Licença compulsória de direito de propriedade intelectual como pena   Migalhas
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Licença compulsória de direito de propriedade intelectual como pena – Migalhas

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O presente artigo faz parte de uma série de artigos que tratam das penas não pecuniárias aplicadas a pessoas físicas e jurídicas com base na lei de Defesa da Concorrência – LDC (lei 12.529/11), especificamente no artigo 38 e seus incisos, e que estão explicitados mais detalhadamente na obra coletiva “Sanções não pecuniárias no antitruste”, organizada pela Profa. Amanda Athayde e publicada pela Editora Singular1.

Neste artigo, trataremos da pena de “recomendação aos órgãos públicos competentes para que seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual”, constante do artigo 38, inciso IV, a), da LDC, objeto de análise aprofundada na referida obra pelos mesmos autores deste artigo. O estudo levou em consideração semelhanças desse tipo de penalidade na legislação brasileira, a legislação comparada e a análise da jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, nos casos em que essa pena foi aplicada entre 2012 e 2020.

Mas que pena antitruste não pecuniária é essa? Explicamos.

Conforme já mencionado, o Capítulo III, do Título V, da lei 12.529/11 cuida da fundamentação legal das penas fixadas pelo Tribunal do Cade no âmbito de processos administrativos sancionadores. Em seu artigo 37, a lei prevê as formas de aplicação de multa – a penalidade majoritariamente aplicada nesses casos – e no artigo 38 outras hipóteses de penas não pecuniárias, que sempre deve levar em consideração dois aspectos: a gravidade dos fatos e o interesse público geral, para quando apenas a aplicação de multas não seja suficiente para coibir práticas contrárias à livre concorrência.

O inciso IV, a) do artigo 38 da lei 12.529/11 impõe a recomendação aos órgãos públicos competentes para que seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual. O licenciamento compulsório de direito de propriedade intelectual pode ser compreendido como “a autorização dada por um governo para o uso de patente ou direito autoral por terceiros sem o consentimento de seu titular”.2 A nível internacional, a previsão da licença compulsória de direitos de propriedade intelectual enquanto penalidade para condutas anticompetitivas veio a obter respaldo notadamente através da edição do Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (“Acordo TRIPS”), em 1994.3

Ocorre que, ainda quando prevista em dispositivos legais ou reconhecida pela jurisprudência, a pena de licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual por infração concorrencial, não observa, na prática, tanta aderência por parte das autoridades antitruste ao redor do mundo, como se verá adiante.

À diferença das penas puramente pecuniárias, o licenciamento compulsório implica, a priori, o sacrifício de outros valores igualmente caros à ordem jurídica, como a promoção da inovação. Infere-se da gravidade dessa penalidade o porquê de, mesmo naqueles ordenamentos jurídicos em que é expressamente previsto, o licenciamento compulsório ocorrer com reduzida ou nenhuma frequência, se comparado a outras sanções pró-competitivas, como se demonstra adiante, a partir da análise da experiência estrangeira.

Tratando-se de pena que reúne questões tanto de Direito da Concorrência quanto de Direito de Propriedade Intelectual, o licenciamento compulsório, em termos práticos, oferece um outro desafio: tende a exigir o engajamento de mais de uma autoridade governamental quando de sua execução. Isso porque, em diversas jurisdições, agências antitruste não são igualmente responsáveis pelo registro de direitos de propriedade intelectual, função essa normalmente atribuída a órgãos próprios.

No Brasil, por exemplo, não há previsão de um procedimento próprio para o licenciamento compulsório de direitos da propriedade intelectual em razão de abuso de poder econômico. A lei se limita a conferir exclusivamente ao Cade juízo acerca da abusividade da exploração do direito de propriedade intelectual, enquanto incumbe ao INPI tão somente verificar o preenchimento dos requisitos legais por parte daquele que, munido de decisão administrativa proferida por aquele Conselho, apresenta-se para requerer o licenciamento compulsório.4

Já no âmbito internacional, das sete jurisdições que foram objeto da análise, apenas Canadá e Japão dispõem de previsões legislativas situando o licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual dentre as penalidades cabíveis a ilícitos concorrenciais. Ainda que, nos Estados Unidos e na União Europeia, as respectivas legislações concorrenciais não se refiram expressamente à medida, a sanção é aplicada e teve a sua adoção reconhecida através de precedentes (judiciais ou administrativos), com respaldo na discricionariedade da autoridade competente para a adoção dos remédios necessários para fazer cessar a infração. Por fim, quando da publicação da obra, não foram localizadas quaisquer disposições normativas similares ou decisões a respeito nos ordenamentos da Austrália, México e Reino Unido.  

E como o Cade tem aplicado esse tipo de pena ao longo dos anos?

Esta etapa empírica da pesquisa considerou os casos julgados pelo Cade no período de 2012 a 2020, com base nos dados fornecidos pelo Serviço de Informação ao Cidadão do Cade – SIC/CADE. Dos 274 casos de condutas anticompetitivas julgados no período, em 99 deles houve a aplicação de penas não pecuniárias do artigo 38 da lei 12.529/11 e, em nenhum verificou a aplicação da sanção contida do inciso IV, a) do artigo 38 da lei 12.529/11. Não obstante a ausência de precedentes condenatórios em que a pena alternativa tenha sido aplicada, foi possível identificar três casos em que o Cade se manifestou sobre as implicações da licença compulsória de direito de propriedade intelectual na concorrência: (1) Caso Anfape: repressão a condutas potencialmente anticompetitivas envolvendo desenho industrial, (2) Caso Cultivares: hipótese de licenciamento compulsório de espécies de plantas melhoradas protegidas por propriedade intelectual e (3) Caso Sofosbuvir: busca pela quebra de patente farmacêutica.

O caso (1) Anfape foi o Processo Administrativo 08012.002673/2007-51, instaurado em face de montadoras de veículos automotivos, por alegação de possível exercício abusivo de direitos de propriedade intelectual, por meio de medidas judiciais e extrajudiciais.

Em Nota Técnica de remessa do Processo Administrativo para julgamento pelo Tribunal do Cade, a Superintendência-Geral destacou que compete ao Cade, em decisão administrativa, reconhecer a existência de abuso de direito derivado de patente para que ela seja compulsoriamente licenciada pelo INPI. Contudo, no caso concreto, a Superintendência-Geral entendeu que, mesmo havendo infração à ordem econômica, o licenciamento compulsório do desenho industrial das representadas não seria necessário.[5] No julgamento, o Tribunal do Cade arquivou o Processo Administrativo, por maioria, em relação a todas as representadas, pela não comprovação de abuso dos direitos de propriedade industrial.

Por sua vez, o caso (2) Cultivares foi o Processo Administrativo nº 08700.004002/2020-44, instaurado para a apreciação e decisão de mérito quanto ao pedido de licenciamento compulsório de cultivares de cebola. A lei 9.456 de 25 de abril de 1997, ao instituir a proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual de cultivares6, previu a possibilidade de licença compulsória da cultivar protegida, quando configurada restrição injustificada à concorrência. Estabeleceu ainda que o requerimento de licença seja dirigido ao Ministério da Agricultura e Pecuária – MAPA e decidido pelo Cade.

Ao analisar o requerimento em questão, a Superintendência-Geral recomendou o indeferimento do pedido de licença compulsória das cultivares, visto que não teriam sido demonstrados indícios de restrição injustificada à concorrência. O parecer da Superintendência-Geral foi homologado, por maioria, pelo Tribunal do Cade, em 23/9/20. No julgamento, a então Conselheira Paula Azevedo manifestou-se em voto vogal pela não homologação do Despacho, por entender que a decisão deste tipo de requerimento de licença compulsória deve seguir o procedimento estabelecido para processos administrativos sancionadores, com “garantia de contraditório e de ampla defesa (art. 5º, LV, CRFB)”.

Finalmente, o caso (3) Sofosbuvir, embora não tenha sido julgado pelo Tribunal do Cade, é representativo por trazer à tona a hipótese de abuso de direito patentário farmacêutico, discussão que foi escalada pela pandemia da Covid-19.  Em 21 de outubro de 2019, a Defensoria Pública da União – DPU, o Médicos sem Fronteiras – Brasil, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA, o Grupo de Incentivo à Vida – GIV, o Fórum das ONGs Aids do Estado de São Paulo – FOAESP, o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids – GAPA/BA, e demais entidades apresentaram representação, junto ao Cade, em face de fabricantes de medicamentos contendo Sofosbuvir 400mg, antiviral utilizado no tratamento e cura da hepatite C, por suposta infração à ordem econômica consistente em discriminação e exercício e exploração abusiva de direitos de propriedade intelectual. Em outubro de 2019, a representação foi autuada como Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo, de caráter público.7 Já em setembro de 2022, a SG/Cade emitiu nota técnica apontando para a insubsistência de indícios de infração à ordem econômica e concluindo pelo arquivamento do procedimento.

Quais as conclusões que podem ser alcançadas e as sugestões de melhorias?

Como se vê, por mais que prevista no ordenamento jurídico nacional, a pena do inciso IV, a), do artigo 38 da lei 12.529/11 de recomendação do licenciamento compulsório do direito de propriedade intelectual exigiria, ainda, para a sua efetiva cominação, que fossem superadas, no Tribunal do Cade, questões acerca dos entraves ao desenvolvimento científico, bem como solucionadas questões de ordem administrativa, quanto à disposição e capacidade da autarquia para monitorar a sua execução e cooperar com demais entes públicos.

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1 ATHAYDE, Amanda. (Org.) Sanções não pecuniárias no antitruste. 1ª Ed. São Paulo: Editora Singular, 2022.

2 APOSTOLOPOULOS, Haris. Anti-Competitive Abuse of IP Rights and Compulsory Licensing Through the International Dimension of the TRIPS Agreement and the Stockholm Proposal for its Amendment. Richmond Journal of Global Law & Business, 2007, vol. 6, issue 3, article 4, pp. 265 – 282.

3 Acordo TRIPS – Artigo 40: (2) Nenhuma disposição deste Acordo impedirá que os Membros especifiquem em suas legislações condições ou práticas de licenciamento que possam, em determinados casos, constituir um abuso dos direitos de propriedade intelectual que tenha efeitos adversos sobre a concorrência no mercado relevante. Conforme estabelecido acima, um Membro pode adotar, de forma compatível com as outras disposições deste Acordo, medidas apropriadas para evitar ou controlar tais práticas, que podem incluir, por exemplo, condições de cessão exclusiva, condições que impeçam impugnações da validade e pacotes de licenças coercitivas, à luz das leis e regulamentos pertinentes desse Membro.

4 FORTUNATO, Lucas Rocha. Sistema de Propriedade Intelectual no Direito Brasileiro — Comentário à Nova Legislação sobre Marcas e Patentes. Editora Brasília Jurídica, 1996.

5 CADE. Processo Administrativo nº 08012.002673/2007-51, julgado em 25/04/2018. Parecer final da Superintendência-Geral, p. 155.

6 Nos termos do art. 3º, IV, da Lei nº 9.456/1997, cultivar é “a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos”.

7 CADE. Procedimento Preparatório nº 08700.005149/2019-18.

Amanda Athayde

Amanda Athayde

Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

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Daniel Segalovich

Candidato ao LL.M da London School of Economics and Political Science, com especialização em comércio, concorrência e inovação. Bacharel em Direito pela UnB. Ex-intercambista do programa de especialização em Direito Internacional da Université Libre Bruxelles. Ex-estagiário da Divisão de Concorrência da OECD. As opiniões aqui expressadas são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais esteja vinculado.

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Luana Fernandes

Associada de Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial e Compliance. Pós-graduada em Compliance pelo Ibmec. Bacharel em Direito pela UnB. As opiniões são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais esteja vinculada.

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