiro que atos discricionários podem ser questionados e sofrer o controle de legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência. É também frequente a atuação dos magistrados com o intuito de efetivar os direitos e valores constitucionais.

Embora importante seja o ativismo, não é possível demarcar até que ponto as revisões judiciais brasileiras desbordam os limites e põem em xeque a harmonia dos Poderes, necessária à manutenção e estabilidade do sistema constitucional vigente. Esse fato, insta asseverar, costuma ser associado ao déficit democrático do Poder Judiciário.

Com efeito, no exercício do poder administrativo, o agente público está no exercício de uma função que lhe foi conferida por vontade popular. Portanto, essa autoridade não poderia ser, em princípio, substituída pelo exercício interpretativo do mérito administrativo realizado por um julgador, sob pena de destituir e embaraçar a função empreendida pelo Executivo.

Além disso, é necessário considerar que, sendo complexas as realidades sociais de um país com expressivas diferenças regionais e econômicas, as respostas encontradas pela Administração Pública nem sempre são suficientes para atender todas as necessidades sociais. Contudo, não se pode, tampouco, depreender que as respostas encontradas pelo Poder Judiciário na apreciação ou revisão judicial dos atos administrativos e de políticas públicas terão os resultados contemplados pelos juízes em suas decisões.

Assim, conforme se pode extrair da Teoria Chenery, carece o judicante da expertise para avaliar atos administrativos discricionários e de governo fundamentados em pesquisas técnicas e desenvolvidas por equipes que detêm expertise. Sob esse panorama, vislumbra-se que a doutrina merece destaque nas demandas que envolvem a Administração Pública, devendo ser amplamente conhecida tanto por quem atua na defesa dos interesses da Administração, como, principalmente, por juízes que venham a dirimir conflitos em torno de atos discricionários e de governo.

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Referências

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Agravo Interno no Agravo Interno na Suspensão de Liminar e de Sentença n. 2.240/SP. Relatora: Min. Laurita Vaz, j. 7.6.2017, DJe 20 jun. 2017. Disponível aqui.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

FARRET, Julian Ritzel; NAVARRO, Ariela Zuchetto. Doutrina Chenery e o controle jurisdicional de atos administrativos discricionários: uma análise do caso do Trevo do Castelinho em Santa Maria-RS. Boletim Científico ESMPU. N. 57. Brasília: jul./dez. 2021. Disponível aqui.

MOTOMURA, Amy R. Rethinking administrative law’s Chenery Doctrine: lessons from patent appeals at the federal circuit. Santa Clara Law Review, v. 53, n. 3, 2014. Disponível aqui.

NASCIMENTO, Carlos Manoel do. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4874: o uso da doutrina Chevron pelo Supremo Tribunal Federal. Tese (doutorado) – Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: 2020. Disponível aqui.

PAVAN, Luiz Henrique Miguel. Notas sobre a revisão judicial dos atos administrativos do direito norte-americano e sua aplicação na jurisprudência atual do STF e STJ. Direito Público: Revista Jurídica da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Vol. 15, nº 1. Belo Horizonte: jan-dez/2018. Disponível aqui.

UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court of the United States. Securities and Exchange Commission v. Chenery Corporation, 318 U.S. 80, 1º/2/1943. Disponível aqui.

UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court of the United States. Securities and Exchange Commission v. Chenery Corporation, 332 U.S. 194, 23/6/1947. Disponível aqui.

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1 NASCIMENTO, Carlos Manoel do. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4874: o uso da doutrina Chevron pelo Supremo Tribunal Federal. Tese (doutorado) – Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: 2020. Disponível aqui.

2 PAVAN, Luiz Henrique Miguel. Notas sobre a revisão judicial dos atos administrativos do direito norte-americano e sua aplicação na jurisprudência atual do STF e STJ. Direito Público: Revista Jurídica da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais. Vol. 15, nº 1. Belo Horizonte: jan-dez/2018. Disponível aqui.

3 De acordo com Farrat e Navarro (2021), a SEC é a agência incumbida da fiscalização de operações com valores mobiliários, função que corresponde à da Comissão de Valores Mobiliários, no Brasil.

4 FARRET, Julian Ritzel; NAVARRO, Ariela Zuchetto. Doutrina Chenery e o controle jurisdicional de atos administrativos discricionários: uma análise do caso do Trevo do Castelinho em Santa Maria-RS. Boletim Científico ESMPU. N. 57. Brasília: jul./dez. 2021. Disponível aqui.

5 Ibidem, p. 233-234.

6 MOTOMURA, Amy R. Rethinking administrative law’s Chenery Doctrine: lessons from patent appeals at the federal circuit. Santa Clara Law Review, v. 53, n. 3, 2014. Disponível aqui.

7 Ibidem, p. 185.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Agravo Interno no Agravo Interno na Suspensão de Liminar e de Sentença n. 2.240/SP. Relatora: Min. Laurita Vaz, j. 7.6.2017, DJe 20 jun. 2017. Disponível aqui.

Bruno Duailibe

Bruno Duailibe

Procurador-Geral do Município de São Luís (MA)

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