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Uma ação rescisória está para ser julgada pela seção de Direito Privado do TJ-RJ – Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, visando desconstituir acórdão a partir da ementa a seguir:
“Apelação. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Sentença de improcedência. Autora que pretende o reconhecimento da união estável com ex-cônjuge falecido. Casamento posterior que não impede o reconhecimento convivência more uxório, desde que comprovada a separação de fato. Inteligência dos artigos 1723, §1º e 1521, VI do Código Civil. Conjunto probatório que também não permite concluir que após a decretação do divórcio da requerente e o de cujus tenham ambos convivido de forma pública, notória, duradoura, com o objetivo de constituir família. Circunstâncias fáticas que afastam a presunção de afeição recíproca, indispensável para a configuração da affectio maritalis. Recurso desprovido.”
Entendendo o caso concreto
A demandante obteve, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava, objetivando desconstituir o acórdão supracitado. Qual o ponto crucial em jogo?
Vamos lá. Há duas decisões contraditórias: uma do juízo criminal, reconhecendo a união estável e a outra do juízo civil, não reconhecendo idêntico fato, porém, vindas do mesmo Poder Judiciário.
Pode isso?
Uma coisa, porém, deve ficar claro desde logo: na questão prejudicial, que como se sabe, é sempre uma questão prévia (ou preliminar); que deve ser resolvida antes de outra questão, o juízo criminal, de forma cabal, entendeu que, sim, há no presente caso o intuito da união estável vivida entre a ré e N.
Importante: o fato probante, na questão prejudicial, é o mesmo da ação declaratória de união estável. Mas por que a questão prejudicial? Explico: se o juízo criminal entendesse que não havia união estável a autora da ação rescisória seria condenada.
Uma pausa: em relação a prova nova apresentada pela autora, é preciso ressaltar, na linha de autorizado magistério doutrinário do professor e desembargador Alexandre Freitas Câmara, saber, inicialmente, o que seja prova nova, isto é, o sentido jurídico da expressão. Vejamos com a clareza e didática que lhe é peculiar:
“Prevê o inciso VII do art.966 a rescindibilidade da decisão judicial quando” obtiver o autor (da ação rescisória), posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”.
Significa isso, então, que aquele que ficou vencido na causa original obtiver, posteriormente, prova que lhe assegure, por si só, resultado favorável, poderá obter a rescisão da decisão que lhe foi desfavorável”
Como se sabe, a ação rescisória é o contrário da coisa julgada. Tal instituto permite a rescisão da sentença. Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha ensinam que:
“Convém anotar o seguinte: a ação rescisória, no direito brasileiro, permite a rescisão da sentença por motivos relacionados à sua validade (art. 966, II e IV, p.ex.) e à sua justiça (art. 966, VI e VII)”.
Voltando: Vejamos, então, parte da fundamentação da sentença criminal, após o trânsito em julgado do acórdão rescindendo, que reconhece a união estável entre os conviventes:
“Diante dos fatos comprovados, o que resta configurado é uma enorme insatisfação dos filhos de N, no que tange à possibilidade de partilhar a herança com a ex-esposa, atual companheira de N, no momento da morte deste, desconsiderando, por tudo trazido, que essa era a grande vontade do pai”. Considerando os diversos documentos e depoimentos produzidos em juízo, resta claro que há no presente caso o instituto da união estável vivida entre a ré e N.”
“Frise-se que o fato acima corrobora ainda mais para o entendimento de que o casal – N e a ré – estavam juntos no projeto de constituir família, pois mobiliavam a casa e colaboravam juntos na forma de compra.”
“Como ponto de partida, retorna-se à conclusão chegada anteriormente, no sentido de que a ré vivia com N, em união estável, pública e com intenção de constituir família e esteve na casa da sogra, onde foi bem recebida, apesar da dor e sofrimento daquele momento.”
E, há, mais: os réus, na confissão judicial e extrajudicial, que é uma espécie de prova, não só concordam com a fundamentação da decisão, na esfera criminal, de que havia, sim, união estável entre N e a autora, como alegam que ocorreu uma prova inverossímil utilizada indevidamente por eles, ou seja, prova falsa, que não correspondia com a realidade e que, nesta data, reconhecem para corrigir o erro cometido. Afirmam, também, que a autora ficou privada de produzir prova em relação ao endereço residencial de N, pai dos réus.
Não obstante, a ementa do acórdão rescindendo, na contramão, diz que:
“Conjunto probatório que também não permite concluir que após a decretação do divórcio da requerente e o de cujus tenham ambos convivido de forma pública, notória, duradoura, com o objetivo de constituir família.”
Decisões judiciais contraditórias entre o juízo civil e criminal
Aqui surge um problema jurídico e filosófico. Aliás, o Direito é filho da filosofia. Existem duas decisões contraditórias para o mesmo fato probante: uma, do juízo criminal, reconhecendo a união estável, e a outra, do juízo civil, não reconhecendo o mesmo fato, porém, emanadas do mesmo Poder Judiciário.
Pode isso, excelências?
Vale lembrar que a jurisdição é uma porque é manifestação do poder estatal. É indivisível. De forma cientifica: é uma só!
A questão de competência é evidente que não afasta o fato de existirem duas decisões contraditórias: uma reconhecendo a união estável e a outra não reconhecendo o mesmo fato; porém, vindas do mesmo Poder Judiciário.
Há, sim, uma mitigação, no caso concreto, da independência de jurisdições. Como é sabido, o Direito Penal tem exigência probatória mais rígida para solução de controvérsias, em decorrência do princípio da presunção de inocência.
A propósito, o juízo penal dispõe de melhores meios para atingir a verdade processual.
Efetivamente, repugna conceber que o Estado, em sua unidade, decida por um dos seus órgãos (juízo civil) que não havia união estável e, posteriormente, esse mesmo Estado venha declarar por outro ramo do Poder Judiciário (juízo criminal) que, sim, havia união estável entre os conviventes.
Pois então. Incrível. Chocante. Ofensivo ao prestígio da Justiça. Desprestigio ao cidadão e direitos fundamentais. Gravíssima contradição; pelo qual um mesmo fato probante, a um só tempo, pode não ser e ser.
Coerência e integralidade do direito: um fato pode ser e não ser ao mesmo tempo?
Parmênides, filósofo pré-socrático, 515 a.C, já dizia que “o ser é e não pode não ser e o não ser não é e não pode ser de modo algum”. Na pós-modernidade, Titãs, no álbum Cabeça de Dinossauro, com letra de Arnaldo Antunes, fala: “Não é o que não pode ser”.
Óbvio isso, não é?
Então, o mesmo fato pode receber do Estado-juiz respostas contraditórias?
Como ressalta Lenio Streck: “Desde Aristóteles, sabe-se que uma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser (…). Juridicamente, também não. Insisto: os mesmos fatos não podem existir e deixar de existir para o mesmo Estado. Isso se dá, concretamente, em virtude das exigências legais de coerência e integridade que caracterizam nosso ordenamento jurídico.
Do affectio maritalis
Observe-se que a ementa diz que: “circunstâncias fáticas que afastam a presunção de afeição recíproca, indispensável para a configuração da affectio maritalis”.
Como assim?
Sempre com todo o respeito, é um “achismo”. É subjetivismo. Como medir o afeto? Por sinal, o Estado-Juiz tem um “afetômetro”? Existe uma régua para medir o afeto? Por que os conviventes não tinham a intenção de constituir família? Ora, há uma fundamentação genérica. Contrária às robustas provas dos autos.
Por sinal, na fundamentação da decisão criminal, o juízo aduz que: “N e a ré” estavam juntos no projeto de construir família, pois mobiliaram a casa e colaboraram juntos na forma de compra. A ré vivia com N, em união estável, pública e com intenção de constituir família”.
À vista disso, existe muito afeto nessa história.
Lembrei-me de Herbert Vianna: às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais.
É a vida como ela é.
Conclusão
Há um fato, e duas decisões contraditórias, emanadas do mesmo Poder Judiciário. Ficou, sim, uma bipolaridade jurídica, não é?
Pois é. E agora, José?
E a coerência e integralidade do Direito?
Independentemente da prova nova e confissão judicial e extrajudicial dos réus, na ação rescisória, é de uma obviedade óbvia que há uma contradição lógica de aceitar que um fato poderia ser e ao mesmo tempo não ser. Isso é trivial desde a lógica Aristotélica.
A pergunta que se põe é: como a seção de Direito Privado, do TJ-RJ, vai julgar o caso complexo? O Direito, sim, é capaz de fornecer resposta ao caso concreto em nome da coerência e integralidade!
Porém, o Direito jamais poderá ser levado ao absurdo! Ademais, temos que levar o Direito a sério, não é?
Existe, sim, uma resposta correta no Direito! Aliás, a resposta correta em Direito é aquela que, hermeneuticamente, estiver adequada à CF/88.
É preciso, então, buscar uma solução justa para essa questão. Há, sim, que relativizar a coisa julgada em prol da Justiça justa!
Daí a lição magistral de Alexandre Freitas Câmara:
“O direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos (.) O processo só pode ser aceito como meio de acesso a uma ordem jurídica justa. E é crer possibilidade de construção dessa ordem jurídica justa para que à mesma se possa chegar. Afinal, como disse – com a costumeira sabedoria -Calamandrei, ‘para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê’.”
Afinal, qual o processo que queremos? Vamos continuar semeando injustiças?
Com a palavra: os juristas que têm que preocupar-se com Justiça. e a doutrina que é para doutrinar.
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1. Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.930/931, Gen/Atlas.
2. DIDIER, Fredie e CUNHA, Leonardo Carneiro, Curso de Direito Processual Civil, 20ª edição, p.588, 2023, JusPODIVM)
3. CÂMARA, Alexandre Freitas, Relativização da Coisa Julgada, organizada por Fredie Didier Jr, 2008, JusPODIVM, 2ª edição, 2008, p.37)
Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras