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O art. 301 do Código de Processo Penal dispõe que qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Nesse sentido, o art. 302 do CPP estabelece as hipóteses que caracterizarão o flagrante delito:
“Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
Trata-se, portanto, de norma não flexível, uma vez que em direito penal não se admite interpretação extensiva em eventual prejuízo do jurisdicionado. Isto é, excluindo-se o rol de situações em que o indivíduo poderá ser preso em flagrante delito, as outras modalidades de prisões dependerão de ordem proferida por juízo competente.
De acordo com o art. 144 da Constituição Federal, a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através das polícias federal, civil, militar e penal.
Pode-se dizer, portanto, que as guardas municipais, apesar de serem indispensáveis para a preservação de bens, serviços e instalações dos municípios, não se enquadram na previsão constitucional como órgão capaz de desenvolver atividades típicas das polícias, sendo-lhes vedada, portanto, a realização de prisões fora das hipóteses do art. 302 do CPP.
Em linhas gerais, para melhor compreensão das atribuições conferidas as guardas municipais, o ministro Rogério Schietti, no julgamento do REsp 1.977.119/SP classificou as atividades desenvolvidas por esses servidores como sui generis, pois, se por um lado não podem desenvolver atividades típicas das policiais, por outro não podem ser equiparados ao cidadão comum, na medida em que o art. 144, §8º, da Constituição Federal estabelece que eles fazem parte do Sistema de Segurança Pública.
Confira trechos da ementa desse caso:
“Da mesma forma que os guardas municipais não são equiparáveis a policiais, também não são cidadãos comuns. Trata-se de agentes públicos com atribuição sui generis de segurança, pois, embora não elencados no rol de incisos do art. 144, caput, da Constituição, estão inseridos § 8º de tal dispositivo; dentro, portanto, do Título V, Capítulo III, da Constituição, que trata da segurança pública em sentido lato. Assim, se por um lado não podem realizar tudo o que é autorizado às polícias, por outro lado também não estão plenamente reduzidos à mera condição de “qualquer do povo”; são servidores públicos dotados do importante poder-dever de proteger o patrimônio municipal, nele incluídos os seus bens, serviços e instalações.”
Isso quer dizer, em resumo, que as guadas municipais estão obrigados a prenderem quem quer que seja encontrado em flagrante delito, sendo-lhes permitida, também, a revista pessoal em caso de fundada suspeita devidamente justificada pelas circusntâncias do caso concreto. Isto é, se a prisão em flagrante decorre da revista pessoal fundamentada concretamente não haverá ilegalidade na prisão:
“A permissão para a revista pessoal em caso de fundada suspeita decorre de desconfiança devidamente justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. É necessário, pois, que ela (a suspeita) seja fundada em algum dado concreto que justifique, objetivamente, a invasão na privacidade ou na intimidade do indivíduo. (AgRg no HC 621.586/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª turma, julgado em 21/9/21, DJe de 29/9/21.)”
Com efeito, quando a prisão em flagrante é oriunda de revista pessoal realizada sem que fossem justificadas as razões concretas da abordagem, ou seja, a fundada suspeita decorreu de interpretação subjetiva da guarda municipal, o STJ considera que a prova obtida através dessa violação de privacidade é ilícita, pois a fundada suspeita apta a autorizar a revista pessoal não admite interpretação subjetiva.
No julgamento do HC 830.530/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 3ª seção, julgado em 27/9/23, DJe de 4/10/23, onde foi constatada que a prisão em flagrante realizada pela guarda municipal, após a realização de busca pessoal, não tinha qualquer relação com a proteção de bens, serviços ou instalações municipais, foi concedida ordem de habeas corpus para declarar ilícitas as provas colhidas por meio de busca pessoal e, por consequência absolver o jurisdicionado.
Confira trechos da ementa desse julgado:
“Ainda que, eventualmente, se considerasse provável que o réu ocultasse objetos ilícitos, isto é, que havia fundada suspeita de que ele escondia drogas, não existia certeza sobre tal situação a ponto de autorizar a imediata prisão em flagrante por parte de qualquer do povo, com amparo no art. 301 do CPP. Tanto que, conforme se depreende da narrativa fática descrita pelas instâncias ordinárias, só depois de constatado que havia drogas dentro do bolso e das vestes íntimas do paciente é que se deu voz de prisão em flagrante para ele, e não antes. E, por não haver sido demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção dos bens, serviços ou instalações municipais, ou de algum cidadão que os estivesse usando, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado.”
Em outro caso que envolveu prisão em flagrante pelo crime de tráfico de drogas realizada pela guarda municipal, após o ingresso em residência alheia, o STF entendeu que os limites da prisão em flagrante foram exarcerbados, o que afetou a validade da prova obtida através dessa violação constitucional. Confira trechos da ementa do RE 1.281.774:
“Hipótese em que a prisão realizada pela Guarda Municipal ultrapassou os limites próprios da prisão em flagrante. Prisão realizada, no caso, a partir de denúncia anônima, seguida de diligências investigativas e de ingresso à residência do suspeito.”
Portanto, como integrante do Sistema de Segurança Pública, a guarda municipal pode, e deve, prender aquele que se encontre em situação concreta de flagrante delito. No entanto, como não possuem as mesmas atribuições das polícias, não estão autorizadas a realizarem prisões por critérios de oportunidade e de conveniência. Caso contrário, transformarão a prisão em ilegalidade, o que levará à nulidade da prova obtida através dessa violação constitucional.
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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
REsp n. 1.977.119/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022.
HC n. 830.530/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 27/9/2023, DJe de 4/10/2023.
RE 1281774 AgR-ED-AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 13-06-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 25-08-2022 PUBLIC 26-08-2022.
Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.