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Após quase dois meses de campanha eleitoral, nós, mulheres, emergimos de mais um ciclo de violência, resistindo em meio ao caos, cada uma recolhendo seus pedaços emocionais, psicológicos, morais e até físicos. Fica claro que qualquer mulher que se atreva a ocupar o protagonismo político – seja candidatando-se ou nos bastidores, sustentando essas candidaturas – precisa de uma coragem feroz. As primeiras violências, sutis e enraizadas, vêm do próprio tecido social. Nossa sociedade, forjada em décadas de subordinação, se arma para julgar mulheres que ousam, sobretudo, candidatar-se. Família, amigos, conhecidos e desconhecidos sentem-se no direito de questionar suas intenções. O comentário repetido é o da “vida fácil”. Vida fácil é ser herdeira; está distante de qualquer mulher que se jogue no campo político, uma arena de dificuldades incessantes e cruéis. Se quisessem uma existência sem obstáculos, jamais considerariam a política.
Mas o julgamento social é apenas o primeiro obstáculo. As verdadeiras provações vêm das instituições, do sistema partidário que, invariavelmente, reproduz o machismo estrutural. Ao ingressarem nos partidos, essas mulheres se deparam com um cenário desenhado para marginalizá-las. Já iniciam uma luta silenciosa contra um sistema controlado por homens brancos, habituados ao poder. Nesse percurso, são tratadas como um número para cumprir cotas ou peças de um xadrez político, escolhidas não por mérito, mas para suavizar a imagem do partido, conforme os desígnios masculinos.
Contudo, há mulheres que lutam contra essa corrente, enfrentando o patriarcado. Mas logo percebem que, além de serem vistas como estatísticas, tornam-se alvo de uma lógica perversa de uso de recursos. O FEFC – Fundo Especial de Financiamento de Campanha, criado em 2017 para proporcionar igualdade de oportunidades, acaba sendo manipulado. As legendas preferem investir em seus candidatos favoritos, majoritariamente homens, e quando repassam parte do fundo às mulheres, o fazem de forma desigual. Assim, estas mulheres enfrentam mais essa injustiça: o recurso público, que deveria garantir equidade, é usado para perpetuar a desigualdade.
A violência não se restringe ao uso do fundo. Ao se filiarem às legendas, enfrentam o desafio colossal de fazer sua voz ser ouvida. Além da obrigatoriedade formal de promover a participação feminina, há uma negligência deliberada dos partidos, que preferem manter o poder nas mãos dos mesmos. Não lhes interessa fomentar lideranças femininas que possam ameaçar seu domínio, preferindo manter o controle sobre os corpos e as mentes, perpetuando um poder que acreditam ser inabalável.
Então, as mulheres começam a experimentar uma forma ainda mais sorrateira de violência: a violência política de gênero, disfarçada de promessas não cumpridas. Os partidos prometem estrutura, mas na hora de entregar, desaparecem. Quando essas mulheres cobram o que lhes foi prometido, tornam-se alvo. Tentam silenciá-las; se não conseguem, passam a desacreditá-las, isolá-las, dificultar seu caminho. O preço por não se submeterem é alto, tudo isso enquanto sofrem a pressão da sociedade, que no ambiente cibernético retrocede mais rápido do que progride.
O ambiente digital amplificou essa violência, transformando o espaço virtual num novo campo de batalha. Ali, as mulheres são atacadas de forma ainda mais brutal, sob o manto do anonimato, sofrendo comentários degradantes, ameaças e constrangimentos, numa escalada de violência que parece não ter fim.
Ao fim desse árduo caminho, algumas desistem; outras resistem, mesmo desoladas. As que resolvem agir, denunciar e reivindicar seus direitos enfrentam novas violências: perseguições, ameaças, humilhações. A crueldade do sistema é tal que seria necessário um livro para descrever todas as formas de repressão que esses partidos e seus “soberanos” infligem àquelas que ousam desafiar as regras.
Percebemos que, apesar de avanços legislativos, como a lei 14.192/21, que tipifica a violência política de gênero, ainda vivemos num ciclo de retrocessos. O próprio sistema político perpetua a desigualdade. Mesmo com avanços institucionais, como iniciativas do TSE, sob a liderança de Cármen Lúcia, e de outras entidades como MPF, MPE, TREs, a violência política de gênero segue enraizada. Mesmo com o reconhecimento da ONU Mulheres, essa violência é institucionalizada e precisa ser combatida desde suas raízes.
É preciso também tratar essa violência de forma interseccional, pois ela se manifesta em três níveis: a violência política institucional, que molda a sociedade; a do mundo físico, onde se perpetuam estereótipos e formas de violência mais palpáveis; e a do ambiente cibernético, que intensifica suas crueldades, criando novas maneiras de perpetuar a opressão.
Este texto, embora longo, é necessário. É uma síntese de uma realidade que permanece invisível para muitos. A falta de representatividade feminina nos espaços de poder – seja em cargos eletivos, seja nos bastidores – é a raiz desse ciclo de violência. Quanto menor a presença das mulheres na política, mais disseminada se torna a violência contra elas. Hoje, a violência de gênero é, segundo a ONU, a forma de violência mais disseminada no mundo, e sua perpetuação, especialmente em espaços de poder, é uma afronta ao Estado Democrático de Direito.
Isabella Sousa
Graduada em Gestão Pública, graduanda em Direito e pós-graduanda em Direito Eleitoral e Processual Penal Eleitoral, e em Direito Penal, possuindo diversos cursos nas áreas pública e digital.