O vale pedágio e a solidariedade   Migalhas
Categories:

O vale pedágio e a solidariedade – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

O vale-pedágio obrigatório, regulamentado pela lei 10.209/01, também conhecida como lei da “dobra do frete”, visa desonerar os transportadores rodoviários de cargas do custo do pedágio, transferindo essa responsabilidade ao embarcador ou equiparado. Essa legislação foi instituída com o intuito de equilibrar as relações contratuais no transporte rodoviário de carga, garantindo que o valor do pedágio não onere o transportador e, consequentemente, mantenha a competitividade no setor de frete.

Segundo preceitua o art. 1º, § 1º1 da mencionada lei, é do embarcador a responsabilidade pelo pagamento antecipado do valor relativo ao pedágio, por meio da entrega do vale-pedágio ao transportador contratado. Já o inciso segundo do parágrafo terceiro2 dispõe que se equipara ao embarcador a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo. Contudo, a aplicação desse dispositivo levanta um questionamento no que tange à interpretação que vem sendo dada quanto à existência da solidariedade entre as partes envolvidas.

A questão central gira em torno das figuras do embarcador e do transportador subcontratante, isso porque boa parte da jurisprudência vem entendendo que a relação entre ambos implica em solidariedade, ou seja, não tendo recebido o valor do frete de forma antecipada, o subcontratado poderá demandar em face de qualquer um deles.

Todavia, o art. 265 do CC3 estabelece que a solidariedade não se presume; ela resulta da lei ou da vontade das partes. Dessa forma, ao interpretar a lei 10.209/01, é fundamental observar que o legislador, que assim dispõe: “Equipara-se, ainda, ao embarcador… a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo”, não mencionou expressamente a solidariedade entre o transportador subcontratante e o embarcador.

Em uma interpretação literal do dispositivo legal, o que se depreende é que a empresa transportadora que subcontratar o serviço de transporte de carga junto a transportador autônomo será equiparado a embarcador.

Ainda, segundo definição do dicionário Michaelis, “equiparado” significa: Comparado com outro; que possui as mesmas características ou condições do outro; igualado. Nesse sentido, nos termos do art. 1º, § 3º, II da lei 10.209/01, constata-se que o subcontratante é tido como igualado, colocado na situação do embarcador no tocante à responsabilidade de antecipação do vale-pedágio.

Falando de outra forma, não se vislumbra nessa lei, que se qualifica como legislação específica ao tema vale-pedágio, qualquer disposição em relação à solidariedade entre contratante e contratado/subcontratante a demonstrar, data venia, que a construção jurisprudencial majoritária se mostra equivocada.

Ao tratar do tema, o ilustre doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, leciona que a solidariedade deve ser entendida como uma exceção no ordenamento jurídico, sendo aplicável apenas quando expressamente determinada pela lei “Não se admite responsabilidade solidária fora da lei ou do contrato. Como exceção ao princípio de que cada devedor responde somente por sua quota e por importar, consequentemente, agravamento da responsabilidade dos devedores, que passarão a ser obrigados ao pagamento total, deve ser expressa. Desse modo, se não houver menção explícita no título constitutivo da obrigação ou em algum artigo de lei, ela não será solidária, porque a solidariedade não se presume. Será, então, divisível ou indivisível, dependendo da natureza do objeto.”4 (grifo nosso).

Para exemplo, preceitua o art. 827 do CC que a responsabilidade do fiador somente será solidária se houver uma cláusula expressa no contrato que estipule essa condição. Assim, se a fiança é prestada sem a cláusula de solidariedade, a responsabilidade do fiador será subsidiária. Ou seja, mesmo em contratos onde a garantia do cumprimento de uma obrigação é crucial, a solidariedade não pode ser presumida, mas deve ser expressamente pactuada.

Por analogia, podemos citar o CTN – Código Tributário Nacional, em seu art. 124, inciso II, no qual se estabelece que a solidariedade tributária somente ocorre quando há previsão expressa na lei. Sem essa previsão, não é possível imputar a responsabilidade solidária a terceiros.

Ainda, em relação aos contratos de seguro, o art. 757 do CC prevê que o segurador se obriga a garantir interesse legítimo do segurado. Todavia, a responsabilidade do segurador é limitada aos termos do contrato e da lei, e não se estende a terceiros sem previsão legal. Traçando-se um paralelo com a lei 10.209/01, tem-se que a responsabilidade do embarcador deveria ser limitada aos termos expressos na legislação, sem imputar a solidariedade com o transportador subcontratante.

Portanto, com base no princípio da legalidade, na interpretação restritiva das normas de solidariedade e ante à necessidade de se observar a manutenção da segurança jurídica, resta claro que a lei 10.209/01 não estabelece, nem mesmo implicitamente, a solidariedade entre o embarcador e o transportador subcontratante. Qualquer interpretação que imponha tal responsabilidade extrapola os limites da lei.

Diante disso, é trabalho do operador do direito questionar a conformidade da jurisprudência atual que reconhece a solidariedade no âmbito do vale-pedágio obrigatório. A análise criteriosa dos dispositivos legais é essencial para assegurar que as interpretações judiciais estejam em harmonia com os princípios que regem o ordenamento jurídico. O reconhecimento da solidariedade onde não há previsão legal expressa pode constituir uma extrapolação das normas, impondo responsabilidade incabível a uma das partes da relação negocial.

Portanto, é imperioso repensar o entendimento vigente a fim de que o sistema jurídico ofereça maior segurança e previsibilidade às empresas e operadores logísticos, preservando o que preceitua o texto da lei 10.209/01 e respeitando os limites estabelecidos pelo CC.

________

1 Art. 1º Fica instituído o Vale-Pedágio obrigatório, para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário, nas rodovias brasileiras. § 1º O pagamento de pedágio, por veículos de carga, passa a ser de responsabilidade do embarcador.

2 § 3º Equipara-se, ainda, ao embarcador: … II – a empresa transportadora que subcontratar serviço de transporte de carga prestado por transportador autônomo.

3 Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

4 GONÇALVES, Carlos Roberto, Teoria Geral das Obrigações, 13ª ed., Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Izilda de Oliveira Beber

Izilda de Oliveira Beber

Advogada da área Cível na Oliveira e Olivi Advogados Associados Pós – Graduação em Direito Processual Civil pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI)

Oliveira e Olivi Advogados Associados Oliveira e Olivi Advogados Associados

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *