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Nesta quarta-feira, 16, STF retomou julgamento quanto à possibilidade de decretação judicial da quebra de sigilo de dados telemáticos – buscas online – de grupo não identificado de pessoas em procedimentos penais. O caso tem repercussão geral reconhecida (tema 1.148).
A relatora, ministra Rosa Weber (atualmente aposentada), em voto no plenário virtual, manifestou-se, no caso concreto, contra o acesso do MP/RJ a dados relacionados a pesquisas na internet sobre a vereadora Marielle Franco. Além disso, sugeriu tese para limitar o compartilhamento de dados em investigações criminais.
Na sessão desta tarde, ministro Alexandre de Moraes, que havia pedido vista, abriu divergência. S. Exa. votou a favor do pedido do MP/RJ no caso específico e propôs tese que permite o compartilhamento de dados em outras situações, desde que haja fundada suspeita.
Ministro Cristiano Zanin acompanhou o voto de Moraes no caso concreto, mas sugeriu modificações na tese apresentada.
O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro André Mendonça.
STF tem dois votos por quebra de sigilo de dados do Google no caso Marielle Franco.(Imagem: Renan Olaz/Câmara Municipal do RJ)
Caso
O recurso foi interposto pelo Google contra decisão do STJ que restabeleceu a decretação, de 1ª instância da quebra de sigilo de um grupo indeterminado de pessoas que fizeram pesquisas relacionadas à vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e a sua agenda nos quatro dias anteriores ao atentado em que ela e o motorista Anderson Gomes foram assassinados, em 14/3/2018.
A decisão determina a identificação dos IPs (protocolos de acesso à internet) ou “Device Ids” (identificação do aparelho) que tenham acessado o mecanismo de busca entre 10/3 e 14/3/2018 utilizando parâmetros de pesquisa como ”Marielle Franco; “vereadora Marielle”; “agenda vereadora Marielle; “Casa das Pretas”; “Rua dos Inválidos, 122” ou “Rua dos Inválidos”.
O Google afirma que a realização de varreduras generalizadas em históricos de pesquisa de usuários e o fornecimento de listas temáticas dos que pesquisaram certa informação representam uma intrusão inconstitucional no direito à privacidade sem relação com o crime investigado.
Argumenta, ainda, que os dados gerados por pesquisas em páginas na internet, especialmente num mundo cada vez mais digital, estão protegidos tanto pela cláusula geral de proteção da intimidade (art. 5º, X da CF) quanto pela norma específica de sigilo de dados (art. 5º, XII, da CF).
Voto da relatora
Ministra Rosa Weber, relatora do caso, votou pela anulação de parte da decisão da 4ª vara Criminal do RJ. Ela facultou que nova decisão seja proferida, desde que respeite direitos fundamentais à privacidade, proteção de dados pessoais e devido processo legal.
S. Exa. propôs a seguinte tese:
“À luz dos direitos fundamentais à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao devido processo legal, o art. 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) não ampara ordem judicial genérica e não individualizada de fornecimento dos registros de conexão e de acesso dos usuários que, em lapso temporal demarcado, tenham pesquisado vocábulos ou expressões específicas em provedores de aplicação.”
A ministra argumentou que não há base legal suficiente para uma medida tão ampla que afeta os dados pessoais de muitos usuários.
Além disso, considerou a medida desproporcional, pois o pedido incluía dados de todos que pesquisaram o nome da vereadora Marielle Franco no Google após seu homicídio, independentemente de envolvimento ilícito.
Rosa Weber destacou que essa ação comprometeria a privacidade de muitos usuários sem relação com os crimes investigados, caracterizando uma devassa indevida e desproporcional.
Veja o voto da ministra.
Voto-vista
Ao proferir voto-vista, ministro Alexandre de Moraes destacou preocupações relacionadas à tese em debate. Após o pedido de vista, realizou reuniões com a direção da Polícia Federal e com autoridades de polícias civis de diversos Estados, que também expressaram as mesmas preocupações.
Segundo o ministro, se a tese for formulada de maneira genérica, poderá limitar importante instrumental investigativo, especialmente em casos graves como pornografia infantil e pedofilia.
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Também chamou atenção para a disparidade entre o caso concreto e o tema 1.148, esclarecendo que o tema trata de dados telemáticos, enquanto o caso analisado envolve dados arquivados. Moraes ressaltou que, no caso de Marielle, não se aplica a lei da interceptação telefônica e que as pessoas envolvidas são determináveis a partir de requisitos específicos, diferentemente do que sugere o tema.
Essa distinção, segundo o ministro, altera significativamente o resultado tanto do caso concreto quanto da tese em discussão.
O ministro, antes de ingressar no caso concreto, criticou o uso que o Google e demais plataformas fazem das informações dos usuários, para publicidade.
Ao analisar o recurso, Moraes destacou que a quebra de sigilo não expõe os dados ao público, como foi alegado pela parte impetrante, mas auxilia investigações policiais e é acessível apenas ao Ministério Público, às autoridades judiciais e à defesa.
O ministro explicou que apenas dados relevantes para a investigação devem permanecer nos autos, sob sigilo, e os demais devem ser excluídos do processo. Enfatizou a importância da colaboração de quem possui dados cruciais para as investigações, desde que mediante ordem judicial fundamentada, conforme previsto em lei.
Destacou, ainda, que nenhum direito fundamental é absoluto, e que a legislação prevê situações em que o compartilhamento de dados é obrigatório por decisão judicial.
Moraes também citou o art. 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que impõe limites aos direitos fundamentais. Lembrou que nenhuma garantia individual pode ser usada como escudo para práticas ilícitas, de modo que o sigilo não pode proteger essas atividades.
Dentro desse contexto, o ministro afirmou que a decisão de autorizar a quebra de sigilo em período específico está amparada por princípios legais e constitucionais.
Além disso, exemplificou a regulamentação de outros países, como Estados Unidos, Alemanha, Itália, Reino Unido e Holanda, onde a interceptação de dados em redes sociais é permitida, ainda que haja restrições de privacidade e intimidade.
Moraes concluiu citando o art. 22 do Marco Civil da Internet, que permite à parte interessada solicitar ao juiz a obtenção de registros de conexão ou acesso a aplicações de internet, desde que existam indícios robustos da ocorrência de ilícitos, respeitando os requisitos legais para a proteção de dados pessoais.
Ao final, abriu divergência, votando para negar provimento ao recurso do Google. Ademais, sugeriu a seguinte tese:
“I – É constitucional a requisição judicial de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, desde que observados os requisitos previstos no art. 22 da lei 12.965/14 – marco civil da internet – quais sejam: fundados indícios de ocorrência do ilícito, justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória e período ao qual se referem os registros.
II – A ordem judicial poderá atingir pessoas indeterminadas, desde que determináveis a partir de outros elementos de provas obtidos previamente na investigação e que justifiquem a medida, desde que necessária, adequada e proporcional.”
Guarda de dados
Em voto, ministro Cristiano Zanin destacou a importância da proteção ao espaço virtual como extensão da individualidade da pessoa, ressaltando que deve haver cautela na intervenção em direitos fundamentais. Argumentou que a legitimação para tal intervenção só pode ocorrer quando houver suspeita que justifique a medida.
Zanin explicou que o Marco Civil da Internet, em seu art. 22, estabelece a possibilidade de fornecimento de registros de conexão ou de acesso, sendo dever das plataformas mantê-los para eventual fornecimento.
Contudo, salientou que o caso em questão não se enquadra nessa previsão, pois o art. 22 trata de metadados, não de conteúdos das comunicações feitas na internet. O foco, então, se desloca para o art. 10, § 1º, do mesmo diploma legal, que permite o acesso a dados pessoais ou outras informações que contribuam para a identificação de usuários ou dispositivos.
O ministro questionou como poderia se exigir uma obrigação tão ampla de guarda de conteúdo quando a lei não estabelece esse dever. Para S. Exa., é necessário equilibrar o dever de guarda de metadados com a falta de previsão legal para a guarda de conteúdos.
Outro ponto levantado foi a necessidade de observar a proporcionalidade ao se tratar da relativização de direitos fundamentais.
Zanin reconheceu que, em determinadas circunstâncias, é possível superar esses direitos, mas enfatizou que isso deve ocorrer com base na proporcionalidade da medida. Sugeriu que o ministro Alexandre de Moraes incluísse essa perspectiva na tese do julgamento, delimitando a distinção entre usuários suspeitos e não suspeitos. Para Zanin, a suspeita deve ser um elemento crucial para a relativização dos direitos fundamentais.
Por fim, o ministro sugeriu a inclusão de um item na tese que estabeleça o acesso a dados pessoais ou informações apenas quando houver razões fundamentadas que indiquem suspeita:
“O compartilhamento ou acesso de dados pessoais ou outras informações eventualmente guardadas pelo provedor e que possam contribuir para a identificação do usuário ou terminal (art. 10 da lei 12.965/14) somente é possibilitado quando houver razões que fundamentem uma suspeita em face de pessoa determinável.”
Ao final, acompanhou a divergência de Moraes, quanto ao caso concreto, discordando apenas com relação ao mencionado ponto da tese.
- Processo: RE 1.301.250