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Como de costume, a atividade extrajudicial se destaca como um instrumento crucial na proteção da população. E nesse ponto em especial trataremos da defesa de crianças e adolescentes. Tal atenção decorre de um cenário em que essa parcela da população encontra-se cada vez mais vulnerável, exigindo uma tutela específica e constante.
É justamente nesse contexto, e visando à mobilidade infantojuvenil, que o CNJ regulamentou, por meio do provimento 103/20, posteriormente alterado pelo provimento 120/21, a possibilidade de pais ou responsáveis legais autorizarem a viagem de menores de 16 anos, tanto em território nacional quanto internacional, utilizando o sistema de atos notariais eletrônicos – e – notariado.
A AEV – Autorização Eletrônica de Viagem representa um grande avanço ao permitir a realização desse processo em ambiente digital, facilitando a obtenção do documento para aqueles menores que necessitam se locomover. A implementação da AEV constitui uma solução inovadora e necessária, especialmente em um momento em que a agilidade e a segurança na emissão de documentos são essenciais. O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 83, estabelece que “nenhuma criança ou adolescente menor de 16 anos poderá viajar desacompanhado dos pais ou dos responsáveis sem expressa autorização judicial”.
É imperioso reconhecer que essa legislação visa assegurar a proteção dos menores e garantir o cumprimento dos direitos e deveres inerentes ao poder familiar, conforme previsto no Código Civil (art. 1.634, IV). Contudo, o dispositivo do ECA não deve ser interpretado de maneira absoluta. O próprio Estatuto prevê exceções que permitem viagens entre “comarcas contíguas” dentro do mesmo estado ou região metropolitana, além de autorizar que menores sejam acompanhados por ascendentes ou parentes colaterais até o terceiro grau, desde que apresentem a documentação que comprove o parentesco (art. 83, § 1.º, b).
O provimento CNJ 103/20, ao regulamentar a autorização eletrônica de viagem, oferece uma solução moderna, alinhada aos princípios de proteção do ECA, permitindo que os responsáveis realizem o procedimento de forma ágil e segura, sem comprometer os direitos das crianças e adolescentes.
É importante ressaltar que, embora o ECA utilize a expressão “pais”, a jurisprudência e a doutrina têm demonstrado que, em muitos casos, a autorização de apenas um dos genitores é suficiente para viagens nacionais, conforme os termos da resolução 131/11 do CNJ. Entretanto, para viagens internacionais, a autorização de ambos os genitores é necessária, salvo determinação judicial que dispense essa exigência, como nos casos de suspensão ou destituição do poder familiar. Essa distinção é crucial, pois garante que, independentemente do regime de convivência – compartilhado ou unilateral -, a proteção dos menores seja sempre priorizada.
A implementação da AEV – Autorização Eletrônica de Viagem pelo e-Notariado é um marco importante na formalização desse procedimento, tornando-o não apenas mais acessível, mas também mais compatível com as demandas da sociedade contemporânea. Em um mundo cada vez mais digital, a AEV combina inovação com eficiência, permitindo que os responsáveis obtenham a autorização necessária de maneira rápida e descomplicada. O processo de assinatura do documento requer apenas a realização de uma videoconferência, que serve para confirmar a identidade e a autoria do signatário, proporcionando uma camada adicional de segurança.
Essa inovação utiliza a assinatura digital notarizada, conferindo ao ato a segurança e validade necessárias para garantir que as autorizações sejam respeitadas em todas as esferas; toda a documentação é acompanhada de um certificado digital reconhecido pela ICP-Brasil. Ressalta-se que o tabelião responsável pela elaboração da AEV – Autorização Eletrônica de Viagem deve ser aquele do domicílio dos responsáveis; caso os pais ou responsáveis residam em endereços distintos, os tabeliães de ambos os locais são competentes para emitir a autorização, promovendo, assim, uma descentralização do processo.
Essa abordagem não apenas garante maior eficiência, mas também assegura que as famílias tenham acesso a um serviço que prioriza a agilidade, facilitando a realização de viagens de crianças e adolescentes de maneira segura e prática. Adicionalmente, a AEV exige a inclusão de informações detalhadas sobre o menor e os acompanhantes. O documento contém uma chave de acesso e um QR Code que possibilitam a verificação de sua autenticidade; os responsáveis que autorizam a viagem recebem um PDF assinado digitalmente, podendo realizar o download da AEV no sistema e-Notariado após a conclusão do processo.
Logo, essa mudança significativa elimina a necessidade de deslocamentos e facilita o acesso ao documento. Outro aspecto relevante é a possibilidade de incluir a necessidade de hospedagem do menor em casos de emergência na AEV; o tabelião deve questionar os responsáveis sobre essa inclusão, o que demonstra a flexibilidade e adaptabilidade do sistema em situações inesperadas.
Os custos para a emissão da AEV correspondem ao valor do reconhecimento de firma por autenticidade para cada responsável que autoriza a viagem do menor. Além da economia de tempo, há uma economia financeira significativa, especialmente para famílias que podem enfrentar dificuldades econômicas, sem qualquer prejuízo à segurança do ato.
No âmbito jurisprudencial, o Tribunal de Justiça de SP já se deparou com questões relevantes relacionadas à AEV. Em um pedido de providências na comarca de Santo André, fora alegado que o titular do tabelionato de notas rejeitou o pedido de emissão da AEV – Autorização Eletrônica de Viagem sem fundamentação. O juiz de Direito, dr. Luís Fernando Cardinale, ressaltou que a recusa não foi ilegal, uma vez que foi realizada automaticamente pelo próprio sistema e-Notariado, devido à falta de documentação regular. Ele destacou a necessidade de a genitora possuir um certificado digital emitido remotamente para a prática do ato. Por fim, o magistrado determinou o arquivamento da representação por não haver ilícito a ser investigado.
Compreende-se, assim, que a AEV não apenas simplifica o processo de autorização, mas também representa um avanço significativo na proteção dos direitos de crianças e adolescentes em um mundo cada vez mais digital. É fundamental que a AEV seja amplamente aceita e reconhecida como um documento legal válido, garantindo que a mobilidade dos menores ocorra sem riscos à sua proteção e segurança. Temos, com isso, que a atividade extrajudicial, principalmente por meio de suas novas alternativas, como a via eletrônica, deve ser incentivada e aprimorada, assegurando não apenas agilidade no processo, mas também segurança e conformidade legal, garantindo viagens tranquilas para os menores. A AEV é um marco relevante na proteção da mobilidade infantojuvenil, refletindo um compromisso contínuo com os direitos e a segurança das novas gerações.
Por fim, pode-se concluir que a atuação extrajudicial deve ser promovida e aperfeiçoada, para que as serventias estejam cada vez mais preparadas e capacitadas para atender a essa demanda. A disseminação de informação é uma ferramenta poderosa para um melhor entendimento e uso do mecanismo, permitindo que mais crianças e adolescentes explorem o mundo com segurança, protegidos por um sistema eficaz e acessível.
Rachel Leticia Curcio Ximenes
Sócia do CM Advogados, mestra e doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e em Proteção de Dados e Privacidade pelo Insper, e presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB-SP.