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1ª memória pessoal: a beca
Inicio esta fala com uma primeira mensagem pessoal.
Pouco depois de ingressar como docente na Faculdade, em 2013, numa solenidade que requeria uso de beca, liguei a meu pai pedindo autorização para o uso da sua. Ele ficou feliz com meu interesse e na mesma hora autorizou. Pouco tempo depois, numa outra cerimônia, foi a minha vez de ser consultada sobre o uso da beca. Levei um susto. Ele me telefonou, perguntando se eu iria usá-la. “Pelo amor de Deus!” – eu disse. Esse era meu pai, combinação de humildade pessoal com orgulho pelas filhas e filhos que ele tinha criado. O mesmo orgulho e prazer de ensinar que ele tinha com seus estudantes.
É com saudade e carinho que visto esta beca. Lembrança de meu querido pai. Ela representa estudo, trabalho e a conquista de autoridade pelo intelecto, pela reflexão e pelo debate fundamentado de ideias. O uso do traje talar, que representa nas vestes a conquista do grau universitário, é uma expressão de respeito e compromisso. Formar-se pelo Largo de São Francisco é fazer parte da elite jurídica do país, com o que isso representa de desafiado.
Dalmo Dallari e a mensagem dos Elementos de Teoria Geral do Estado
Os estudantes que se formam hoje não conheceram Dalmo de Abreu Dallari pessoalmente. Foram alunos de seus alunos. Mas foram recebidos por ele, nas palavras de seu livro Elementos de Teoria Geral do Estado, quando entraram na Faculdade.
Apresentando aos ingressantes no curso jurídico o Estado e suas relações, o livro fala do sentido ético desta construção político-jurídica. Isso é muito importante nos dias que correm, em que as instituições do Estado vêm sendo submetidas a contestação e descrédito. Diz Dalmo Dallari:
“O fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana.” (Dalmo Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, 30ª ed, 2011, p. 112)
2ª memória pessoal: as formaturas
Quando eu era adolescente, mais de uma vez acompanhei meu pai ao Anhembi nas formaturas do Largo de São Francisco, em que ele foi escolhido patrono ou paraninfo. Lembro-me bem do entusiasmo e do engajamento com que ele preparava sua fala.
Era o período de redemocratização do Brasil, o começo de um movimento que desaguou primeiro na frustrada campanha das Diretas Já, em 1984, depois na luta pela Assembleia Constituinte, que também conheceu uma derrota, quando não aprovamos a Constituinte exclusiva. Mas finalmente venceu a Constituição de 1988. Segundo o Prof. José Afonso da Silva é a única da história do Brasil que tem “cheiro de povo”. Aquela que foi saudada pelo Presidente da Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, em célebre discurso:
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. (…) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Nesse contexto, Dalmo Dallari correu o Brasil para convencer sobre a importância da constituinte, no início vista com desconfiança por muitos. Foi chamado de “caixeiro viajante da constituinte” (Antonio Sérgio Fernandes). Em seu Constituição e Constituinte (4ª ed, de 2010), confirmava a confiança no papel civilizador da Constituição:
“(…) além de afirmar enfaticamente os direitos humanos, dando-lhes o valor e a força de verdadeiros direitos, a Constituição estabeleceu meios eficazes para a defesa e exigência, por meios jurídicos, desses direitos. Percebendo o alcance político e social da Constituição, os antigos oligarcas, os aproveitadores da superioridade econômica, os viciados em privilégios de qualquer espécie, os resistentes à democratização da sociedade, de modo geral, têm feito críticas radicais à Constituição, sobretudo pelo que consideram presença excessiva do Estado na proteção e promoção dos direitos sociais, o que, obviamente, exige recursos financeiros.” (p. 118-119)
O futuro do Estado
As lições de Dalmo Dallari são alimento para espíritos desalentados. O Estado, na sua apresentação, é algo a ser construído para a convivência humana. Essa tarefa pode ser pesada para os jovens. O mestre conhecia a realidade dos escombros deixados pelas gerações passadas; quando escreveu sua tese de titularidade, em 1974, o mundo vivia a guerra fria, a ameaça nuclear. O Brasil estava sob o regime da ditadura militar, ameaça que nos rondou novamente, a testar as instituições construídas no período democrático. Naquele momento, arriscou-se a pensar sobre o futuro do Estado, não como especulação diletante, mas como busca de um norte necessário à ação:
“Essa predição do futuro político pode servir de estímulo ou advertência, mas de qualquer modo será útil para os que se dispõem a trabalhar pela consecução de uma ordem política e social justa, condição indispensável para que a humanidade viva em paz.” (O Futuro do Estado, p. 12)
3ª memória pessoal: convites dos estudantes
Fecho essa fala com uma última lembrança. Um amigo professor me contou de uma conversa que teve com meu pai, em que ele recomendava sempre considerar os convites de estudantes. Foi assim que ele viajou para os recantos mais distantes do país. Fazia parte do folclore da família perguntar para onde seria a próxima viagem, se ele ia pegar ônibus, barco ou avião. Porque, de fato, ele não hesitava em aceitar convites para ir aos lugares mais distantes, falar para o público jurídico, mas principalmente aos mais humildes, a quem se sentia ligado, e àqueles que não integravam o centro do poder, como os indígenas, as crianças e os jovens.
Pensando nessas pessoas, Dalmo Dallari escreveu dois pequenos livros para a Coleção Primeiros Passos, O que são direitos da pessoa (1981) e O que é participação política (1983) nos quais explicava o ideário da dignidade humana como princípio nuclear do sistema jurídico. Recentemente, o poder simbólico deste princípio pode ter se desgastado, em função de seu uso retórico, sem compromisso de efetivamente honrar os direitos fundamentais. Há quem faça um uso bastardo da noção de liberdade, distorcendo o seu sentido, como se ela pudesse ser usada para contrariar as regras da convivência democrática. Mas naquele momento isso foi muito importante para organizar a vida política do país, com um sentido de convocação cívica para a participação na vida pública.
“Quando existe um direito injusto é sinal de que o povo não foi ouvido ou de que algumas pessoas usaram a força econômica, militar ou política para impor a todos os outros o direito injusto. Nesse caso o que existe é um direito ilegítimo. É preciso, então, que muitas pessoas denunciem as injustiças e façam pressão para que as regras ilegítimas sejam substituídas por outras aprovadas pelo povo. (…) O desinteresse da maioria do povo deixa sem controle e sem fiscalização os que tomam as decisões políticas. (…) A participação constante, para influir sobre o modo de organização da sociedade, sobre a escolha dos governantes e os atos do governo e, especialmente, sobre os objetivos da vida social é direito de todos. E é também um dever de todos, pois a omissão de cada um deixa caminhos abertos para os injustos e audaciosos.” (p. 9-11)
Por fim, cabe lembrar um trecho de sua última obra, Os direitos da mulher e da cidadã, em que resgata a história de Olímpia de Gouges. Essa mulher ilustre, militante e mártir da Revolução Francesa, foi, segundo Dalmo Dallari, duplamente injustiçada. Primeiro, porque foi condenada à morte sem crime e sem direito de defesa. E segundo, porque foi sepultada no esquecimento, durante quase 200 anos.
“A injustiça da ocultação de seu empenho pessoal, corajoso e determinado em favor da justiça e da fraternidade nas relações humanas, assim como de suas bem fundamentadas denúncias, chegou ao extremo com a imposição do mais absoluto silêncio sobre a extraordinária contribuição de Olímpia de Gouges para o reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais das mulheres, que foi a produção de um texto verdadeiramente notável e de grande valor na atualidade, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) (…)”.
A luta pelo direito e pela justiça precisa ser renovada sempre. Felicidades aos formandos e formandas!
Uma última nota pessoal
Depois deste discurso, quando fui vestir a famosa beca numa cerimônia do Largo de São Francisco, ela misteriosamente desaparecera. Acompanhada pelo guardião dessas vestes há várias décadas, vasculhamos todos os armários da Sala das Becas – como é conhecida a Sala dos Professores -, sem sucesso. O costume de emprestar as becas sem aviso em solenidades tinha feito uma vítima.
Mas para minha surpresa e grande alegria, há poucos dias o Eduardo trouxe a boa notícia do encontro da beca. Para celebrar, decidi publicar o discurso de homenagem, na forma deste artigo. A publicação não podia ser outra. O Migalhas era o site preferido de meu pai, que tinha o endereço salvo no “tablete” (como ele dizia) que o acompanhava pela casa afora. Saudade.
Maria Paula Dallari Bucci
Jurista e advogada.