Boa fé proteção do acionista minoritário na recuperação da Americanas   Migalhas
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Boa-fé proteção do acionista minoritário na recuperação da Americanas – Migalhas

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1. Introdução

Em decorrência dos alegados escândalos contábeis com os quais se viu envolvida no início de 2023, a Americanas S.A se viu forçada a recorrer ao mecanismo de recuperação judicial para tentar evitar a falência e, ao mesmo tempo, reestruturar sua dívida com os credores. 

E, dadas as proporções bilionárias do ocorrido e as partes envolvidas, pode-se afirmar que a recuperação judicial da Americanas, se tornou um dos processos empresariais mais complexos e discutidos da atualidade. E um dos aspectos mais controversos, no nosso entendimento, será o impacto negativo que será imposto nas finanças dos acionistas minoritários em decorrência da aprovação de um aumento de capital que seria um dos pilares do plano de reestruturação.

Entendemos ser imprescindível compreender como o plano de recuperação judicial foi estruturado, especialmente em relação ao aumento de capital e as consequências desse mecanismo para os acionistas minoritários, conforme passamos a analisar nos próximos tópicos.

Do plano de recuperação

Assim, nos termos do plano de recuperação proposto, é o objetivo da Americanas:

“a reestruturação dos Créditos Concursais de maneira justa e equânime, (…) (i) preservar a função social das Recuperandas e dos negócios do Grupo Americanas; (ii) preservar os empregos existentes e promover a geração de novos empregos; (iii) permitir que o Grupo Americanas supere sua crise econômico-financeira; (iv) evitar a falência das Recuperandas; (v) permitir que o Grupo Americanas estabeleça nova capacidade produtiva e posição financeira independente e sustentável; e (vi) viabilizar novos investimentos e o Aumento de Capital Reestruturação. 

Em linhas gerais, um plano de recuperação tem como premissa a readequação dos passivos da companhia, o ajuste do endividamento e a recuperação da capacidade de pagamento da companhia, no caso em comento, da Americanas.

Uma parte essencial desta premissa envolve a renegociação com credores e a conversão de parte das dívidas em participação acionária, por meio de um aumento de capital e captação de novos recursos, que seriam essenciais para que a Americanas consiga liquidar suas dívidas e retomar o equilíbrio financeiro, tanto que a Assembleia-Geral da Americanas, aprovou em maio de 2024, conforme Ata de AGE de 21/5/24, não apenas o aumento de capital previsto no plano de recuperação, mas também o grupamento das ações ordinárias da companhia na proporção de 100 para 1 ação, conforme abaixo:

ii) Aprovar o grupamento da totalidade das ações ordinárias de emissão da Companhia, na proporção de 100 ações ordinárias para 1 ação da mesma espécie; (iii) Aprovar o aumento do limite do capital autorizado, que passa a ter o limite de 435.084.497 ações ordinárias; (…) (v) Aprovar o aumento de capital social da Companhia, no valor de, no mínimo R$12.268.754.635,80, e, no máximo, R$40.733.620.278,00 (…) ao preço de emissão de R$1,30 por ação, bem como a emissão de (…) bônus de subscrição, atribuídos como vantagem adicional aos subscritores das novas ações, na proporção de 1(um) bônus de subscrição para cada grupo de 3 (três) ações subscritas. 

A reestruturação e o aumento do capital da Americanas se justificam dada a necessidade de captação de recursos que pudessem ser utilizados para o pagamento de dívidas e reorganização financeira da companhia, sendo, portanto, o mencionado aumento crucial para sanear a estrutura de capital da Americanas e evitar uma possível falência.

Entretanto, o aumento de capital, embora necessário para a operacionalidade da recuperação judicial da Americanas, trouxe consequências severas para os acionistas minoritários, uma vez que tal aumento tem o potencial de diluir significativamente as participações dos acionistas existentes, especialmente os minoritários, que não têm condições financeiras para acompanhar o aumento de capital, exercendo o direito de preferência, previsto na lei 6.404/76.

Da mesma forma, a aprovação da emissão de bônus de subscrição, um direito concedido apenas aos subscritores das novas ações, é um agravante da situação dos minoritários da Americanas. Uma vez que, para cada três novas ações subscritas, será emitido um bônus de subscrição ao preço simbólico de R$ 0,01. Novamente tal mecanismo, embora benéfico para os grandes investidores e credores que participarem da subscrição, agrava ainda mais a situação dos acionistas minoritários que não conseguirem acompanhar o aumento de capital, já que os bônus representam uma vantagem adicional que eles não terão acesso, caso não adquiram novas ações.

Desta feita, o plano de recuperação da Americanas, tal qual foi estruturado, impõem um pesado fardo aos acionistas minoritários, que sofrerão uma diluição substancial de suas participações e uma redução significativa de seu poder de influência e expectativa de retorno financeiro, caso a recuperação seja exitosa. 

Do acima exposto e, considerando as premissas da proteção dos acionistas minoritários e a condução de processos de recuperação judicial, entendemos necessária, uma breve análise da diluição das participações dos acionistas minoritários à luz da boa-fé objetiva, ainda que não tenhamos a pretensão de esgotar o tema ao longo deste breve artigo.

A preservação da empresa e o papel dos acionistas minoritários

Conforme já tratamos em nossa obra “A boa-fé objetiva como fundamento do controle judicial na recuperação de empresas”, a lei 11.101/05, traz em seu bojo princípios fundamentais como a preservação e função social da empresa, que são os pilares sobre os quais o plano de recuperação da Americanas foi formulado, não podemos negar, entretanto, nos termos da lei 11.101/05, a recuperação judicial: 

“não mais se restringe à contraposição credor vs. devedor, mas reconhecidamente direciona-se à equalização dos vários interesses coletivos vinculados à cadeia de agentes econômicos e sociais, direta ou indiretamente relacionados à sociedade em crise econômico-financeira, os chamados stakeholders.” 

Devemos ressaltar que no contexto do plano de recuperação da Americanas, a diluição das participações dos acionistas minoritários em decorrência do aumento de capital, embora seja um dano colateral justificável dentro da estratégia traçada para reestruturação da companhia, levanta preocupações quanto à preservação dos direitos dos acionistas minoritários. A função social da empresa deve assegurar que os acionistas minoritários, assim como outros stakeholders, não sejam desproporcionalmente afetados e que suas participações e expectativas de retorno financeiro sejam consideradas no plano de recuperação.

Lembremos que o princípio da preservação da empresa, não visa apenas proteger os interesses não apenas dos credores, mas também dos demais stakeholders e, preservar as atividades da Americanas é vital para garantir sua função social, que o que também inclui a proteção dos investimentos de todos os seus acionistas.

Assim, a preservação da empresa não pode ser entendida apenas como a continuidade de suas operações, mas também como a proteção dos direitos dos acionistas minoritários, que são parte integrante do ecossistema econômico da companhia, sendo o equilíbrio entre o fortalecimento da estrutura de capital da empresa e a preservação das participações acionárias uma premissa que se deve objetivar.

Proteção dos acionistas minoritários e a boa-fé objetiva

A boa-fé objetiva, sendo um dos princípios norteadores relações contratuais e empresariais, que exige que as partes envolvidas em um negócio jurídico ajam de maneira ética, transparente e com lealdade, buscando não apenas a proteção de seus próprios interesses, mas também o respeito aos interesses dos demais stakeholders. Sendo que:

(…) a aplicação e delimitação do Princípio da Boa-Fé objetiva ao Plano de Recuperação proposto pelo devedor aos credores, (…)pode ser entendida como o dever de conduta das partes em agir conforme padrões socialmente reconhecidos de fidelidade e cooperação buscando a consecução dos objetivos contratualmente assumidos.

No contexto do plano de recuperação judicial da Americanas, o aumento de capital, embora necessário, não poderia ser implementado sem a observância dos deveres anexos de conduta decorrentes do princípio da boa-fé objetiva.

E, conforme leciona Ricardo Lupion Garcia (2011, p. 52), entre tais deveres anexos, tem-se exemplificativamente os seguintes: “a) de cuidado, previdência e segurança; b) de aviso e esclarecimento; c) de informação; d) de prestação de contas; e) de colaboração e cooperação; f) de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; g) de omissão e de segredo”.

Tais deveres deveriam impor tanto à Americanas quanto seus credores e acionistas majoritários o dever de agirem de forma cooperativa, buscando soluções que não prejudiquem desproporcionalmente outros stakeholders, entre eles os acionistas minoritários.

Entretanto, o que se observa é o agravamento da condição dos minoritários, com a emissão de bônus de subscrição que oferece uma vantagem substancial aos investidores capazes de acompanhar o aumento de capital, enquanto os minoritários, sem acesso aos recursos financeiros necessários, ficam excluídos dessa vantagem.

Da violação dos deveres de boa-fé

A violação dos deveres de boa-fé objetiva no processo de recuperação judicial da Americanas, em especial no tratamento dado aos acionistas minoritários, reflete a ausência de medidas eficazes para mitigar os efeitos adversos sobre esse grupo.

A boa-fé objetiva exige que as partes envolvidas em um processo empresarial atuem com transparência, cooperação e lealdade, não apenas para cumprir suas obrigações legais, mas também para evitar prejuízos desproporcionais a outros stakeholders. No contexto de uma recuperação judicial, esse princípio deveria nortear todas as decisões, especialmente aquelas que têm o potencial de impactar negativamente grupos vulneráveis, como os acionistas minoritários.

O princípio da boa-fé objetiva, conforme exigido pelo ordenamento jurídico brasileiro, impõe a obrigação de agir com lealdade e consideração pelos interesses dos outros, especialmente quando se trata de decisões que podem impactar de forma substancial stakeholders minoritários.

A boa-fé objetiva, em resumo, se apresenta como uma regra de conduta, um dever de agir, imposto às partes vinculadas em uma relação decorrente de um negócio jurídico, com lealdade, cooperação e respeito aos deveres anexos de conduta a ela vinculados. Entende-se que se o exercício de um direito for contrário ou ferir estas regras de conduta, a parte que o praticou estará então maculando valores intrínsecos do ordenamento jurídico pátrio, com fundamentos constitucionais decorrentes da conexão entre o princípio da boa-fé objetiva com o princípio da função social do direito e seus corolários. 

No caso da Americanas, a empresa, seus credores e os acionistas majoritários poderiam ter adotado medidas para minimizar o impacto da diluição, assegurando condições mais justas aos acionistas minoritários, como por exemplo: (a) Condições diferenciadas para a subscrição de novas ações; (b) Compensações adicionais; (c) Mitigação mediante cláusulas de proteção aos minoritários.

Ao deixar de implementar mecanismos de mitigação ou de compensação, a Americanas, seus credores e grandes investidores acabam por comprometer a essência do processo de recuperação judicial, que é busca da preservação da empresa sem sacrificar injustamente a posição dos stakeholders menos favorecidos, o que pode ser interpretado como uma violação da boa-fé objetiva por diversos motivos:

  • Falta de transparência: A ausência de comunicação adequada ou de informações acessíveis viola o dever de transparência imposto pela boa-fé objetiva;
  • Quebra da cooperação: O princípio da cooperação entre as partes é um dos pilares da boa-fé objetiva a adoção de medidas que prejudiquem qualquer dos stakeholders fere tal princípio;
  • Desequilíbrio na equidade do tratamento: Os stakeholders devem ser tratados de maneira equilibrada, qualquer condição que viole direitos, viola esta equidade.
  • Conclusão

    A partir da análise das deliberações envolvendo o aumento de capital dentro das premissas do plano de recuperação judicial da Americanas S.A., traçamos uma breve avaliação do fato sob a luz do princípio da boa-fé objetiva e seu impacto para os acionistas minoritários.

    Observamos como o aumento de capital, embora essencial para a solvência da companhia, impacta desproporcionalmente os acionistas minoritários e, deixando o plano de propor qualquer forma mitigar os efeitos negativos para os acionistas minoritários, o que, no nosso entendimento, viola os deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva.

    O que representa um claro desequilíbrio no tratamento dos stakeholders e compromete a legitimidade do processo de recuperação. O plano deveria ter promovido maior equidade, considerando que a preservação da empresa deve beneficiar todos os envolvidos, e não apenas os grandes investidores.

    Do exposto, ressaltamos, por fim, que o plano deveria incluir mecanismos mais robustos de proteção aos acionistas minoritários, tais como cláusulas de proteção contra diluição excessiva e garantias de transparência nas deliberações. Isso garantiria uma recuperação mais justa, que atenda aos princípios de boa-fé objetiva, preservando a empresa sem prejudicar desproporcionalmente os pequenos investidores.

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    AMERICANAS S.A. – Em Recuperação Judicial. Ata da Assembleia Geral Extraordinária realizada em 21 de maio de 2024. Rio de Janeiro, 2024. Disponível em: https://ri.americanas.com/. Acesso em: 20 out. 2024.

    AMERICANAS S.A. – Em Recuperação Judicial. Plano Consolidado de Recuperação Judicial. Rio de Janeiro, 2024. Disponível em: https://ri.americanas.com/. Acesso em: 20 out. 2024.

    CERQUEIRA, Daniel da Silva Araujo. A boa-fé objetiva: fundamento do controle judicial na recuperação judicial. São Paulo: Editora, 2024. 

    GARCIA, Ricardo Lupion. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

    Daniel da Silva Araujo Cerqueira

    Daniel da Silva Araujo Cerqueira

    Sócio e Coordenador da Área Societária do Moises Freire Advocacia, Mestre em Direito Empresarial, Pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Milton Campos. Professor de Direito Societário e Governança Corporativa na Pós Graduação da PUC Minas.

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