Desporto, jogos olímpicos e o direito do entretenimento   Migalhas
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Desporto, jogos olímpicos e o direito do entretenimento – Migalhas

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Desde épocas muito longínquas, que remetem a origem da civilização, que a prática de exercícios físicos tem atraído a atenção dos seres humanos. Nos primórdios mais remotos, não era propriamente o contato com a natureza que atraía à prática de exercícios ao ar livre, pois a vida no ambiente puro da natureza era a condição natural da existência humana.

A partir de determinado momento, foi a necessidade de se defender do ataque de animais ferozes que obrigou o ser humano a melhorar o seu desempenho através do exercício, da corrida, do salto e o apuramento dos sentidos, o que lhe proporcionou vencer seres mais fortes que com ele competiam na luta pela sobrevivência. Além disso, sua destreza se aprimorava enquanto se alimentava de frutos e necessitava subir em árvores e arbustos.

Contudo, foi justamente com a guerra que a evolução da prática desportiva se desenvolveu. Em Esparta, os jovens eram separados de acordo com a aptidão física para serem selecionados para futuros combates.

Na Roma antiga o Coliseu foi palco de inúmeros embates entre gladiadores que duelavam entre si e com animais selvagens, em palcos cobertos de areia (daí a origem do vocábulo arena, que mais tarde veio dar origem ao Direito de Arena).

Ato contínuo, tivemos os torneios e as justas na Idade Média. Neste período as características da personalidade humana não se alteraram, apesar da interferência da religião católica, razão pela qual o principal fator condicionante da prática do exercício físico era a preparação do homem para a arte da guerra.

É durante o Renascimento que os sistemas educacionais incorporam a nomenclatura das instituições gregas e surge o Ginásio na Alemanha, o Liceu na França e a Academia na Inglaterra.

Em meados do século XIV, o italiano Vittorio de Feltre, dedica-se a educação e restabeleceu os ideais gregos de harmonia entre corpo e espírito, através da prática da ginástica, esgrima, corrida, equitação e natação. 

O escritor Eduardo Galeano lembra que os reis proibiram o futebol na Inglaterra. Em 1349, Eduardo III incluiu o futebol entre os jogos estúpidos e de nenhuma utilidade. Há éditos contra o futebol assinados por Henrique IV em 1410 e Henrique VI em 1547. Quanto mais o proibiam, mais se jogava1.

No livro “Suor. Uma História de Exercício” (Sweat. A History of Exercise), Bill Hayes traz detalhes do seu “encontro” com a obra Girolamo Mercuriale, médico italiano que em 1573 escreveu “De Arte Gymnastica”, no qual apresenta a história dos exercícios físicos e uma análise crítica aos trabalhos que existiam acerca deste tema até o momento. Ainda de acordo com Hayes, o inglês Richard Mulcaster – contemporâneo de Mercuriale – publicou em 1581 o livro “Positions”, no qual advogava a incorporação do exercício no currículo escolar, essencialmente as aulas de educação física. Os exercícios físicos eram divididos em três partes, ou seja, como jogos ou algo lúdico, exercícios para a guerra ou milícia e exercícios para segurança da saúde e longevidade.2  

O dramaturgo e poeta William Shakespeare (1564-1616) nasceu e foi criado em Stradford-upon-Avon e trabalhou em Londres. Suas histórias, comédias e tragédias, bem como seus sonetos e outros poemas, estão entre os textos mais famosos da língua inglesa. Ele usou imagens e metáforas desportivas em muitas de suas obras.

Em 1592, em sua Comédia dos erros, o poeta inglês recorreu ao futebol para formular a queixa de um personagem:

– Rodo para vós de tal maneira… Tomais-me por uma bola de futebol? Vós me chutais para lá, e ele me chuta para cá. Se devo durar neste serviço, deveis forrar-me de couro.

Em sua comédia Do jeito que você gosta (As you like it), escrita por volta de 1599, Shakespeare usou uma disputa de luta-livre entre Charles, lutador da corte do Duque Frederick e o personagem principal Orlando, como uma forma de desenvolver histórias em torno de amor, da honra e da família. Esta cena também sugere a cultura de uma luta-livre rural da época, com o calejado Charles já tendo derrotado e possivelmente matado três adversários antes mesmo de enfrentar Orlando.

E uns anos depois, já em 1605, em Rei Lear, o conde de Kent insultava assim:

– Tu, desprezível jogador de futebol!”

Nesta época o conceito dos sports ingleses era completamente diferente do conceito atual. Ainda de acordo com Shakespeare, esporte poderia ter o mesmo significado do ato sexual. Assim, no mesmo Rei Lear acima citado, o Duque de Gloucester vangloria-se, ao mencionar a concepção do seu filho bastardo ao dizer: “there was good sport at his making”.

Foi necessário um processo educativo e evolutivo e que contou com a astúcia do Barão Pierre de Coubertain, o fundador do movimento olímpico, que teve a coragem de romper com o antigo conceito e demonstrar que o olimpismo era muito mais do que aquele pensamento e prática das academias de ginástica. Afinal, o olimpismo procurava a perfeição através da harmonia moral, espiritual e física do ser humano3.

O Dia Olímpico é comemorado no dia 23/6 e tem como objetivo divulgar o desporto e o bem-estar nos jovens, assim como os valores olímpicos que são a excelência, a amizade e o respeito.

A data foi escolhida em um duro momento da civilização que enfrentava um traumático pós-guerra depois de duas edições dos Jogos Olímpicos suspensas pela II Guerra Mundial. O Dia Olímpico foi aprovado em janeiro de 1948, em Congresso do COI realizado dias antes da disputa dos Jogos Olímpicos de Inverno de Saint Moritz, na França.

A Carta Olímpica, de 1978, regulamenta tudo o que envolve o olimpismo, sendo que seus princípios fundamentais e valores essenciais servem de estatuto para o COI – Comitê Olímpico Internacional e define os direitos e as obrigações dos Comitês Nacionais, Federações Internacionais e do Comitê Organizador dos Jogos.

Na forma como hoje conhecemos e interpretamos, o vocábulo sport surgiu pela primeira vez em 1828, precisamente no ano em que o iniciador e incrementador dos desportos modernos, Thomas Arnold, tomou posse no cargo de diretor do colégio de rugby, na Inglaterra. 

Essa pode ser considerada a gênese do desporto moderno e está associada à afirmação do capitalismo industrial do século XIX e a identidade cultural e social que esteve base da construção do império britânico. Na lição de Maria José Carvalho, foram quatro os elementos que contribuíram para a institucionalização do desporto moderno: (i) A influência de Thomas Arnold na moralização e regulamentação das atividades desportivas nos colégios ingleses; (ii) a história das classes sociais inglesas (a aristocracia e os seus clubes por um lado e, por outro, a gentry, classe de operários industriais) na assunção do desporto; (iii) as lutas religiosas e políticas e (iv) a cultura vitoriana combinada com a afirmação do Império colonial.4

O desporto tem um objetivo final: ajudar a formar e realizar o ser humano indicando-o o caminho para a felicidade, conforme ensina Manuel Sérgio. E o que é a felicidade senão a busca essencial da existência humana, o projeto fundamental de vida, conforme pregado por Aristóteles em Ética a Nicómano.

É curioso notar que na sua origem a atividade físico-desportiva constituía um processo de melhorar a destreza e a resistência necessária às lutas armadas. Ensina o professor José Esteves que a luta era uma excelente forma de preparação para o combate corpo a corpo, o lançamento de peso substituía as lanças e a cerimônia de encerramento dos jogos olímpicos era, durante séculos, a corrida com as armas.

Portanto, o que surgiu como forma de potencializar a guerra, atualmente é utilizado para celebrar a paz e unir nações difundindo valores de união e ética, ou seja, uma verdadeira “escola de virtudes” conforme afirmado pelo Papa Francisco.

Esta espetacular evolução da atividade física aporta nos dias atuais e representa a consagração do desporto como expoente do entretenimento e que clama por uma regulamentação transversal.

O desporto evoluiu de passatempo a profissão, de estar ao alcance de uns poucos para um espetáculo de tantos5.

O Direito do Desporto pode ser incluído no gênero Direito do Entretenimento que possui uma fantástica abrangência e movimenta um mercado multimilionário e que desconhece fronteiras.

O mundo atual está cada vez mais voltado para o entretenimento, que foi alçado pela população mundial como prioridade na tabela de valores vigentes e segundo Mario Vargas Llosa a civilização do espetáculo precisa divertir-se, escapar do tédio em busca de uma paixão universal6.

Esta notável exposição midiática dos atletas faz com que, da noite para o dia, estas pessoas se tornem celebridades, garotos propaganda de marcas renomadas, comentaristas desportivos e até na política.

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1 GALEANO, Eduardo. Futebol ao Sol e à Sombra. L&PM Pocket. p. 31

2 HAYES, Bill. Sweat a History of Exercise. Bloomsbury, Londres – 2023. p. 12-14.

3 “Mais do que um movimento desportivo, o Movimento Olímpico é um processo educativo realizado através do Desporto.” FERREIRA, Albertina. MESTRE, Alexandre Miguel, JUSTINIANO, Aníbal, PAVOEIRO, José. ROCHA, Paula, ROCHA, Teresa (orgs.). Pierre de Coubertain o mais famoso desconhecido do mundo. Edições Afrontamento, 2022. p. 22/28

4 CARVALHO, Maria José. Elementos Estruturantes do Regime Jurídico do Desporto Profissional em Portugal. Coimbra Editora, 2009 – p. 12/13.

5 BOYKOFF, Lules. Jogos de Poder. Uma História Política das Olimpíadas. Ed. Zigurate. Lisboa, 2024. p. 19.

6 O escritor peruano afirma que o direito ao lazer é legítimo e que o povo precisa se divertir, porém, faz o alerta no sentido de ser perigoso colocar esta paixão em primeiro plano na tabela de valores, pois desta forma, a diversão pode ter consequências inesperadas, como a banalização da cultura, generalização da frivolidade e a proliferação do jornalismo sensacionalista. LLOSA, Mario Vargas. A Civilização do Espetáculo. Objetiva, Rio de Janeiro, 2015. p. 29/30.

Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

Sócio do escritório Corrêa da Veiga Advogados; doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL); membro da Academia Brasiliense de Direito do Trabalho (ABRADT); membro do IAB.

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