Fiscalização dos contratos administrativos e inovações tecnológicas   Migalhas
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Fiscalização dos contratos administrativos e inovações tecnológicas – Migalhas

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O estereótipo da fiscalização contratual é a figura do carimbo, a partir da imagem de que o fiscal, sem a expertise necessária e/ou sem o tempo adequado, seria um mero carimbador de documentos produzidos no contrato que, teoricamente, revelariam o cumprimento das obrigações contratuais.

Independentemente do cumprimento efetivo das obrigações contratuais, a preocupação, em muitos casos, seria apenas atestar e carimbar folhas de papéis, com o intuito de cumprir os prazos e as ordens da alta administração.

Naturalmente, a fiscalização meramente formal, resumida à análise dos documentos da contratação, sem a necessária verificação, in loco, do adimplemento quantitativo e qualitativo do contrato não se revela suficiente para garantir a eficiência contratual.

A fiscalização formalista e analógica deve ser substituída por uma fiscalização digital e eficiente, o que exige não apenas a capacitação dos fiscais e a distribuição racional de suas atividades, mas, também, a instituição de instrumentos tecnológicos, com o intuito de implementar maior eficiência na atividade fiscalizadora.

Nesse cenário, a nova Lei de Licitações abre uma janela de oportunidades para utilização de inovações tecnológicas nos processos de contratação pública.

O incentivo à inovação passa a ser considerado um dos objetivos do processo licitatório (art. 11, IV, da NLLC)1  que deve ser implementado, preferencialmente, de forma eletrônica, com a prática de atos digitais (art. 12, VI, e 17, § 2º, da NLLC).2 Destaca-se, ainda, a instituição do Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, sítio eletrônico oficial destinado à divulgação centralizada das licitações e contratações públicas (art. 174 da NLLC).

No campo da fiscalização contratual, é possível perceber um enorme potencial para utilização de novas tecnologias. É o caso da obrigatoriedade de instituição de sistema informatizado de acompanhamento de obras, inclusive com recursos de imagem e vídeo (art. 19, III, da NLLC). Mencione-se, por exemplo, a utilização de drones para auxiliar na fiscalização e no controle de obras públicas.3

Em reforço à referida tendência, o art. 169 da NLLC estabelece que as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, “inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação”.

No contexto dos processos eletrônicos de contratação pública e do PNCP, abre-se uma oportunidade para o desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial, com o objetivo de garantir maior celeridade e eficiência aos certames e contratos.

A inteligência artificial (IA),4 que tem sido utilizada de forma crescente em diversos campos da Administração Pública,5 compreende a capacidade de sistemas computacionais realizarem ações que exigem esforço cognitivo, de forma semelhante à inteligência humana, por meio de processamento de dados e capacidade de aprendizado (machine learning), com aplicações em diversos campos do Direito, tais como a possibilidade de tomada de decisões com o auxílio de máquinas, a análise documental e a promoção de análises preditivas de pronunciamentos judiciais e administrativos.6

A partir de um conjunto imenso de dados (big data), permite-se a mineração de dados (data mining) para uma análise automatizada e estruturada que servirá para tomada da decisão estatal. No âmbito da IA, o algoritmo exerce papel central, constituindo-se no conjunto de instruções inseridas em determinado sistema computacional que representam opções de decisão em razão dos dados existentes. Os dados e as informações iniciais fornecidas (input) são processados a partir dos critérios fixados pelo programador para obtenção do resultado desejado (output).7

Nas licitações e contratações públicas, já é possível perceber, especialmente no âmbito da Administração Pública federal, a crescente utilização de novas tecnologias e da Inteligência Artificial nos processos de contratações públicas, com a criação de aplicativos de compras públicas para aparelhos celulares; a instituição da LIA (Logística com Inteligência Artificial) que é um chatbot (software que procura imitar o ser humano em bate-papo) de conversa e interação online por meio de aplicativo de mensagens; entre outros exemplos.

A utilização da IA no âmbito da atividade controladora já vem sendo experimentada por diversos órgãos e entidades da Administração pública. O TCU, por exemplo, tem utilizado diversas ferramentas de inteligência artificial na sua atividade de controle da Administração Pública, tais como: (i) ALICE (Análise de Licitações e Editais); (ii) MONICA (Monitoramento Integrado para o Controle de Aquisições); (iii) ADELE (Análise de Disputa em Licitações Eletrônicas), (iv) SOFIA (Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor); (v) CARINA (Crawler e Analisador de Registros da Imprensa Nacional) e (vi) ÁGATA (Aplicação Geradora de Análise Textual com Aprendizado).8

No cenário da Administração Pública digital e dos certames eletrônicos, a IA apresenta diversas potencialidades e pode servir como ferramenta disruptiva para melhorar a eficiência das contratações públicas, inclusive no campo da fiscalização e controle, com a instituição (i) da automação de processamento de documentos e sistemas de cruzamento de dados que permitam verificar a existência de impedimentos para participação em certames; (ii) de predição de cenários com a apresentação de recomendações; (iii) de mecanismos de pesquisa de preços que facilitem a verificação de eventuais sobrepreços e superfaturamentos; (iv) de ferramentas de elaboração de minutas e modelos de despachos e decisões administrativas a partir da legislação e da jurisprudência; etc.

Naturalmente, a IA, quando bem utilizada, pode estimular a eficiência, a isonomia, a celeridade, a segurança jurídica e outros benefícios na atividade administrativa, com a diminuição dos riscos de decisões caprichosas, morosas e arbitrárias.

Contudo, existem riscos na utilização inadequada da IA, uma vez que as programações inseridas nas máquinas e nos sistemas podem ser acompanhadas de visões ideológicas e preconceitos dos seres humanos (enviesamento algorítmico).9 Nesse caso, a IA refletiria os vieses dos próprios programadores, o que reforça a necessidade de regulação com a adoção de medidas de cautela, tais como a transparência e a possibilidade de revisões periódicas e adaptações dos sistemas.10

A implementação da Administração Pública digital no cenário brasileiro apresenta, ainda, intensos desafios, especialmente pela dificuldade de democratização ampla do acesso à internet e as limitações de determinados Entes federados, especialmente Municípios, na realização de investimentos e utilização efetiva de ferramentas tecnológicas, o que pode ser parcialmente superado a partir da disponibilização, por parte da União, de sistemas abertos que possam ser utilizados, gratuitamente, pelos demais Entes federados interessados. Existe um longo caminho a ser percorrido na concretização da Administração Pública digital, mas já é possível notar avanços e experiências que demonstram que o caminho está sendo percorrido, ainda que sem a velocidade que muitos desejam.

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1 Outros instrumentos indicados na lei 14.133/21 também contribuem para contratação de soluções inovadoras, como, por exemplo, o diálogo competitivo, a contratação integrada, a realização de PMI para contratação de startups etc. Sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; CARMO, Thiago Gomes do. Administração pública experimental: licitação e contratação de soluções inovadoras. Boletim de Licitações e Contratos, Curitiba, v. 19, n. 217, p. 412-421, maio 2023.

2 Aliás, a utilização de tecnologias é uma característica da denominada Administração Pública Digital ou Governo Digital) e não se restringe ao campo das contratações públicas. Mencione-se, a título de exemplo, a lei 14.129/21 que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital. No rol dos princípios e diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública, o art. 3º do referido diploma legal destaca, exemplificativamente: (i) o uso da tecnologia para otimizar processos de trabalho da administração pública (inciso VIII); (ii) o estímulo ao uso das assinaturas eletrônicas nas interações e nas comunicações entre órgãos públicos e entre estes e os cidadãos (inciso XXII); (iii) a adoção preferencial, no uso da internet e de suas aplicações, de tecnologias, de padrões e de formatos abertos e livres (inciso XXV); (iv) a promoção do desenvolvimento tecnológico e da inovação no setor público (inciso XXVI); etc.

3 O TCE/MG e o TCM/SP, por exemplo, têm utilizado drones para auxiliar na fiscalização de obras e serviços em auditorias realizadas pelos respectivos Tribunais. Disponível em: e https://portal.tcm.sp.gov.br/Pagina/5695. Acesso em: 10.10.23.

4 A inteligência artificial é um fenômeno inerente à quarta revolução industrial. De acordo com Klaus Schwab, a primeira revolução industrial (1760-1840) relacionou-se com a produção mecânica (construção de ferrovias e máquinas a vapor); a segunda revolução industrial (final do século XIX e início do século XX) possibilitou a produção em massa por meio da eletricidade e da linha de montagem; e a terceira revolução industrial (1960-90), denominada de digital ou do comutador, foi impulsionada pelos semicondutores, computação em mainframe, comutação pessoal e internet. Já a quarta revolução industrial, que teve início na virada do século, seria caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos, bem como pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina). Ao contrário das anteriores, a quarta revolução industrial acarreta a fusão das novas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. Na Alemanha, discute-se a indústria 4.0, com a criação de “fábricas inteligentes” que são marcadas pela cooperação entre os sistemas físicos e virtuais. SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2017, p. 15-17.

5 Em âmbito federal, a Portaria GM 4.617/2021 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, instituiu a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – EBIA.

6 VALE, Luís Manoel Borges do; PEREIRA, João Sergio dos Santos Soares. Teoria geral do processo tecnológico, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 21 e 23. Ao tratar do conceito jurídico da IA, Bruno Zampier sustenta que “a IA seria um bem jurídico, em especial uma universalidade de fato, que tem por fim solucionar problemas específicos e realizar tarefas, à semelhança e em paralelo à inteligência humana, a partir da utilização de algoritmos e outros sistemas computacionais”. LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Estatuto jurídico da inteligência artificial, Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 80

7 VALE, Luís Manoel Borges do; PEREIRA, João Sergio dos Santos Soares. Teoria geral do processo tecnológico, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 25.

8 COSTA, Marcos Bemquerer; BASTOS, Patrícia Reis Leitão. Controle Externo: Revista do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 11-34, jan./jun. 2020.

9 Segundo Cass Sunstein: “There is no assurance, of course, that algorithms will avoid cognitive biases. They can be built so as to display them. My point is that they can also be built so as to improve on human decisions. This is simply a specification of the old finding that statistical prediction often outperforms clinical prediction.” SUNSTEIN, Cass R. Algorithms, Correcting Biases, Social Research: An International Quarterly, Vol. 86, Number 2, p. 510, Summer 2019. Em outra oportunidade, Sunstein, Kleinberg, Mullainathan e Ludwig afirmam que os algoritmos têm o potencial de conferir maior transparência sobre os dados e as motivações das decisões, o que representa uma oportunidade maior para descobrir eventual discriminação: “It is tempting to think that human decision-making is transparent and that algorithms are opaque. We have argued here that with respect to discrimination, the opposite is true. The use of algorithms offers far greater clarity and transparency about the ingredients and motivations of decisions, and hence far greater opportunity to ferret out discrimination.”. KLEINBERG, Jon; LUDWIG, Jens; MULLAINATHAN, Sendhil; SUNSTEIN, Cass R. Discrimination in the Age of Algorithms, Journal of Legal Analysis, Vol. 10, p. 163, 2018.

10 Sobre o tema: BINENBOJM, Gustavo. Inteligência artificial e as decisões administrativas, Revista Eletrônica da PGE-RJ, v. 5, n. 3, 2022. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/327/251. Acesso em: 10.10.23. De acordo com o Grupo de peritos de alto nível sobre a inteligência artificial (GPAN IA), criado pela Comissão Europeia em junho de 2018, os requisitos para implantação da IA de confiança são, por exemplo: a) ação e supervisão humanas, b) solidez técnica e segurança, incluindo a resiliência perante ataques e a segurança, os planos de recurso e a segurança geral; c) privacidade e governação dos dados, com o respeito da privacidade, a qualidade e a integridade dos dados e o acesso aos dados; d) transparência, garantida a rastreabilidade, a explicabilidade e a comunicação; e) diversidade, não discriminação e equidade, com a prevenção de enviesamentos injustos, a acessibilidade e a participação das partes interessadas; f) bem-estar societal e ambiental; g) responsabilização, com a auditabilidade, a minimização e a comunicação dos impactos negativos, as soluções de compromisso e as vias de recurso. UNIÃO EUROPEIA. Orientações éticas para uma IA de confiança. Grupo Independente de Peritos de Alto Nível sobre a Inteligência Artificial. Bruxelas, 2019. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/ethics-guidelines-trustworthy-ai. Acesso em: 10.10.23. A OCDE aponta cinco princípios que garante a administração confiável da IA: a) crescimento inclusivo, desenvolvimento sustentável e bem-estar; b) valores centrados no ser humano e justiça; c) transparência e explicabilidade; d) Robustez, segurança e proteção; e e) responsabilização e accountability. OCDE. Recommendation of the Council on Artificial Intelligence. 21.5.19. Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/oecd-legal-0449. Acesso em: 10.10.23.

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Rafael Carvalho Rezende Oliveira

Visiting Scholar rpela Fordham University School of Law-New York. Pós-Doutor pela UERJ. Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Direito pela PUC-RJ. Professor do Ibmec. Procurador do Município do RJ.

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