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Imagine uma máquina enferrujada, cujas engrenagens emperradas há muito não cumprem suas funções. A metáfora não poderia ser mais adequada para descrever o cenário que os processos estruturais enfrentam no Brasil. Enquanto o direito processual tradicional visa a solucionar conflitos pontuais, os litígios estruturais são chamados para reformar o sistema como um todo, atuando como o lubrificante necessário para que a máquina institucional funcione corretamente. E, convenhamos, essa é uma tarefa monumental.
O processo estrutural tem se tornado cada vez mais uma das principais ferramentas à disposição do Poder Judiciário para enfrentar litígios complexos e sistemáticos. Não é uma simples questão de ganhar ou perder um processo. Trata-se de transformar instituições, políticas públicas e, em última instância, garantir os direitos fundamentais de uma maneira mais profunda e duradoura1.
Como destacou ironicamente o professor Félix Jobim, “não estamos mais sozinhos” – o Brasil se junta a uma tendência global que reconhece a necessidade de mudanças institucionais para além das simples ordens judiciais2. O Judiciário, agora, atua como uma espécie de engenheiro social, desenhando, com medidas judiciais, a reforma de um Estado que nem sempre parece estar em boas condições de operação.
1. Uma teoria própria para litígios estruturais
Ao contrário dos processos individuais, onde o foco é a resolução de um problema específico, os litígios estruturais demandam um enfoque muito mais abrangente. Como uma orquestra mal afinada, o processo judicial tradicional não consegue lidar com a complexidade e interconectividade dos problemas institucionais. Sérgio Arenhart foi um dos primeiros a apontar que, para que o Judiciário possa efetivamente atuar em litígios estruturais, é preciso uma nova teoria – uma que vá além da simples imposição de sentenças e reestrutura a própria maneira como as políticas públicas são implementadas3.
O próprio conceito de processo estrutural é, por vezes, mal compreendido. É tentador pensar que uma decisão judicial poderia, magicamente, resolver problemas profundos como a crise carcerária ou a falta de vagas em creches. Mas, como lembra Vitorelli, é preciso ter muito cuidado ao aplicar a lógica dos processos estruturais, pois eles demandam uma reorganização completa, com ações progressivas e duradouras, e não meramente pontuais4. Nesse sentido, os processos estruturais se assemelham mais a maratonas do que a corridas de curta distância.
Um dos exemplos mais emblemáticos é o caso Brown v. Board of Education (1954), que marcou o início de uma nova era de litígios de reforma institucional nos Estados Unidos, com a Suprema Corte ordenando a dessegregação racial nas escolas públicas5. A decisão exigia uma reconfiguração completa do sistema educacional. No Brasil, os processos estruturais enfrentam desafios semelhantes: a falta de uma teoria processual sólida e o risco de que as decisões judiciais se tornem simbólicas e ineficazes.
2. O Judiciário sem autocontenção
Aqui reside um dos maiores dilemas dos processos estruturais: até que ponto o Judiciário pode interferir em questões que tradicionalmente caberiam ao Executivo e ao Legislativo? A separação de poderes, no Brasil, é frequentemente invocada como barreira para uma intervenção mais incisiva do Judiciário em políticas públicas. Para alguns, essa interferência seria uma violação da autonomia desses poderes. Contudo, quando se trata de violações sistêmicas de direitos, há de se convir que o Judiciário não pode simplesmente assistir de camarote ao desmantelamento de direitos fundamentais.
O processo estrutural só deve ser aplicado em casos de extrema necessidade, onde a inércia ou falhas contínuas do poder público tornam a intervenção judicial a única saída para restaurar a ordem constitucional6. Essa atuação judicial, embora controversa sob o viés contramajoritário, ganha legitimidade quando se trata de corrigir desigualdades profundas e a salvaguarda de minorias invisíveis. De fato, no contexto dos processos estruturais, o Judiciário frequentemente precisa interpretar os limites de sua atuação, reconhecendo que, em certos casos, sua intervenção é mais que necessária – é inevitável.
Exemplos práticos no Brasil incluem a ADPF 347, na qual o STF reconheceu o ECI – Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional7. A decisão não visava apenas melhorar as condições das prisões; ela ordenava uma reforma completa do sistema carcerário brasileiro, reconhecendo que os problemas iam além de uma simples gestão falha – eles eram, de fato, estruturais. A decisão, porém, levanta a seguinte questão: o Judiciário está preparado para enfrentar esses desafios complexos, ou estamos simplesmente delegando tarefas que ele não está equipado para cumprir?
Casos mais recentes, como a ADPF 743, que versa sobre a gestão ambiental, demonstram que o Judiciário pode estar indo além do seu papel constitucional8. Nesta ação, o ministro Flávio Dino impôs uma série de medidas, como a convocação de bombeiros estaduais para combater incêndios no Pantanal e na Amazônia, além de autorizar a abertura de créditos extraordinários, dispensando a aplicação do § 7º do art. 4º da lei de responsabilidade fiscal. Ao adotar essa postura, Dino interpretou o art. 139, IV, do CPC como uma “cláusula geral de poderes ilimitados”, ampliando o escopo de sua atuação para além do que se poderia esperar. Esse modus operandi desvirtua toda a lógica sobre a qual os processos estruturais foram erguidos.
3. O desafio da implementação das reformas estruturais
Decisões judiciais podem parecer grandiosas no papel, mas a realidade da implementação é muito mais desafiadora. Aqui, o problema não é apenas o que o Judiciário decide, mas como essas decisões são efetivamente colocadas em prática. O conceito de ECI – Estado de Coisas Inconstitucional, adotado pela primeira vez na Colômbia, é um exemplo de como decisões judiciais estruturais podem se transformar em instrumentos poderosos de mudança social. Mas, como alerta Serafim, sem um acompanhamento contínuo e eficaz, essas decisões correm o risco de se tornarem meramente simbólicas9.
A experiência da Índia oferece uma lição importante para o Brasil. No caso Bandhua Mukti Morcha v. Union of India, o Supremo Tribunal indiano utilizou a técnica do continuing mandamus, mantendo a jurisdição sobre o caso até que as reformas fossem implementadas completamente? Essa técnica permitiu ao tribunal supervisionar o cumprimento de suas ordens de maneira mais eficaz, evitando que as decisões caíssem no esquecimento.
No Brasil, a falta de mecanismos robustos de supervisão é um dos maiores obstáculos para a efetividade dos processos estruturais. Casos como os desastres ambientais de Brumadinho e Mariana são exemplos de como as falhas na governança e fiscalização podem levar a consequências desastrosas. A necessidade de processos estruturais que reestruturem a forma como as empresas e o Estado gerem suas responsabilidades é evidente. Contudo, sem um mecanismo eficaz de monitoramento, essas decisões correm o risco de se tornarem “sentenças para inglês ver”, uma expressão que bem reflete a burocracia sem impacto.
4. O papel transformador dos processos estruturais
A despeito dos desafios, os processos estruturais têm um imenso potencial transformador. Eles oferecem uma oportunidade para que o Judiciário vá além de sua função tradicional e atue como um catalisador de mudanças sociais. O conceito de litígios estruturais, ao reorganizar políticas públicas e instituições, pode efetivamente corrigir violações de direitos que, de outra forma, ficariam impunes.
Desde que implementados corretamente, os processos estruturais podem ser uma ferramenta fundamental para a proteção e promoção dos direitos fundamentais no Brasil. Não se trata apenas de solucionar um problema pontual, mas de criar um caminho para reformas mais amplas e duradouras. Como evidenciado na Colômbia e na Índia, os processos estruturais podem reformar sistemas inteiros e garantir que direitos sejam respeitados em sua totalidade.10
Contudo, esse caminho precisa ser percorrido com cautela. O Judiciário brasileiro deve evitar a tentação de resolver tudo com ordens judiciais. O processo estrutural não é um milagre judicial, mas sim um processo contínuo de reestruturação e monitoramento11. Ou seja, o Judiciário deve atuar não como o “herói solitário” que resolve tudo sozinho, mas como um facilitador de um processo coletivo de transformação.
Conclusão
Os processos estruturais, em toda sua complexidade, despontam como uma resposta ousada às disfunções institucionais e ao descaso com direitos fundamentais no Brasil. Todavia, eles trazem consigo um grande desafio: equilibrar o poder do Judiciário sem desvirtuar a separação dos poderes. A potencial concentração de poder nas mãos de magistrados, especialmente à luz de decisões amplas e que interferem diretamente nas políticas públicas, coloca o processo estrutural em uma posição de risco. A intenção de reestruturar instituições disfuncionais e garantir direitos é nobre, mas o risco de sobrecarga e excessiva ingerência nas esferas do Executivo e Legislativo é real.
A implementação dessas decisões é outro obstáculo. Vimos isso em casos emblemáticos como a ADPF 743, que lida com as queimadas na Amazônia, onde o Judiciário se viu compelido a interferir diretamente na gestão de brigadistas e na abertura de créditos extraordinários. Essa atuação, embora bem-intencionada, levanta questões sobre os limites do Judiciário e a falta de mecanismos adequados para monitorar a execução das suas ordens. Os processos estruturais, quando não acompanhados por um sistema robusto de fiscalização, correm o risco de se tornarem sentenças sem efeito, permanecendo apenas no papel.
No entanto, há uma esperança renovada com o anteprojeto de lei atualmente em discussão12, que busca regulamentar e dar contornos claros à atuação do Judiciário nos litígios estruturais. Como destacado no anexo, essa nova proposta traz medidas que buscam delimitar o campo de atuação dos magistrados, preservando a cooperação entre os poderes e introduzindo regras para a elaboração de planos de ação.
O anteprojeto também deve prever maior transparência na supervisão e execução das decisões, garantindo que a intervenção judicial se mantenha dentro de parâmetros claros, com controle sobre sua duração e extensão. A expectativa é que essa legislação traga mais segurança jurídica e efetividade às decisões estruturais, sem comprometer o equilíbrio institucional. Se bem-sucedida, essa lei poderá transformar o processo estrutural em uma ferramenta poderosa, mas controlada, de evolução institucional no Brasil.
No fim das contas, os processos estruturais estão numa posição delicada: entre ser o arquiteto genial que redesenha as instituições ou aquele que, sem perceber, começa a construir paredes onde deveriam estar as portas. Com a nova legislação, a esperança é que o Judiciário entenda que não precisa ser o engenheiro de todas as reformas do país. Talvez, com essa dose de bom senso jurídico, ele possa finalmente parar de acumular funções e perceber que seu papel não é consertar todos os problemas, mas garantir que os outros poderes façam o trabalho deles sem tropeçar nos próprios pés.
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1 SANTANA, Felipe Viegas. Processos estruturais no Brasil: a atuação do Poder Judiciário na tomada de decisões em litígios policêntricos. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 96, n.1, 2024.
2 JOBIM, Félix. Processos Estruturais: Uma Nova Perspectiva para o Direito Processual Brasileiro. Revista de Direito Público, vol. 42, n. 12, 2023.
3 ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, v. 38, n. 225, p. 389-410, nov. 2013.
4 VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo, vol. 284, p. 333-369, out. 2018.
5 SCHLANGER, Margo. Beyond the hero judge: Institutional Reform Litigation as Litigation. Michigan Law Review, vol. 97, p. 1994-2036, 1999.
6 SARMENTO, Daniel. Ativismo judicial estrutural e o Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Público, v. 19, n. 102, 2020.
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Preceito Fundamental n. 347/DF. Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Publicado em 04 de outubro de 2023. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=347&classe=ADPF &origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 12 jul. 2024.
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Preceito Fundamental n. 743/DF. Rel. Min. André Mendonça. Redator Min. Flávio Dino. Publicado em 21 de março de 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=347&classe=ADPF &origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 15 jul. 2024.
9 KLARE, Karl E. Legal Culture and Transformative Constitutionalism. South African Journal on Human Rights, vol. 14, p. 146-188, 1998.
10 SERAFIM, Matheus. Processos estruturais para além da retórica: contribuições indianas para o monitoramento de decisões judiciais. Revista Direito e Práxis, v. 14, n. 2, 2023.
11 CASIMIRO, Matheus; FRANÇA, Eduarda. Decidindo quando intervir: critérios para identificar ações estruturais prioritárias. Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 661-688, 2024.
12 Ato nº 3, de 12 de abril de 2024, editado pelo Presidente do Senado Federal, instituiu a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de Lei de Processo Estrutural no Brasil. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2664/.
Felipe Viégas
Advogado da União na Advocacia-Geral da União (AGU), mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, especialista em Direito Constitucional, Administrativo e Tributário pela Escola de Magistratura de Pernambuco – ESMAPE. Membro do Tribunal de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal – OAB/DF, triênio 2022-2024. Membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil – ABPC. Está atualmente lotado na Coordenação-Geral de Proativo e Processos Estruturais da Secretaria-Geral de Contencioso da AGU, que atua perante o Supremo Tribunal Federal. É professor na Escola de Prerrogativas da OAB/DF e autor de obras jurídicas.