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O sistema de saúde suplementar é de uma importância social indiscutível. Atualmente, são 51 milhões de beneficiários (dados de 24/7/24) incluídos nesse sistema e que utilizam os serviços assistenciais por ele viabilizados.
Essa importância social vai ainda mais além: através dos planos e seguros de saúde, tal sistema desafoga o Sistema Único de Saúde e injeta investimentos e recursos financeiros substanciais na Saúde Pública – inclusive através do ressarcimento ao SUS que, apenas em 2022, repassou quase R$ 950 milhões ao setor público.
Outro dado relevante: de acordo com o Portal da Transparência (Controladoria Geral da União), o total de despesas executadas pela União para a área da saúde, em 2023, foi de R$ 161,22 bilhões. Já o total de despesas assistenciais realizadas pelos planos de saúde, também em 2023, foi superior a R$ 240 bilhões. Ou seja, o poder público, que atende mais pessoas (em tese, toda a população), gastou um valor menor do que os planos de saúde gastaram com uma massa de beneficiários muito inferior. Em números absolutos, a diferença já demonstra a importância dos planos de saúde. Se considerarmos o gasto per capita (investimento total dividido pela quantidade de pessoas favorecidas), a diferença é ainda maior.
Além disso, tal sistema assegura atendimento assistencial célere para os seus beneficiários. Convém lembrar aqui que, diferentemente do que ocorre no âmbito da Saúde Pública, os planos de saúde são obrigados a garantir atendimento assistencial em prazos determinados pela Agência que os regulamenta, a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar. Os prazos máximos para garantia de atendimento variam de acordo com a natureza do procedimento, sendo que a maioria dos serviços deve ser garantida em até 10 dias úteis (RN/ANS 566/22).
Durante a pandemia da Covid-19, aliás, os planos de saúde tiveram importância fundamental. Através de normas publicadas do dia para a noite, os planos foram obrigados a custear exames para todos os seus beneficiários que apresentassem sintomas (RNs/ANS 453/20, 457/20, 460/2020 e 478/22). Na ocasião, essas medidas foram fundamentais para contribuir no combate ao coronavírus.
Não obstante essa inegável importância, desde a sua criação, o setor sofre ataques, de modo que dificilmente alguma temática regulatória, judicial ou mesmo política passa livre de debates fervorosos e, por vezes, radicais. Basta lembrar que, apenas 1 dia após a publicação da lei Federal 9.656, em 1998 (a denominada lei dos planos de saúde), o seu texto foi alterado por medida provisória. Outro exemplo é que, anualmente, quando é publicado o índice máximo de reajuste para os planos familiares, diversos setores reclamam – a depender do lado, defendendo que o índice é demasiado elevado ou baixo.
Quando a natureza (se taxativa ou exemplificativa) do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde foi pautada para julgamento no STJ, a temática tomou conta dos veículos de comunicação, inclusive com manifestações de personalidades para sensibilizar os julgadores.
A rigor, nada disso seria estranho, muito menos errado, em uma sociedade civilizada e democrática, mormente quando considerada a extrema sensibilidade desse sistema que, diariamente, convive com questões das mais sérias, como saúde e doença.
Nos últimos anos, todavia, são diversas as manifestações, escritas ou faladas, dando conta do risco à sustentabilidade do setor.
Diversos fatores contribuem para isso: cobertura obrigatória ampliada constantemente; normas regulatórias sendo diariamente judicializadas; a própria judicialização da saúde (inclusive da saúde suplementar), aliás, constantemente crescendo; custos assistenciais crescentes (em 10 anos, as despesas assistenciais mais que dobraram); sinistralidade média crescente, em alguns casos superando 100%, entre outros fatores.
Para além da potencial divergência de opiniões que o debate pode suscitar, os números não mentem: a quantidade de operadoras atuantes no país não para de cair. Das mais de 2.000 operadoras médico-hospitalares existentes no início dos anos 2000, hoje existem menos de 900.
Nenhum assunto, entretanto, tem preocupado mais do que as crescentes demandas envolvendo beneficiários portadores de transtorno do espectro autista, ou simplesmente TEA.
Muito desse crescimento decorre do aumento do número de crianças com tal diagnóstico nos últimos anos. Um estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) – agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos – demonstra que, no ano de 2000, havia um caso de autismo para cada 150 crianças. Em 2020, o número foi de um caso para cada 36 crianças. No Brasil, o censo escolar aponta registro de aumento de 280% no número de estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares, entre os anos de 2017 e 2021.
No entanto, grande parte do crescente número de demandas decorre da busca de tratamentos que destoam da obrigação regularmente instituída para as Operadoras de Planos de Saúde e até da própria ciência.
Importante ponderar que, ao longo dos últimos anos, a regulamentação do setor, a cargo da ANS, ampliou severamente as hipóteses de coberturas para o tratamento dos transtornos globais do desenvolvimento, onde se enquadram os portadores de TEA. A RN/ANS 469/21, tornou obrigatória a cobertura em número ilimitado de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Em junho/22, a RN/ANS 539 alterou o rol de procedimentos para determinar que cabe ao médico assistente definir os métodos a serem empregados pelos profissionais de saúde das áreas afins e, finalmente, em julho de 2022, a RN/ANS 541 afastou dos atendimentos com fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais qualquer limite ou diretriz para sua utilização.
Desde então, as demandas que chegam às operadoras tornam a prestação dos serviços um desafio decorrente não apenas da necessidade de formar uma rede de atendimentos por vezes inexistente em algumas localidades do país, mas também para acolher pacientes que têm prescritas as mais diversas modalidades terapêuticas em cargas horárias que ultrapassam, comparativamente falando, muitas jornadas semanais de trabalho.
A despeito de toda nova regulamentação, a LPS seguiu e segue em vigor, mantendo afastadas as coberturas que não condizem com a prestação dos serviços privados de assistência à saúde, como, por exemplo, atendimentos no chamado ambiente natural (domicílio ou escola) ou a prestação dos serviços por profissionais alheios aos quadros da saúde, como educadores físicos ou músicos.
Nesse contexto, chegam diariamente aos foros de todo o país pedidos que postulam a ampliação da já extensa cobertura para contemplar prescrições médicas de laudas e laudas justamente para postular em juízo, além de todas as sessões já cobertas com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos ou fisioterapeutas, assistentes terapêuticos na escola, hidroterapia com educadores físicos e psicopedagogia com pedagogos, ou seja, profissionais alheios à área fim e objeto da prestação dos serviços assistenciais.
Ainda que, num primeiro momento, com o grande clamor popular que o assunto impôs, o Judiciário tenha concedido todos os pedidos, sem quaisquer critérios, o passar do tempo demonstrou que muitas das solicitações extrapolam a razoabilidade e os cálculos atuariais que devem ser observados para a saudável manutenção do equilíbrio entre prestação e contraprestação. Cálculos estes que, diga-se de passagem, sequer haviam sido atualizados com a grande modificação do risco assumido pelas operadoras a partir da ampliação do rol.
Para ilustrar a seriedade da preocupação com os custos assistenciais decorrentes dessa demanda, citável estudo elaborado pelo IESS – Instituto de Estudos de Saúde Suplementar, publicado em agosto/24, indica ter havido, no período de 12 meses até setembro de 2023, um aumento de 32,7% da despesa per capita com beneficiários na faixa de 0 a 18 anos (mais de quatro vezes do que a de idosos, por exemplo).
O desafio, portanto, é equacionar o legítimo interesse dos consumidores às reais possibilidades das operadoras, afastando da responsabilidade destas, por exemplo, questões alheias às suas atribuições, como atendimentos em escola, já legalmente atribuídos a estas, ou em domicílio, a cargo dos genitores, ou ainda, aquelas decorrentes de procedimentos ou métodos surgidos dia após dia e com caráter experimental ou sem robustas evidências científicas.
Não se pode perder de vista que a ampliação da cobertura sem a devida análise atuarial e a consequente contraprestação pecuniária acaba prejudicando não apenas as operadoras, mas os próprios consumidores que passam a sofrer aumentos em suas mensalidades, por vezes inviabilizando a própria manutenção dos serviços em seus orçamentos familiares.
Bernardo Franke Dahinten
Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.
Cássio Augusto Vione da Rosa
Pós-Graduado em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela PUCRS e em Direito de Família e Sucessões pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.