Só 3 Estados gravam ações policiais; Schietti analisa efeito no STJ   Migalhas
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Só 3 Estados gravam ações policiais; Schietti analisa efeito no STJ – Migalhas

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No Brasil, a invasão de domicílios por parte da polícia sem o devido processo legal tornou-se uma preocupação pública e judicial. Por conta disso, a implementação de câmeras corporais nos uniformes dos policiais nasce como uma proposta promissora para combater abusos e garantir a legalidade das ações policiais.

De fato, num contexto marcado por frequentes debates sobre segurança pública vs direitos humanos, a introdução de câmeras corporais pela polícia pode ser um divisor de águas.

“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, preceitua o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal.

No entanto, como se sabe, a realidade das operações policiais frequentemente desafia esse preceito.

Em entrevista exclusiva ao Migalhas, o ministro Rogerio Schietti, integrante da 6ª turma e 3ª seção do STJ, colegiados especializados em Direito Penal, conversou sobre o tema.

S. Exa. ressalta que, apesar das diretrizes claras, as exceções se tornaram uma espécie de regra não oficial, com invasões domiciliares frequentemente justificadas por denúncias anônimas sem subsequente verificação.

Em março de 2021, a 6ª turma do STJ decidiu, no âmbito do HC 598.051, que o ingresso de policiais em residência de suspeito deveria ser feito com declaração assinada pela pessoa que autorizou, indicando, sempre que possível, testemunhas do ato. Além disso, a operação deveria ser registrada em áudio e vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

Na ocasião, o colegiado fixou o prazo de um ano para que os Estados fizessem o aparelhamento e treinamento das polícias e demais providências necessárias para adaptação às diretrizes da decisão.

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Policiais precisam registrar em áudio e vídeo a entrada em residências

O ministro Rogerio Schietti, relator do mencionado acórdão na 6ª turma, explicou que nesse habeas corpus o colegiado buscou reforçar o conceito de justa causa, de modo que não pudesse mais se autorizar, por exemplo, o ingresso com uma simples denúncia anônima.

O ministro explicou que eles passaram a ser mais rigorosos na análise dessas situações, porque se tornaram comuns situações em que o policial alegava ter recebido uma denúncia anônima, ou ter conversado com alguém na rua – um adolescente ou um informante -, dizendo que em alguma casa se praticava o crime de tráfico ou que existia drogas ali guardadas.

“Com base tão somente nessa denúncia anônima, sem nenhuma comprovação, essa casa é invadida e quando ali se encontra algum objeto ou produto de crime, como, por exemplo, arma ou drogas, isso vinha sendo aceito em boa parte dos casos”, explicou o ministro.

Consentimento em invasão domiciliar

Schietti destaca que na decisão da 6ª turma houve a exigência de uma comprovação mais confiável do consentimento do morador. Porque, em qualquer situação, se o morador consentir que a polícia ingresse na sua residência para uma busca e apreensão, para investigar algum crime, o ingresso é válido.

“Desde que o consentimento efetivamente seja válido, seja livre, seja voluntário, sem nenhum tipo de coação, nenhum tipo de induzimento. E isso também não vinha sendo feito. Nós não tínhamos essa comprovação, e é muito comum, depois, no processo, a vítima ou alguma testemunha dizer que não autorizou ou que foi coagida a autorizar.”

Pesquisa do Ipea com o Ministério da Justiça e Segurança Pública analisou mais de cinco mil autos processuais por tráfico de drogas sentenciados em 2019, no âmbito dos TRFs e dos TJs, a partir de dados presentes na base de processos penais do CNJ.

De acordo com o estudo, em 49% dos casos foi identificada informação sobre entrada em domicílio em que os suspeitos moravam ou estavam no local, sendo que em 56% dos casos não houve informação sobre a existência ou não de consentimento para o ingresso.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Schietti chama a atenção para a falta de conhecimento da quantidade de domicílios que são invadidos, e que não se encontra nada ou não é noticiado.

“Nós só conhecemos quando efetivamente se encontra alguma coisa. E aí vem uma política de dizer, não, nós prendemos um traficante, realmente havia drogas. É como se o resultado da diligência validasse, legitimasse, uma prática que precisa ter cuidados para ser considerada válida. Sob pena de nós franquearmos a residência de qualquer pessoa a partir de algo que não é comprovado.”

Dado ainda mais alarmante do estudo mostra informações sobre as circunstâncias apontadas nos autos processuais individuais para a entrada em domicílio. Em apenas 15,6% dos casos, a entrada em domicílio foi justificada pelo cumprimento de mandados de busca e apreensão.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Asilo inviolável?

“Consideramos que o domicílio de uma pessoa, e não só da pessoa suspeita de um crime, mas de todos os que ali habitam, é o local mais sagrado que você tem. Nós não queremos, evidentemente, transformar o domicílio num abrigo para a prática de crimes. Mas também não podemos deixar a critério de um policial dizer qual a casa que ele vai invadir a partir de uma denúncia anônima”, asseverou o ministro Schietti.

Reafirmando o que disse o ministro, estudo do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP constatou, ao analisar 1.837 acórdãos de tribunais estaduais, entre 2000 e 2021, que 60% das abordagens em residências foram motivadas por denúncias anônimas, seguidas de 31% motivadas por patrulhamento rotineiro das polícias em vias públicas e 9% dos casos são motivados por denúncias de transeuntes e terceiros identificados.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A análise também identificou que as decisões estão assentadas quase que exclusivamente no depoimento policial e que as denúncias anônimas, principais motivações para as abordagens, em muitas das vezes, não são acompanhadas de outras ações policiais que busquem averiguar a denúncia realizada.

As provas nos quase dois mil processos são majoritariamente testemunhais, com policiais representando 69% dos depoentes, contra 31% de civis – isto é, mais que o dobro das testemunhas são agentes de segurança pública.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Câmeras policiais

Para o ministro Rogerio Schietti, é fundamental que haja um registro documental do ingresso dos policiais em residências. “Isso deve ser feito, preferencialmente, por meio de câmeras, por meio de um registro em áudio e vídeo, que permita um controle sobre a legalidade de toda a operação, desde a abordagem inicial da polícia com o morador, o consentimento válido do morador e a própria execução da medida”, enfatizou. 

“Todas as notícias que nós vemos de abuso, ou a vítima ou uma testemunha filmou, eventualmente, a própria polícia. Então, vejam a quantidade de casos que devem ocorrer de abusos, de arbitrariedades, de violências excessivas que não foram noticiadas porque não tem o registro.”

Passados mais de três anos da decisão do STJ que alertou para a gravação em áudio e vídeo de ações policiais, levantamento realizado em setembro de 2023 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública constatou que os projetos de câmeras corporais na segurança pública foram implementados apenas nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.

Estão em implementação nos Estados de Minas Gerais, Rondônia, Roraima e Rio Grande do Norte. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, todas as outras unidades federativas estão em fases de análise, testes e contratação, com exceção do Mato Grosso do Sul, que não se pronunciou.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Juíza auxiliar no CNJ, Carolina Ranzolin Nerbass era auxiliar da presidência do TJ/SC quando houve investimento, por parte do Tribunal, de R$ 6,2 milhões no projeto de câmeras corporais no Estado.

Segundo ela, tal iniciativa, além da grande importância por si só, em termos de segurança pública, interessou sobremaneira o Poder Judiciário no âmbito da persecução penal, pois além da prova testemunhal, levou para a instrução do inquérito policial e da ação penal, imagens da atuação policial, facilitando e qualificando a análise da prova pelo julgador.

A juíza explicou que para que as imagens das câmeras corporais chegassem aos processos judiciais foi desenhado um fluxo de integração entre os sistemas da PM, da Polícia Civil e do Judiciário, facilitando o acesso desde o início do processo. “A contribuição efetiva proveniente das imagens das câmeras corporais dos policiais para o processo judicial acontece quando a ação policial é gravada desde o início da ocorrência, principalmente através de procedimento automatizado, que não dependa apenas do acionamento pelo policial.”

“Essas imagens e áudios vindo de forma completa para o processo auxiliam, inclusive, na melhor extração das informações relevantes da prova testemunhal, pois se tem um panorama completo da abordagem policial, sendo extremamente importantes nas abordagens em domicílio.”

Para Carolina, o projeto das câmeras corporais é essencial para que se tenha, através de imagens de áudio e vídeo, a mais precisa avaliação da ação policial em processos judiciais com a melhora da qualidade de dados que essa prova produz, que, obviamente, deve ser analisada em conjunto com as demais provas produzidas.

“A tecnologia está cada vez mais sendo aprimorada para facilitar a vida de todos. E não é diferente nos processos judiciais. Quanto mais presente o uso da tecnologia, de forma responsável, segura e confiável, mais eficientes serão os processos judiciais e mais fidedignas serão as provas neles produzidas. Sobre as imagens da ação policial produzidas pelas câmeras corporais, não é demais lembrar que uma imagem vale mais do que mil palavras.”

Jurisprudência no STJ

As duas turmas de Direito Penal do STJ, 5ª e 6ª, têm jurisprudência consolidada no sentido de que não é válido o ingresso de policiais em residências sem os critérios mínimos estabelecidos.

Em julgado recente, a 6ª turma absolveu suspeito preso por tráfico de drogas após a polícia entrar em imóvel vizinho sem mandado judicial. A polícia alegava que o homem havia fugido e tentou se desfazer de sacola com mais de 60 pinos de cocaína.

A defesa do suspeito, por outro lado, alegou que o homem foi abordado pela polícia e, apesar de nada ter sido encontrado com ele, passou a ser agredido, por causa de seu histórico criminal, motivo pelo qual tentou fugir. A defesa sustentou que a droga encontrada na sacola não pertencia ao acusado. 

O réu acabou condenado nas instâncias ordinárias e o caso chegou ao STJ.

Devido ao conflito de versões, caberia ao Ministério Público provar as circunstâncias que autorizaram a busca. Como houve dúvidas entre as versões e não foram apresentadas provas que confirmassem as declarações dos policiais, o colegiado entendeu não existir justa causa para a busca pessoal e declarou nulas as provas obtidas.

Relator neste caso, o ministro Sebastião Reis Jr. destacou a importância do uso das câmeras. “Tenho dito com frequência que situações como esta, em que há conflito de narrativas, poderiam ser solucionadas caso a polícia utilizasse meios modernos de controle de sua atividade, como as câmeras. Se registrada a abordagem, bem como seus momentos anteriores, não teríamos dúvida se os fatos ocorreram de acordo com o que foi descrito pelos policiais ou de acordo com o que foi narrado pelo recorrente”, concluiu.

Avalanche de casos

O exemplo anterior é um, entre centenas de casos que o STJ enfrenta sobre o tema. Segundo Schietti, só no seu gabinete, são mais de 400 processos aguardando julgamento. “Diariamente eu decido, monocraticamente, casos relativos ao ingresso do domicílio. No meu gabinete, imagina nos demais. Então, há uma quantidade muito grande de pessoas que foram condenadas, estão presas, eventualmente, com base nessa prova que nós consideramos ilícita.”

Para o ministro, o desrespeito das instâncias de origem à jurisprudência do STJ tem abarrotado o tribunal. “Isso gera um caos no sistema. Não há um único dia em que eu não decida um caso de invasão de domicílio que poderia ser resolvido na instância de origem”, alertou.

“Se o Tribunal de Justiça estadual, por exemplo, recebe um habeas corpus em que se noticia uma situação de uma pessoa que teve a sua casa invadida por policiais de madrugada sob a alegação de que o morador consentiu, mas isso não foi registrado, minimamente, de forma idônea, essa diligência não é válida e, portanto, caberia ao Tribunal anular o processo.”

Segundo Schietti, isso é um prejuízo para todo o sistema. “Essa sobrecarga excessiva da STJ se deve, em boa parte, à falta de compreensão dessa divisão de competências e de uma adesão a essa diretriz que foi traçada já e consolidada.”

O estudo do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Direito SP apontou que em 98% dos casos, os juízes rejeitaram as preliminares de nulidade da defesa, o que leva em geral a manutenção da condenação. Já no que se referem a decisões sobre os pedidos de mérito, em 1° grau, 96% das decisões proferidas foram condenações. Em 2° grau, o número cai para 94%.

O dado indica que tantos magistrados de 1° grau quanto os de 2° grau proferem decisões majoritariamente condenatórias, sendo as absolvições uma exceção.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Falta de transparência e responsabilização

Ministro Schietti analisou que não é mais aceitável a falta de transparência do trabalho de qualquer agente público.

“Nós somos sujeitos a esse escrutínio. As nossas decisões são sujeitas ao escrutínio das partes e da sociedade. É preciso que, também, as polícias se sujeitem a esse escrutínio que é feito por meio de uma transparência das suas ações, de modo, inclusive, a proteger os bons policiais e, eventualmente, unir aqueles que se desviam da lei.”

Para o ministro, tem chegado a hora de responsabilizar os agentes públicos que estão em desacordo com a lei. “Se nós passarmos a responsabilizar aqueles que assim agem, eu acredito que o resultado vai ser muito impactante, porque são situações diárias”, alertou.

“Talvez esteja chegando o momento de nós passarmos efetivamente a responsabilizar quem assim se comporta. Nós já temos, inclusive, decisões no STJ encaminhando os autos ao Ministério Público avaliar a ocorrência ou não de crime em situações em que nitidamente houve o ingresso em domicílio sem o mínimo de respeito ao que determina a lei. O policial não pode entrar na casa de quem ele acha que está cometendo um crime se ele não tem algum dado objetivo que o autorize a agir.”

Por fim, o ministro reitera: “o meio para se ingressar numa residência é mandado judicial ou consentimento do morador. Fora daí, só naquelas hipóteses em que, por uma situação de urgência, esteja sendo cometido um crime, e não haja tempo sequer para obter o mandado ou para obter o consentimento do morador. Nas outras hipóteses, é fundamental que ela se cerque de cuidados para que a sua diligência seja amparada pelo Direito.” 

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