Da controvérsia ao precedente vinculante   Migalhas
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Da controvérsia ao precedente vinculante – Migalhas

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O microssistema de precedentes vinculantes reforça a força dos Tribunais na criação do direito. Afinal, mantido o sistema do civil law (até pelo fato de decorrer da lei a observância destes precedentes) já se atesta – definitivamente – que direito não é sinônimo de lei. Os precedentes representam norma jurídica, decorrentes do exercício de jurisdição, tão vinculantes quanto a lei. Se por um lado é indiscutível que precedentes representam normas jurídicas, por outro, é necessário que os Tribunais entendam que a legitimidade que lhes foi formalmente dada em criar norma jurídica depende exclusivamente da atuação no caso concreto. Isto é, a tese que vinculará os demais órgãos se origina e só tem amplitude para casos que decorram do contexto ligado à tese. É justamente por isso que os precedentes vinculantes não retiram do julgador a sua independência, pois o juiz, diante de uma situação concreta que apresente distinção fática com o tratado no precedente está legitimado (e forçado) a se distanciar da vinculação. O que é impositivo (e assim o é porque se está afastando a aplicação de uma norma jurídica) é a adequada justificação (fundamentação) sobre a aderência ou não da tese vinculante naquele caso específico.

O caminho para a existência formal de um precedente varia, de acordo com a técnica de julgamento adotada. No âmbito do STJ a maior parte dos precedentes hoje advém da sistemática dos recursos repetitivos. Já no STF é pela análise da repercussão geral que se visualiza o que poderá se tornar vinculante. Em ambos os sistemas adotados nunca se deve esquecer que tudo se origina de um caso concreto, e, portanto, de uma indagação sobre o melhor encaixe juridico no contexto narrado no caso. É nesse encaixe que residirá a força normativa do futuro precedente.

O estudo dos procedimentos, que atualmente são adotados pelas Cortes de precedentes (STJ e STF), é importante justamente para que se perceba o amadurecimento de debates e argumentos, de modo a não tornar a atividade de criação de precedentes meramente quantitativa. Aliás, o que se busca é a qualificação do debate (das decisões) e não propriamente o número de precedentes criados. Assim, o STJ, em julgamento de recursos repetitivos, disciplinou, na sua competência interna (regimental), um verdadeiro procedimento que tem como escopo legitimar a formação do precedente. Trata-se de algo que antecede ao debate de mérito da questão a ser definida.

Se criou, no âmbito da Corte Superior, a comissão gestora de precedentes e de ações coletivas que, dentre as suas atribuições, verifica a existência de um potencial de algo debatido em determinado recurso para dar origem a uma tese que seria aplicada a casos com a mesma questão pendente. O termo questão aqui refere-se, por óbvio, a um enquadramento juridico daquilo que está sendo debatido (até pelo fato de o recurso especial ser modalidade recursal restrita). Pode-se chamar, como fez o legislador de questão de direito, sem se esquecer que as questões de direito carregam em si, fatos, que são determinantes para se saber qual será o enquadramento juridico, ou seja, a solução dada pelo direito. Se o que está sendo debatido é o correto enquadramento juridico, não há como se desvencilhar da questão fática (desde que determinante), ainda que seja aquela reconhecida pelo acórdão justamente para não se impedir a admissibilidade do recurso. Portanto, é de suma importância entender igualmente o contexto fático (determinante) que dá origem a uma questão controvertida – questão de direito -, pois é nesse limite que o futuro precedente espelhará seus efeitos vinculativos.

Prosseguindo. Considerado, pela Comissão da Corte, que existem elementos para que se dê espaço a uma uniformização de entendimento (além dos requisitos ordinários de admissibilidade do recurso) se distribuirá o recurso paradigma (caso-piloto) a um relator, cientificando-o da existência de uma controvérsia (assim nominada pela Comissão) identificada por um número do qual o recurso paradigma é classificado como recurso representativo de controvérsia. Até então, tem-se o entendimento da comissão, mas que não necessariamente perdurará. Inclusive, mesmo a Comissão, não identificando ab initio, uma questão passível de controvérsia, o relator de um recurso já distribuído poderá assim fazê-lo.

O relator a quem o recurso for distribuído, ao analisar o caso (podendo-se falar em verdadeiro raciocínio de revisão da conclusão a que chegou à Comissão ou até originariamente, na hipótese da Comissão não ter identificado a existência de uma controvérsia apta a gerar um precedente vinculante), poderá negar seguimento ao recurso por falta de requisitos ordinários de admissibilidade ou até entender que não estão presentes os requisitos específicos para adoção da sistemática de julgamento de recursos repetitivos (art. 1.036 do CPC/15).

Interessante a regra regimental, em atenção ao princípio da duração razoável dos processos, que presume a rejeição do caso como paradigma, caso o relator não se manifeste pela afetação no prazo de sessenta dias úteis (art. 256-E e 256-G do regimento interno do STJ), hipótese em que o caso poderá ser analisado isoladamente desde que ultrapassado o juízo de admissibilidade ordinário dos recursos especiais (julgamento comum de recurso individual).

Manifestando-se o relator pela afetação da controvérsia se seguirá para um julgamento virtual, na Seção ou Corte Especial, com duração de sete dias corridos para a deliberação (art. 257-A do RISTJ). Neste mesmo julgamento de afetação, todos os julgadores deverão observar se o RRC atende aos requisitos genéricos de admissibilidade e os específicos para julgamento na sistemática dos repetitivos. Mais uma vez, se faz uma nova checagem desses requisitos, agora no colegiado. A proposta de afetação deverá ser aprovada pela maioria dos ministros integrantes do órgão julgador (em maioria simples, conforme parágrafo único do art. 257-C do regimento), somente computando-se votos expressamente manifestados (art. 257-B do RISTJ). Não sendo alcançado o quórum exigido ou havendo empate o regimento determina a suspensão do julgamento e a sua inclusão em sessão virtual subsequente (art. 257-C).

O julgamento de afetação (que não se confunde com o mérito da questão controvertida) constará em acórdão publicado em Diário Oficial, trazendo a fundamentação sobre o preenchimento dos requisitos genéricos e específicos. É a partir deste momento que, aquilo que era apenas a visualização de uma controvérsia agora ganha status de Tema (atribuindo-lhe uma identificação numérica em substituição à controvérsia), com a especificação e delimitação daquilo que será objeto de definição para uma futura tese que será norteadora para os demais casos idênticos (art. 1.039 do CPC/15)

Em relação aos julgamentos dos recursos extraordinários com a repercussão geral, o caminho é mais sumarizado, até pelo fato de hoje a repercussão geral ser requisito de todo e qualquer recurso extraordinário. Assim, distribuído o recurso extraordinário, competirá, numa primeira análise, a verificação do atendimento aos seus pressupostos genéricos de admissibilidade, seguindo-se da manifestação, pela presidência ou pelo relator a que foi distribuído, da existência da repercussão geral.  

Ato contínuo é designado um julgamento virtual para que, no prazo de 20 dias, os demais ministros manifestem-se sobre a existência ou não da repercussão geral (art. 324 do Regimento Interno do STF – RISTF). Para essa análise, deverão também se manifestar sobre se a questão proposta no recurso – caso-piloto – é considerada constitucional. Assim, somente se chegará na análise da repercussão geral, se considerada a questão debatida como constitucional tendo em vista a competência da Suprema Corte. Existe, no entanto, uma diferença entre os quóruns para esses dois requisitos. Para a natureza da questão (se constitucional ou não) o regimento impõe a maioria absoluta (art. 324 § 1º do RISTF), já para a repercussão geral a Constituição estabelece que somente poderá ser recusada a repercussão geral por manifestação de, ao menos, dois terços dos seus membros. Portanto, em julgamento no plenário da Suprema Corte, a manifestação favorável de quatro ministros já seria suficiente para que o caso fosse julgado com o propósito de se formar um precedente vinculante.

Um ponto interessante no âmbito da Suprema Corte é a possibilidade de ausência de reconhecimento de repercussão geral limitado apenas para o recurso objeto de julgamento, não gerando impeditivo para, posteriormente, poder ser assim considerada existente pela Corte diante de um novo caso. O art. 326 § 1º do RISTF permite que o relator ou o presidente oriente o voto pela negativa da repercussão com eficácia restrita para aquele caso, hipótese em que, havendo recurso, deverá tal proposta ser confirmada por dois terços dos ministros (§ 2º do art. 326). Caso não exista quórum suficiente para manter esse entendimento de restrição dos efeitos da negativa de repercussão geral, o recurso é redistribuído para outro julgador, que procederá a análise da existência da repercussão geral, reiniciando o julgamento virtual acima descrito. Tal regra permite ao Supremo a análise do momento adequado de decidir alguma questão com repercussão. Seria uma disposição para escolher o que decidir para melhor decidir. Evidentemente que tudo deve ser fundamentado como exige a própria Constituição (art. 93, IX), em observância aos requisitos formais pré-estabelecidos na legislação.

Feito o julgamento de mérito sobre a questão, no âmbito ou do STJ ou do STF, será definida a tese vinculante. Eis aí o grande problema que já se tem sentido, justamente pelo fato de a tese enunciada ter que guardar total sintonia com o contexto do caso-piloto (a estrita aderência)

Mais uma vez é de se recordar que a criação de norma jurídica, decorrente dos precedentes vinculantes, está indispensavelmente relacionada às balizas da questão traduzida no caso-piloto. O Código não permitiu (e nem poderia permitir) que o judiciário criasse normas puramente abstratas, de modo a ser confundido com uma atividade precipuamente legislativa. Portanto, nem o conteúdo da tese em si, nem a forma da sua redação, podem querer ser mais daquilo que a lei permitiu. Teses amplas, desconectadas com aquilo que foi retratado e discutido no caso-piloto, fere à lei e não pode ser considerada como válida. O precedente em si pode ser considerado, mas uma tese que não lhe seja fiel, é um nada juridico pois fere o próprio sistema que não pode permitir uma autofagia.

Trabalhar com precedentes é, sobretudo, trabalhar com casos concretos, pois é no caso concreto que está a sua gênese. A carga genética de um precedente vinculante é o resultado do exercício da subsunção do fato com o enquadramento juridico.

Scilio Faver

Scilio Faver

Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados

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