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STF julgará, no próximo dia 18, a (im)possibilidade de recusa à transfusão de sangue por parte de testemunhas de Jeová e se o Estado deve custear procedimento alternativo.
Em entrevista ao Migalhas, o advogado Laércio Ninelli Filho, que representa a Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová no Brasil, a qual atua como amicus curiae nos processos levados ao Supremo, esclareceu os principais pontos da demanda religiosa e as expectativas para a decisão.
STF analisa se testemunhas de Jeová podem recusar transfusão no SUS
PBM
Atualmente, as testemunhas de Jeová somam cerca de 907 mil membros no Brasil, o que equivale a uma Testemunha para cada 226 habitantes, conforme o site oficial da congregação.
Uma das doutrinas mais conhecidas é a recusa à transfusão de sangue, embasada em passagens bíblicas como Gênesis 9:4 e Atos 15:20. Essas escrituras ordenam a abstenção do sangue, considerado sagrado, o que leva os fiéis a rejeitar procedimentos que envolvam o uso de sangue alheio.
Por isso, os fiéis brasileiros entendem que o programa PBM (Patient Blood Management ou Gerenciamento do Sangue do Paciente) deve ser adotado no sistema de saúde nacional, não apenas para testemunhas de Jeová, mas para todos os cidadãos.
O programa é uma abordagem médica que visa otimizar o uso do sangue do próprio paciente durante tratamentos e cirurgias, reduzindo a necessidade de transfusões de sangue.
O objetivo principal é melhorar a segurança e os resultados clínicos dos pacientes, minimizando riscos associados às transfusões, como infecções, reações adversas e complicações cardiovasculares.
Redução de custos
Laércio Ninelli Filho destaca que uma das vantagens do programa PBM é ser mais econômico do que as transfusões. Ressaltou que estudos científicos recentes demonstram que a redução do número de transfusões diminui os custos com saúde e que a OMS – Organização Mundial da Saúde, em diretriz de 2021, reforçou essa constatação, recomendando a implementação do programa.
Um dos estudos destacados pelo advogado foi realizado na Austrália, envolvendo quatro hospitais públicos e mais de 600 mil pacientes. Após seis anos de análise, constatou-se uma economia de 100 milhões de dólares em razão da redução das transfusões.
Além disso, o causídico afirmou que foi observada queda nas taxas de mortalidade, infecções e reinternações, resultando em menor permanência hospitalar e, consequentemente, redução de custos.
Segundo Laércio, no contexto brasileiro, o SUS já possui a capacidade de realizar tratamentos que evitam transfusões. Equipamentos e insumos utilizados no PBM estão disponíveis gratuitamente, conforme as listas Renem, Renami e Sigtap, o que viabiliza a implementação desse tipo de tratamento sem aumento de custos.
“Ou seja, o nosso sistema já está pronto, já está preparado para receber essa demanda. Por isso, não é correto se afirmar que atender a necessidade de pacientes que têm uma recusa, uma objeção terapêutica ao uso de transfusões de sangue seria mais caro, mais custoso”, ressaltou.
Veja a entrevista:
Menores de idade
Em relação às crianças, Laércio Ninelli destaca que o programa PBM é alternativa segura para o tratamento de menores, e, portanto, respeita o melhor interesse da criança, conforme previsto no ECA.
O advogado enfatiza que o PBM é respaldado por estudos científicos que mostram redução de até 28% na taxa de mortalidade, 21% em infecções hospitalares e 31% em casos de AVC e infarto.
Além disso, que estudos da Unifesp revelam que recém-nascidos submetidos a transfusões podem enfrentar problemas cognitivos e motores, reforçando a segurança do tratamento sem transfusão para crianças e adultos.
Laércio também pontua que os pais testemunhas de Jeová buscam sempre consenso com as equipes médicas, colaborando ativamente na busca por alternativas seguras, sem comprometer a saúde de seus filhos.
Lembra que os pais não recusam tratamento médico, mas procuram evitar transfusões, optando por hospitais que ofereçam métodos alternativos quando necessário.
Demandas internacionais
Laércio também relembra que as testemunhas de Jeová, ao longo de sua história, têm recorrido a tribunais em várias partes do mundo para garantir sua liberdade de adoração e direitos fundamentais.
Questões como neutralidade política, o direito de não servir ao exército e a proteção da consciência de crianças em escolas já foram amplamente debatidas nos tribunais.
O advogado diz que nos Estados Unidos, a Suprema Corte concedeu mais de 50 vitórias às testemunhas de Jeová em questões relacionadas à liberdade religiosa. E que, na Europa, a Corte Europeia de Direitos Humanos emitiu mais de 50 decisões favoráveis à congregação.
O causídico afirma que um dos casos mais emblemáticos foi o de Minos Kokkinakis, na Grécia, no qual a Corte do país reconheceu seu direito de pregar e condenou o Estado grego por violação da liberdade religiosa.
As vitórias judiciais, segundo o advogado, não beneficiaram apenas as testemunhas de Jeová, mas também contribuíram para o fortalecimento dos direitos civis e fundamentais em diversas sociedades, “porque as garantias fundamentais interessam a todos os cidadãos”, destacou.
Por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos reconheceu, em 2022, no caso Taganrog LRO and Others v. Russia, que a recusa de transfusão de sangue por um membro das testemunhas de Jeová foi uma expressão de livre escolha e uma manifestação de autonomia pessoal na área de assistência médica.
Antes disso, em 2009, o Canadá, no caso A.C. v. Manitoba, decidiu que, quando um menor compreende plenamente as consequências de sua decisão, sua autonomia deve ser respeitada.
Em busca de um precedente histórico
Laércio afirmou que as testemunhas de Jeová esperam que o julgamento no STF estabeleça precedente histórico no Brasil, com potencial de atrair a atenção da comunidade internacional.
“A decisão a ser tomada nesse caso, nesses dois recursos extraordinários, tem o potencial de solidificar os direitos fundamentais, a liberdade, a autodeterminação dos cidadãos, direitos que já são amplamente reconhecidos em outras partes do mundo”, afirmou.
Ele acredita que o STF pode fazer do Brasil um pioneiro na construção de um sistema de saúde inclusivo, que respeite as liberdades individuais e seja financeiramente sustentável, como apontam estudos internacionais sobre a economia de recursos em tratamentos sem transfusão.
Lembrou também que, no Brasil, o enunciado 403, da V Jornada de Direito Civil assegurou a inviolabilidade de crença e a recusa de tratamento médico, inclusive transfusões, desde que o paciente tenha plena capacidade civil e sua vontade seja livre, consciente e informada?.
Casos no Supremo
O STF enfrentará o desafio de equilibrar os direitos fundamentais à vida e à liberdade religiosa em dois casos principais.
No RE 1.212.272, uma mulher com doença cardíaca recusou transfusões durante uma cirurgia, resultando no cancelamento do procedimento. A paciente argumenta que sua dignidade e direito à saúde foram violados pela exigência de consentimento prévio para transfusão.
Já no RE 979.742, a União questiona a decisão que a condenou, juntamente com o Estado do Amazonas e o município de Manaus, a custear uma cirurgia para um paciente que recusou transfusões de sangue, seguindo suas convicções religiosas. O procedimento, que não estava disponível no Amazonas, teve que ser realizado em outro Estado.