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No final do ano de 2019 circularam na imprensa algumas notícias1 a respeito de supostos filmes fantasmas e da utilização de simulacros para retenção de valores de incentivo fiscal com a ferramenta do art. 39, X da MP 2228-1/01.
Esse comportamento também foi observado por um ANCINE – Relatório de Auditoria Interna cujas impressões foram publicadas na imprensa. O documento identificou problemas na captação de, ao menos, R$ 200 milhões de reais em projetos, e indicou evasão fiscal na ordem de R$ 157,7 milhões de reais. Cita a referida matéria que “dos 64 projetos com irregularidade, em 47 os recursos foram aplicados antes que o esboço da obra fosse aprovado ou submetido à análise. Outros 17 tiveram recursos aplicados após o prazo legal de 270 dias”.
Mas será que essas supostas irregularidades estão prescritas após 5 anos?
Para entender as questões subjacentes a este artigo, é preciso explicar algumas questões a respeito do funcionamento da CONDECINE e seus desdobramentos, tal como exposto no livro “Condecine e Poder Regulamentar”, lançado em 2022.
Para fins didáticos, imagine-se que, em um “mundo distante e hipotético”, que a base de recursos tributáveis com fundamento no art. 32 parágrafo único da MP 2.228-1/01 seja de 100 milhões de reais em remessas para o exterior. De acordo com o fluxo natural de tributação, o contribuinte deverá recolher a alíquota de 11%, ou seja, R$ 11 milhões de reais a título de Condecine Remessa que serão destinados ao FSA, recolhendo-se primeiro 30% de DRU (3 milhões e 300 mil reais).
De conseguinte, ao FSA – Fundo Setorial do Audiovisual, seriam destinados 7 milhões e 700 mil reais, que serão aplicados em projetos audiovisuais por seleção pública e que podem ter como licenciadores até mesmo concorrentes do contribuinte original ou mesmo emissoras de televisão pública, estatal ou comunitária – eles podem ser aplicados em infraestrutura, capacitação, projetos para cinema, televisão ou outras mídias. Esse seria o fluxo de tributação normal, ordinário.
Por outro lado, caso a programadora desse “mundo tão, tão distante e hipotético” opte por fazer uso do mecanismo de isenção fiscal condicionada previsto no art. 39, X da MP 2.228-1/01, ao invés de recolher o tributo na alíquota de 11% sobre o valor da remessa, esta irá investir 3% sobre o valor que seria remetido ao exterior (total de 3 milhões de reais) em projetos audiovisuais de produção independente. Assim, além de gerar conteúdo para incluir na sua própria grade de programação ou estoque via plataformas de streaming, também passará a ser detentora de até 49% sobre os direitos patrimoniais da obra.
Nessa toada, a programadora teria um prazo de 270 dias para realizar o aporte dos recursos no projeto, na forma do § 3º do art. 39 da MP 2.228-1/01. Caso contrário, os 3 milhões de reais serão destinados ao FSA.
Agora imaginemos que esse “projeto” produzido por produtora brasileira o qual deveria ser previamente aprovado pela ANCINE jamais tenha sido protocolado na agência, em outras palavras que ele seja um projeto inexistente, ou seja, fantasma. De modo que as condicionantes da isenção fiscal sequer tenham sido preenchidas.
E, ainda, com o fito de conferir ainda mais sofisticação ao exemplo, poder-se-ia cogitar de que se tenha burlado o prazo de 270 dias, de modo que a cada vez que o período estivesse perto de chegar ao final, fosse pleiteado uma “realocação” do investimento para um outro projeto na tentativa de “zerar” a contagem do prazo, ou seja, vários simulacros, até se alcançar um projeto existente, protocolado e previamente aprovado, que fosse entregue ao final.
Quais seriam as implicações dessa engrenagem hipotética no que tange aos fenômenos da isenção e decadência tributária?
Primeiramente, caso demonstrado um comportamento malicioso por parte do contribuinte no intuito de realizar o depósito voltado apenas para economia tributária de, aproximadamente, 73%, sem preocupação com a aplicação efetiva em uma obra produzida por produtora brasileira independente, parece clara a não configuração da norma isentiva do art. 39, X da MP 2.228-1/01.
Observe-se o disposto no art. 27, § 1º da IN SRF 267/02, que deixa irrefutável que os projetos realizados com recursos da isenção de que trata no art. 39, inciso X da MP 2.228-1/01 devem ser previamente aprovados pela ANCINE.
Tal fato deve ser objeto de análise dos fiscais (agentes públicos) em relação ao comportamento ilícito, o que importaria na obtenção de provas por simulação e condenação em recolher a integralidade do tributo devido.
Nesse diapasão, a economia tributária e os benefícios ao contribuinte/investidor são nítidos. Porém, caso não possua um projeto protocolado e existente, tampouco previamente aprovado pela agência reguladora para permitir a captação de recursos ou adequação à sua grade de programação, eventual comportamento oportunista pode ensejar na construção de um verdadeiro “receptáculo” de projetos.
Acrescente-se a isso o fato de que a utilização ardilosa de “simulacros de projetos” para “congelar” os recursos, com trocas ilimitadas por prazo indefinido, ou ainda a utilização de projetos que podem existir no mundo real, fora da agência, mas que não foram sequer protocolados, nem mesmo aprovados para captação, não sendo objeto de destinação. Além disso, a malfadada prorrogação ad eternum do prazo de 270 dias enseja a possibilidade de burla ao teto de captação e afasta o depósito para fins da DRU – Desvinculação de receitas da união.
Adota-se aqui o entendimento de que deve ser realizado o recolhimento integral do tributo na hipótese sob alíquota de 11%, haja vista que pela natureza condicionada da isenção, o mero depósito dos valores não é suficiente para expurgar a necessidade de recolhimento integral do tributo. Caso contrário, a Condecine Remessa prevista no parágrafo único do art. 32 da MP 2.228-1/01 se tornaria letra morta, havendo, assim, uma subversão completa da finalidade da CIDE de atuar na correção e no fomento ao mercado audiovisual, trazendo possivelmente uma desventurada concentração de recursos públicos em prol de determinadas empresas.
Não se confundem, em absoluto, as hipóteses as quais o contribuinte apresenta um projeto que, por questões alheias à sua vontade, não é aprovado pela agência por não preencher assim as condicionantes da isenção fiscal daquela hipótese esposada no caso hipotético tratado no início deste tópico, em que o projeto sequer é apresentado (fantasma). Nesse último caso o dolo é flagrante, pois o contribuinte já sabe de antemão que não cumpriu as condicionantes da isenção.
Com efeito, caso seja dolosamente indicado para fins da obtenção da isenção fiscal um projeto que jamais fora apresentado à agência (fantasma), com inegável má-fé e, por conseguinte, que em tempo algum fora aprovado conforme determina a parte final do art. 39, inciso X da MP 2.228-1/01, servindo de mero simulacro para salvaguardar recursos em prol dos agentes de mercado envolvidos na operação, deve haver, com muito mais razão, a cobrança integral do tributo acompanhada dos consectários legais, juros e multa cabíveis.
Em outras palavras, essa operação trata de verdadeira isenção condicionada de natureza onerosa que possui as seguintes etapas: (I) o contribuinte realiza o depósito correspondente a 3% sobre o valor da remessa na conta de recolhimento; (II) o contribuinte escolhe um projeto previamente aprovado pela ANCINE dentro do prazo de 270 dias, quando, então, o projeto recebe um número SALIC; (III) resolve-se a isenção2.
Portanto, de acordo com o entendimento dos professores Sacha Calmon Navarro Coêlho3, Paulo de Barros Carvalho e Luís Cesar Souza de Queiroz (2018), somente se constrói (produz) a norma jurídica tributária junto com o critério legal de isenção. In casu, a partir do momento que se constata o cumprimento das condições isentivas do art. 39, X da MP 2.228-1/01.
Nesse sentido, até a concretização da validade do investimento, o contribuinte possui uma mera expectativa de direito à obtenção da isenção, para a qual ele cumprirá uma sequência de atos até atingi-la. Logo, cumpridas todas as condições, tem-se um ato jurídico perfeito na concessão da isenção fiscal. Do contrário, não há que se falar em ocorrência da isenção.
Dessa maneira, a autoridade fazendária deverá instaurar o processo administrativo fiscal para que, doravante, seja manejada a cobrança integral do tributo. Portanto, uma vez confirmada a isenção, não é constituído o crédito tributário. Noutro giro, em não sendo cumpridas as condições isentivas da norma, não haverá isenção fiscal. Assim, permanece a obrigação tributária que, após a Constituição do crédito tributário, passará a ser exigível.
Nesse sentido, tendo em vista que não há crédito tributário formalmente constituído, como seria feita a contagem do prazo para o lançamento nos casos de dolo, fraude ou simulação?
De pronto, é importante destacar que a Fazenda Pública dispõe de cinco anos para efetuar o ato jurídico administrativo de lançamento. Não o praticando, nesse período, decai o direito de celebrá-lo. Vale relembrar que o crédito tributário formalizado surge com o lançamento tributário.
Em casos de lançamento por homologação, a jurisprudência tem se inclinado pela aplicação do art. 173, I do CTN tanto nos casos em que o contribuinte não realiza pagamento algum, bem como nos casos de dolo, fraude ou simulação. Essa solução é mais consentânea com a lógica do CTN, haja vista que além do fato de que a regra geral da decadência se aplica em detrimento da regra específica, há de se ressaltar que a existência de dolo, fraude ou simulação gera dificuldades para que o fisco descubra a realidade dos fatos no caso concreto.
A esse respeito, o STJ tem entendido que”o prazo decadencial nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, caso tenha havido dolo, fraude ou simulação por parte do sujeito passivo, tem início no primeiro dia do ano seguinte ao qual poderia o tributo ter sido lançado. (…)”4.
Portanto, no caso hipotético fica evidenciado que se trata de verdadeira evasão fiscal, a qual necessita ter desconsiderados os atos jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. De forma que o termo a quo do prazo decadencial é regido pelo art. 173, I do CTN.
Mas a dúvida que exsurge seria a partir do próprio texto do art. 173, I do CTN, ao aduzir que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. E qual seria o exercício seguinte àquele em que poderia ter sido efetuado o lançamento?
Tendo em mente que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, entende-se que a parte final do art. 173, I do CTN deve ser interpretada em conjunto com o parágrafo único do art. 116 do CTN, de modo que “o exercício seguinte àquele que poderia ser efetivado o lançamento” depende da desconstituição dos atos jurídicos fraudulentos, de modo que sejam observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária, tal como disposto na parte final do parágrafo único do art. 116 do CTN. Não havendo que se confundir este ato de má-fé com a economia tributária controvertida, consoante entendimento de Luís Cesar Souza de Queiroz5.
Dessa maneira, somente após a realização dos procedimentos estabelecidos em lei para desconstituir os atos ilícitos seria possível contar o prazo disposto no art. 173, I do CTN. Caso contrário, seria um verdadeiro estímulo ao contribuinte de má-fé burlar as regras do jogo e somente aguardar o decurso dos prazos extintivos do crédito tributário6.
Ademais, tal como esposado no Ttema 881 pelo STF7, o tratamento desigual subverte os princípios da capacidade contributiva, da livre-iniciativa, livre-concorrência e da isonomia tributária, pode estimular o comportamento malicioso para não mais pagar tributo.
Diversamente da premissa assentada no CTN calcada no pensamento de Rubens Gomes de Souza de enxergar a isenção como causa excludente do crédito tributário, parte-se da lógica extraída de Sacha Calmon no sentido de que as normas legais não derivam de textos legais isoladamente tomadas, por isso que se projetam do contexto jurídico. A norma é resultante de uma combinação de leis ou artigos de leis (existentes no sistema jurídico) que definem fatos tributáveis se conjugam com as previsões imunizantes e isencionais para compor uma única hipótese de incidência: a da norma jurídica de tributação. Assim, para que ocorra a incidência da norma de tributação, é indispensável que os fatos jurígenos contidos na hipótese de incidência ocorram no mundo. E esses fatos jurígenos são fixados após a exclusão de todos aqueles considerados não tributáveis em virtude de previsões expressas de imunidade e isenção.
Ademais, consoante o entendimento do STJ aduzindo que o prazo decadencial nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, caso tenha havido dolo, fraude ou simulação por parte do sujeito passivo, tem início no primeiro dia do ano seguinte ao qual poderia o tributo ter sido lançado, tal como esposado no REsp 1086798/PR, de relatoria do Ministro Castro Meira.
Assim, em se tratando de hipótese fraudulenta, a qual envolve má-fé, atrai a aplicação do parágrafo único do art. 116 do CTN em conjunto com o disposto no art. 173, I do CTN para fixar o termo inicial da contagem do prazo decadencial para a constituição do crédito tributário somente após a realização dos procedimentos estabelecidos em lei para desconstituir os atos ilícitos.
Tal solução, além de condizente com o tema 881 pelo STF que cauteriza a vantagem concorrencial ilegítima das empresas indevidamente beneficiadas com o ato doloso, não permite que se tenha benefícios com a própria torpeza.
Para finalizar, como dizia Vinicius de Moraes na música “O relógio”:
“Passa tempo, tic-tac
Tic-tac, passa hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora”
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1 BITENCOURT, Rafael. ANCINE Aponta Prejuízos em Fundo do Audiovisual de 350 milhões. Valor Econômico. Publicado em 22/01/2019. Brasília. . Acesso em 09 de setembro de 2024.
2 Cfr: MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
3 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, p. 145.
5 QUEIROZ, Luís Cesar Souza de. Interpretação e Aplicação tributárias. contribuições da hermenêutica e de teorias da argumentação. 1ª Edição, Rio de Janeiro: GZ. 2021. p. 355.
6 No direito tributário a prescrição e a decadência são causas de extinção do crédito tributário (art. 156, V do CTN).
7 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 949297, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n DIVULG 28-04-2023 PUBLIC 02-05-2023.
Magno de Aguiar Maranhão Junior
Doutorando em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Professor da Souza Marques e especialista em Regulação da ANCINE.