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Vai Maria cansada de apanhar
Não sou pedra, mas posso endurecer
Vai José se arrastar pela cidade
Não sou lenha, mas eu incendeio
(…)
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor da rua
(letra da música Calor da Rua de Francisco, El Hombre)
No sistema de Justiça brasileiro são as Defensorias Públicas que “acham o Direito”1 pelas ruas, nas quebradas, nas comunidades, nas encruzilhadas. Não, não se trata de uma metáfora. A Defensoria Pública é a instituição responsável por garantir o direito constitucional fundamental de acesso à Justiça da população vulnerável brasileira. A Constituição Federal de 1988 optou por um modelo público de assistência jurídica integral. Desde então as Defensorias Públicas Federais e estaduais foram sendo instituídas nos moldes constitucionais e buscam seu fortalecimento e expansão de modo que o direito tenha cobertura universal, como ocorre com a saúde e a educação, pois são essas instituições que concretizam o direito de garantir todos os demais direitos. As Defensorias Públicas foram criadas sob a ótica da assistência jurídica integral, o que significa ir além do acesso ao Poder Judiciário, para prever, dentre suas atribuições, orientação jurídica, atendimento extrajudicial, mediação de conflitos, Justiça restaurativa, educação em direitos, atendimento multidisciplinar, defesa individual e coletiva de direitos humanos interna e internacionalmente. Essas jovens instituições do Sistema de Justiça são as mais democráticas, com ouvidorias externas e forte participação popular em seus planejamentos de atuação.
O II mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil2 mostra que em 2019/2020 há presença das Defensorias Públicas em cerca de 42% do total de comarcas no Brasil, ou seja, presença em menos da metade. Locais em que estão presentes juízes e promotores, mas não defensores públicos. Segundo a pesquisa há 9.043 cargos existentes e 6.027 providos. Considerando população de baixa renda como aquela que recebe até 3 salários-mínimos observa-se que praticamente todas as unidades da federação apresentam déficit de defensores, considerada a proporção de 1 para cada 10 mil ou 1 para cada 15 mil necessitados. A pesquisa nacional da defensoria pública 2023 realizada pelo Condege – Conselho Nacional de Defensoras e Defensores Públicos-Gerais3 corrobora o déficit encontrado, pois revela que considerando o quantitativo de Defensores (as) Públicos (as), no Brasil há um defensor(a) público(a) para cada 31.140 habitantes. Levando em consideração exclusivamente a população economicamente vulnerável, no país há um defensor(a) público(a) para cada 27.401 habitantes com renda de até três salários-mínimos. Esses dados se revelam importantes na medida em que demonstram, ao lado de outros dados de desigualdade social, no Brasil, que a exclusão social também alcança o acesso à Justiça. É o contato permanente com essa realidade que faz com que os (as) defensores(as) públicos levem e defendam no Supremo Tribunal questões que afetam especificamente a população vulnerável.
No HC 208.240, impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, em que houve condenação de 7 anos, 11 meses e 8 dias, em regime fechado, por acusação de tráfico de drogas, discute-se além do princípio da insignificância em razão da quantidade irrisória de droga apreendida (1,53 gramas), a ilicitude e necessidade de anulação da prova obtida por tratar-se de mais um caso em que ocorreu o que se chama de “perfilamento racial”.4 Pesquisas comprovam que o racismo estrutural e institucional leva a polícia brasileira a abordar, revistar e verificar, de forma desproporcional, por vezes abusiva, pessoas pretas e pardas. Trata-se da “pele alva” de um sistema de Justiça majoritariamente branco e masculino selecionando a “pele alvo” de milhares de jovens negros. Encarceramento em massa da juventude negra, uma das facetas perversas da “guerra às drogas”. Uma das formas contemporâneas da escravização que segrega a população negra jovem nos presídios brasileiros retirando-lhes qualquer perspectiva de futuro. No caso concreto ambos os policiais, que resolveram abordar e realizar a revista pessoal, ressaltaram, primeiramente, a cor negra do indivíduo, sem que nenhuma outra característica pessoal fosse levada em consideração em seus depoimentos. Não houve ainda o término do julgamento.
Outra discussão importante no STF, se considerarmos o percentual de pessoas encarceradas em razão da lei 11.343/06 (lei de drogas), em sua maioria pretas, pobres e de baixa escolarização, é a que se trava no âmbito do RE 635659, apresentado também pela Defensoria Pública de São Paulo, ao buscar que seja considerado inconstitucional o art. 28 da lei 11.343/06 que se refere ao porte de drogas para consumo próprio. Nesse caso concreto foi encontrado com um preso, no estabelecimento prisional, 3 gramas de maconha. Os presos por tráfico representariam cerca de 28% da população carcerária e muitos presos com pequenas quantidades e classificados como traficantes e não usuários poderiam ser beneficiados. Mais uma vez os beneficiados seriam as pessoas negras que constituem a maior parte da população carcerária. Por ora há cinco votos pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo próprio e um voto que considera válida a previsão do art. 28 da lei de drogas (lei 11.343/06).
Decisão histórica foi a obtida pela Defensoria Pública do Espírito Santo no habeas corpus coletivo 143.988 em favor de adolescentes privados de liberdade em uma unidade socioeducativa na cidade de Linhares/ES. A superlotação de presídios de adultos já é algo corrente no Brasil e tido por “um estado de coisas inconstitucional”. Não podemos compactuar com a mesma situação para pessoas ainda em desenvolvimento e que por força da Constituição tem prioridade absoluta e proteção integral. Na decisão se impediu que as unidades funcionem com mais de 100% de lotação máxima, de modo que para entrar um adolescente no sistema outro necessariamente tem que sair.
São alguns poucos exemplos de atuação das Defensorias Públicas, diante de milhares, em prol de pessoas à margem da sociedade, dos indesejáveis, dos subalternos, daquelas e daqueles que desafiam diariamente os defensores públicos a repensar o Direito, os códigos, as leis a partir das dores e sofrimentos dos que não costumam ter voz. Tampouco há quem os queira ouvir e admitir sua existência. É um Direito à serviço da existência e resistência de vidas que costuma ser descartadas pela maioria da sociedade.
A invisibilidade das populações subalternizadas por um sistema social e econômico que privilegia a existência das camadas mais privilegiadas da sociedade se reflete nas decisões tomadas pelo STF e no posicionamento de seus ministros. Caso paradigmático neste sentido é o que envolve as multas decorrentes de condenações criminais. Desde 1996 houve alteração no art. 51 do CP para que o não pagamento de multa penal não implicasse em prisão, tornando-a dívida de valor. Disputa de anos em torno da configuração jurídica das multas penais em torno de sua natureza penal ou de dívida de valor, da competência para sua cobrança e execução, se do ministério público ou procuradoria da fazenda e do rito processual a ser seguido tomou outros contornos a partir de casos criminais notórios de competência originária do STF como o “mensalão”.
No julgamento da ADI 3150 que teve por foco o pedido de interpretação conforme à Constituição do art. 51 do CP para reafirmar o caráter penal das multas e a competência do ministério público para sua execução, observa-se que a decisão que se tomou ali tinha como preocupação central a chamada “criminalidade econômica”, os “crimes de colarinho branco”, além da pretensão de “arrumar” o sistema punitivo. Como disse nos autos um dos ministros, “como tenho sustentado em diversas manifestações, o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado. E cabe ao Supremo Tribunal Federal, nos limites de sua competência, contribuir para sua rearrumação. (…). Em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há de desempenhar papel proeminente. Mais até do que a pena de prisão – que, nas condições atuais, é relativamente breve e não é capaz de promover a ressocialização -, cabe à multa o papel retributivo e preventivo geral da pena, desestimulando, no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta estigmatizada pela legislação penal. Por essa razão, sustentei no julgamento da Ação Penal 470 que a multa deveria ser fixada com seriedade, em parâmetros razoáveis, e que seu pagamento fosse efetivamente exigido”.
Ou seja, mirou-se uma determinada classe social na decisão, não obstante, a eficácia erga omnes das decisões em controle concentrado, mas os atingidos em cheio pela decisão foram e estão sendo outros: os do “andar de baixo”. Aqueles que lotam os presídios brasileiros, aqueles que devem multas altíssimas em face da lei de drogas de 2006, aqueles que devendo, muitas vezes, valores até bem baixos, mas que passaram a ser executados pelo Ministério Público de forma massiva nas varas de execução penal, com penhora indiscriminada de valores encontrados em conta corrente, que por vezes são oriundos do trabalho informal, dos “bicos”, de auxílios do governo Federal, com consequências que impossibilitam a documentação dos egressos, pois tem havido implicações na obtenção do título de eleitor e regularização na Justiça Eleitoral.
Enquanto sociedade almejamos que os egressos do sistema penal saiam “ressocializados” e procurem emprego e trabalho lícitos. Mas, ao mesmo tempo impedimos a regularização de sua documentação pelo não pagamento de multa penal, sendo que já cumpriram a privação de liberdade. É o que podemos chamar de “pena perpetua de fato”, já que a de direito estaria vedada pela Constituição Federal de 1988. Há um percentual substancial de egressos do sistema penal na população em situação de rua, da qual foi subtraída todos os direitos de condições mínimas de sobrevivência. Parece que a intenção é que assim continuem ao se colocar mais um obstáculo na possibilidade, já remota, de conseguirem trabalho.
Começamos falando das ruas e terminamos nelas. As ruas não costumam ser frequentadas pelas demais instituições do sistema de Justiça. A inafastabilidade do controle jurisdicional depende de provocação daquelas e daqueles que tem seus direitos violados. As Defensorias Públicas têm buscado cumprir seu papel de levar e defender esse Direito achado nas ruas no STF. Faz-se necessária a possibilidade de lá estar, compondo a Corte, tornando visíveis os milhares de vulneráveis, contribuindo para uma visão crítica e emancipatória do Direito e da Justiça.
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1 O “Direito Achado na Rua” surge em Brasília a partir de projeto idealizado pelos professores Roberto Lyra Filho, José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa na década de 80. Alia teoria, prática e militância no Direito na busca de emancipação social. Dialoga diretamente com os problemas enfrentados pelos grupos em situação de vulnerabilidade.
2 Disponível em , acesso em 24 ago. 2023.
3 Disponível em , acesso em 24 ago. 2023.
4 Ver a esse respeito documento do Alto Comissariado das Nações Unidas da ONU: “Prevenindo e combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes: boas práticas e desafios”. Disponível em , acesso em 25 ago. 2023.
Mônica de Melo
Defensora pública de São Paulo.
Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP)