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A reforma tributária, materializada e iniciada com a EC 132, representa uma das mais significativas transformações no sistema tributário brasileiro das últimas décadas.
Modificando substancialmente o sistema tributário nacional, a EC introduziu o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, que incidirá sobre operações de bens materiais, imateriais, direitos e importação de serviços cuja intenção é unificar os impostos sobre o consumo, essencialmente o ICMS e ISS.
Não se pretende, por ora, analisar se o IBS representa ofensa ao pacto federativo resguardado por cláusula pétrea, pela unificação de tributos entre estados e municípios, retirando-lhes a autonomia financeira e a tributária. Também não se analisará a eventual, mas muito provável, inconstitucionalidade da divisão do “Poder Tributar” considerando que o Comitê Gestor, criado para gerir o IBS, ao substituir a competência dos entes federados, para arrecadar, gerir e partilhar o imposto, exerce a competência normativa e interpretativa, restando aos entes federados a instituição de alíquotas e fiscalização. A análise que se faz restringe-se à competência do STJ para julgar os conflitos decorrentes das atividades comitê gestor.
Nos termos do PLP 68/24, o IBS possuirá competência compartilhada entre os estados, municípios e o DF. Para exercício dessa competência compartilhada, o PLP 108/24 institui o CG-IBS – comitê gestor do imposto sobre bens e serviços, entidade pública sob regime especial, com sede e foro no DF, dotado de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, responsável pela coordenação do IBS, nos termos do artigo 1º do mencionado diploma legislativo.
A previsão contida no PLP 108/24 é de que o CG-IBS, através de seus membros, exerça as competências para arrecadação do imposto, realizar compensações e distribuir o produto da arrecadação aos estados, DF e municípios, além de editar regulamentos visando a interpretação, uniformização e a aplicação da legislação e, ainda, a gestão do contencioso administrativo. Parte do percentual de arrecadação do IBS, destinado a cada ente federativo, também servirá de financiamento ao próprio comitê gestor.
Examinando-se a estrutura organizacional, é possível compreender a pretensão do legislador em relação à integração entre os estados, DF e munícipios de forma paritária no CG-IBS.
Em síntese, o comitê gestor será composto pelo Conselho Superior (instância máxima de deliberação), diretoria-executiva, secretaria-geral, assessoria de relações institucionais e interfederativas, corregedoria e auditoria interna.
A composição do Conselho Superior do CG-IBS contará com vinte e sete membros, representando cada estado e o DF (indicados pelo Chefe do Poder Executivo de cada Estado e do Distrito Federal), e outros vinte e sete membros representando o conjunto dos municípios e do DF (indicados pelos chefes do Poder Executivo dos municípios e do Distrito Federal e escolhidos mediante eleição). Presidente e vice-presidente do CG-IBS também serão escolhidos mediante eleição entre os membros integrantes do Conselho Superior.
Não obstante, em que pese a tentativa de ter representados num único órgão os estados, DF e municípios, é inegável que a integração entre os entes federativos, que possuem autonomia administrativa e financeira, traz à tona uma série de potenciais conflitos que podem emergir no cotidiano da administração tributária, principalmente aqueles decorrentes da evidente necessidade de busca de receitas.
Primeiro exemplo que se traz, cujo potencial de gerar conflitos é aparente, trata-se da questão do financiamento do CG-IBS.
De acordo com a previsão contida nos artigos 47 e 48 do PLP 108/24, o Conselho Superior do comitê gestor deverá propor, anualmente, o percentual do produto da arrecadação do IBS de cada ente federativo que será destinado ao financiamento do CG-IBS no exercício financeiro subsequente, não podendo superar 0,2%.
Tal valor será prontamente retido pelo CG-IBS, independente de autorização legislativa no orçamento dos estados, do DF e dos municípios.
Ou seja, o próprio CG-IBS irá determinar o percentual que incidirá sobre a arrecadação de cada ente federativo para o seu financiamento e realizará a retenção de tais valores.
Tal percentual que, por ora, parece poder ser distinto para cada ente federativo, é passível de provocar dissenso entre os entes envolvidos, posto que afetará diretamente a sua receita.
Mais do que isso, importante salientar que, até o momento, não se tem nos projetos de lei os requisitos a serem observados e que seriam capazes de justificar a diferença de percentual para cada ente federativo, o que pode ocasionar ainda mais conflitos.
Da mesma forma, chama atenção as questões inerentes à arrecadação e, principalmente, apuração e distribuição, dos valores arrecados, aos estados, DF e municípios, conforme previsão do art. 124 do PLP 108/24..
Uma vez que o CG-IBS será responsável por calcular os valores a serem repassados a cada ente federativo, qualquer impugnação consistiria em inevitável conflito, seja, por exemplo, em relação à exatidão dos cálculos ou até mesmo quanto à metodologia utilizada.
Outro exemplo que se traz, ainda, é a hipótese prevista no próprio PLP, em seu art. 3º, §1º, de haver dois ou mais entes federativos interessados no desenvolvimento de atividades concomitantes de fiscalização em relação ao mesmo sujeito passivo, mesmo período objeto da fiscalização e mesmos fatos geradores.
Para tais casos, o projeto de lei estabelece que o procedimento deverá ser realizado conjuntamente pelos entes, cabendo ao CG-IBS disciplinar a forma de organização e gestão dos trabalhos, o rateio dos custos e a distribuição do produto da arrecadação relativo às multas punitivas entre os entes responsáveis pelo lançamento, conforme estabelece o mencionado dispositivo.
Já é de se esperar que, diante de todas essas questões, a interação entre os entes provoque tensões, especialmente em relação à arrecadação e distribuição daquilo que comporá a receita de cada um.
Nesse contexto, a EC/132 ampliou a competência originária dos tribunais superiores em matéria tributária, atribuindo ao STJ a competência para dirimir conflitos litigiosos entre entes federativos, ou entre eles e o comitê gestor do imposto sobre bens e serviços.
Ou seja, o STJ, a quem compete uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional federal, teve sua competência ampliada para dirimir as controvérsias decorrente do IBS nos termos da alínea “j” ao texto do artigo 105, inciso I, da CF/88.
Evidentemente, a autonomia financeira e administrativa de cada ente, em contraposição à gestão e coordenação do CG-IBS, poderá, muitas vezes, ser colocada em risco pela imposição de decisões centralizadas, o que pode culminar em divergências sobre a aplicação e interpretação das normas bem como sobre a distribuição da arrecadação.
Com o STJ atuando como instância originária de resolução desses litígios, a expectativa é de que as contendas sejam solucionadas de forma eficiente e padronizada, evitando-se desavenças operacionais e administrativas que possam impactar profundamente a arrecadação e a gestão dos tributos.
Talvez sob um ponto de vista meramente especulativo, a centralização das decisões tributárias (para resolver disputas) entre os entes federativos em instâncias “especializadas” como o STJ, possa promover segurança jurídica e propiciar um ambiente saudável e favorável aos negócios, pois, em tese, deveria garantir que não haja variações arbitrárias quanto à interpretação e aplicação da legislação, através de uma uniformização jurisprudencial.
Apenas importante destacar que não há conflito aparente entre a nova competência ampliada ao STJ com a competência originária estabelecida pelo inciso I, do artigo 102 ao STF para julgar conflitos entre união, estados e municípios.
Primeiramente poque nos termos do entendimento reconhecido pelo próprio Supremo, o conflito entre entes federativos que justifique a competência originária do STF é restrito ao “conflito qualificado”, com risco a desestabilizar o pacto federativo, o que não se poderia cogitar para disputas tributárias.
Segundo porque as disputas decorrentes das questões relacionadas à gestão, administração e interpretação do comite gestor emanam de normas infralegais, posto que reguladas por lei complementar, submetendo-se, portanto, ao crivo da análise do STJ.
Assim, introdução do imposto sobre bens e serviços e a atribuição de competências claras ao comitê gestor, aliadas à ampliação da competência originária do STJ para resolver conflitos tributários, têm potencial, ao menos na teoria, de mitigar incertezas e inseguranças jurídicas que frequentemente prejudicam o desenvolvimento econômico.
Estabelecer o foro adequado para resolução de controvérsias entre os entes federativos e o CG-IBS revela a preocupação em assegurar que a integração entre eles ocorra de maneira pacífica (dentro do possível) e eficaz, resguardando os interesses de todos os envolvidos. Contudo, o sucesso dessa iniciativa dependerá essencialmente da regulamentação complementar e acessória a ser estabelecida, que deverá ser cuidadosamente elaborada para possibilitar o efetivo alcance dos resultados pretendidos.
Karina de Azevedo Scandura
Advogada do escritório Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.
Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados
Bruno Assis de Freitas
Graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Pós-graduado em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD). Pós-graduando em Direito e Processo Previdenciário pelo Instituto Damásio.
Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados
Vinicius Freitas
Advogado do Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.