Reconhecimento fotográfico: A nova jurisprudência do STJ   Migalhas
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Reconhecimento fotográfico: A nova jurisprudência do STJ – Migalhas

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Está em curso, nos meios judiciários (em especial, no STJ), com os aplausos sectários de reduzido setor da comunidade jurídica, uma verdadeira cruzada de demonialização do reconhecimento pessoal por meio fotográfico ou audiovisual, como elemento de prova no processo penal. Esta luta renhida, surda a argumentos contrários, é conduzida por alguns paladinos de um garantismo penal incompreendido e, por conta disso, mal alinhavado em decisões judiciais.

Em decisão monocrática proferida na tutela cautelar antecedente 657 – SC (2024/0336107-2), de 05.09.2024, o min. Ribeiro Dantas do STJ, faz referência à recente jurisprudência da Corte: 

Em julgados recentes, ambas as turmas que compõe a 3ª Seção deste STJ alinharam a compreensão de que “o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do CPP e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa (HC 652.284/SC, rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª turma, julgado em 27/04/21, DJe 03/05/21.

Num embate doutrinário ou jurisprudencial como esse, os instrumentos mais eficientes são os conceitos esgrimidos, pois na reflexão jurídica o problema é, como destaca Julien Freund (2003, p. 106), “não se deixar prender nas armadilhas da linguagem e da gramática durante a análise das noções”. Portanto, a premissa básica para emprestar um pouco mais de racionalidade à argumentação é afiar os instrumentos de batalha, ou seja, apurar os conceitos, refiná-los à luz da mais rigorosa lógica jurídica. De início, é preciso distinguir entre “elementos informativos” ou “de convicção” e “provas”.

Os elementos informativos ou de convicção são informações colhidas na fase pré-processual (ou investigatória do inquérito policial), cujo propósito é auxiliar na formação da opinio delicti do titular da ação penal (Ministério Público, no caso de ações penais públicas ou o particular, no caso de ações penais de iniciativa privada). Esses elementos informativos e sua respectiva natureza têm previsão legal:

“Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima.” (CPP, art. 28, caput).

“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação.”. (CPP, art. 155, caput).  

A rigor, existem alguns elementos produzidos no inquérito policial que, pela sua cautelaridade ou irrepetibilidade (art. 155, CPP), constituem prova, e não mero elemento informativo, a exemplo do que se passa com o Laudo de Exame de Corpo de Delito. No mais, todas as informações apuradas em inquérito policial não constituem provas, mas simples elementos de convicção ou informativos que podem (e quase sempre, devem) ser reproduzidos em juízo. Isto é consenso doutrinário e jurisprudencial.

A prova penal, tecnicamente falando, não se confunde com os elementos de informação, que são colhidos no bojo de inquérito policial, sem a observância plena do contraditório, participação dialética das partes e ampla defesa (Capez, 1999, p. 70). Basicamente, o que  distingue a prova dos elementos informativos é o fato da primeira (prova) ser “produzida em contraditório judicial” (CPP, art. 155), “ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (CPP, art. 155) que podem ser produzidas, em definitivo, na fase pré-processual.  

Reconhecimento de pessoas: elemento informativo e prova

No CPP, o reconhecimento de pessoas vem, num primeiro momento, elencado no art. 6o., inciso VI, como uma das medidas a serem adotadas pela autoridade policial assim que toma conhecimento da prática de infração penal.

Num segundo momento, o reconhecimento de pessoas consta no título VII (Da prova), capítulo VII, do CPP. Nos arts. 226 a 228 do CPP é estruturado o procedimento a ser observado no “reconhecimento de pessoas e coisas”. Até aqui, fica claro, sem qualquer dúvida apreciável, que o reconhecimento de pessoas, tanto pode ser um “elemento informativo” (vez que produzido na fase pré-processual), quanto elemento de prova (uma vez elaborado em juízo).

Como elemento informativo, o reconhecimento de pessoas produzido no inquérito policial não é refém do formalismo judicial do art. 226 e seguintes do CPP. Na verdade, a investigação criminal quanto mais simples e informal, mais ganha em efetividade e celeridade. O postulado da simplicidade, em todos os recantos da atividade humana, afirma que, de duas alternativas, a mais simples é a que tem mais probabilidades de estar mais próxima da verdade (Jeans, 1944, p. 217; Whitehead, 1968, p. 182). Veja-se que quando o legislador quer conferir maior rigor a um elemento informativo, ele expressamente remete ao congênere judicial, como se passa com o interrogatório do indiciado no art. 6o., inciso V, do CPP:

“Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:  V- ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.  

O legislador processual penal não reproduz essa advertência do inciso V, do art. 6o., do CPP (interrogatório do acusado), no que tange ao reconhecimento de pessoas previsto no inciso VI do mesmo artigo legal. Logo, a conclusão parcial alcançada é a de que o espelhamento do art. 226 não é obrigatório quando das medidas adotadas na investigação desenvolvida no inquérito policial, com exceção, obviamente, do inciso V (interrogatório do indiciado que deve espelhar, “no que for aplicável”, o interrogatório judicial no cap. III, título VII).  

O interrogatório policial, mesmo sob os auspícios subsidiários do interrogatório judicial (Cap. III, Título VII, do CPP), preserva a natureza de “elemento informativo”, não tendo o poder, por si só e isoladamente, de conduzir à condenação de quem quer que seja. As mesmas razões aplicam-se ao reconhecimento de pessoas no inquérito policial, mero elemento informativo que é. E, neste sentido, a resolução 484/22, do CNJ (que estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas), é irretocável:

“A autoridade judicial, no desempenho de suas atribuições, atentará para a precariedade do caráter probatório do reconhecimento de pessoas, que será avaliado em conjunto com os demais elementos do acervo probatório, tendo em vista a falibilidade da memória humana” (art. 11, parágrafo único). 

O que foi dito até aqui, autoriza concluir sobre a existência de dois momentos em que o reconhecimento de pessoas pode ser produzido: primeiro, no inquérito policial, como elemento informativo para auxiliar a formação da opinio delicti do autor da ação penal; e segundo, em juízo sob o domínio do contraditório judicial, como prova, para motivar e fundamentar eventual decreto condenatório. Não é preciso ressaltar que o reconhecimento de pessoas é elemento plenamente repetível e reproduzível em juízo.

Reconhecimento por meio fotográfico ou audiovisual e sua legitimidade

A questão que se põe agora é a seguinte: se o reconhecimento de pessoas na esfera pré-processual, conduzido por autoridade policial, não se espelha, total e necessariamente, no procedimento realizado em juízo, como deve ser estruturado? Como elemento de convicção que é, e considerando o menor formalismo próprio da esfera investigativa, a autoridade policial goza de maior liberdade (discricionariedade) para usar outros meios legítimos para apurar a autoria do delito. O reconhecimento por meio de fotografia ou audiovisual constitui-se, folgadamente, em tal meio legítimo de levantar elementos informativos. Certamente, não constitui prova, tal como o reconhecimento de pessoas sob rito próprio no Judiciário, mas indício capaz de garantir o interesse público na elucidação das infrações penais, principalmente as de maior gravidade.

A demonialização ou a diabolização do reconhecimento fotográfico ou audiovisual de pessoas não vai ao ponto de excomungá-lo definitivamente do ordenamento jurídico penal e das práticas inquisitórias e judiciais. É uma concessão (do crescente movimento vitimário) que se faz ao esforço hercúleo de garantir um mínimo de segurança pública à população brasileira. A própria jurisprudência do STJ, presuntivamente garantista, reconhece isso.

Em decisão proferida em abril de 2021 (HC 652.284/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª. turma, julgado em 27/04/21, DJe 03/05/21), o STJ entendeu que o reconhecimento fotográfico para ser idôneo pressupõe a observância “total ou parcial dos preceitos do art. 226 do CPP”. A “observância parcial” é um claro reconhecimento de que o elemento informativo, em sede policial, não exige um espelhamento fidelíssimo das regras do art. 226, do CPP.

E a Resolução 484/22, do CNJ, de igual modo (art. 2o., §2º), acolhe o reconhecimento fotográfico:

A pessoa cujo reconhecimento se pretender tem direito a constituir defensor para acompanhar o procedimento de reconhecimento pessoal ou fotográfico, nos termos da legislação vigente.

É possível, portanto, realizar reconhecimento de pessoas por meio fotográfico ou audiovisual, desde que algumas providências sejam adotadas (claramente adaptando-se ao determinado no art. 226, do CPP e atendendo a urgência que cerca uma investigação criminal). São elas:

  • Descrição prévia da pessoa a ser reconhecida (226, I);
  • Imagem colocada junto de outras imagens semelhantes – “banco de dados” ou “álbum de suspeitos” (226, II);
  • Confecção de auto pormenorizado subscrito por duas testemunhas (226, III).
  • Como qualquer ato produzido pela Administração Pública policial, o reconhecimento fotográfico embora não se rendendo às formalidades proibitivas à realidade brasileira, deve vir à tona com a seriedade exigida por qualquer ato administrativo, adequando-se, minimamente, às exigências do art. 226, do CPP, como indicadas acima, ou a algum padrão razoável, de modo a impedir abusos. Atendidas essas exigências jurídicas mínimas, obtém-se um elemento informativo válido e efetivo para os fins estabelecidos em lei.

    Considerações finais

    A discussão em torno da matéria remete, sem apelo, à expressão latina atribuída a Horário: Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus, ou seja, a montanha pariu um ridículo rato. O reconhecimento de pessoas por meio fotográfico ou audiovisual é admissível em nosso ordenamento, desde que sejam observadas mínimas exigências jurídicas que garantam a credibilidade do elemento informativo ou da prova penal para fins de responsabilização penal (e evitem violações aos direitos e garantias constitucionais do investigado). É possível, claramente, estabelecer um compromisso jurídico ou uma ponte hermenêutica entre o garantismo penal (no que tem de legítimo e jurídico) e a premência de garantir segurança pública à população brasileira com os diminutos recursos (humanos, logísticos, materiais etc.) disponibilizados à polícia brasileira e aos mecanismos de controle (com especial atenção ao controle externo da atividade policial, a cargo do Ministério Público). 

    A ideia formulística do Direito, o seu excesso, pode desnaturalizar os fins substanciais ou os interesses superiores da sociedade (segurança pública e enfrentamento da violência criminal). E como diz Antoine Garapon (1999, p. 53), numa clara censura ao garantismo irresponsável e leviano, “o excesso de defesa, pode paralisar qualquer tomada de decisão; o excesso de garantia pode mergulhar a justiça numa espécie de adiamento ilimitado”. Essa desconexão social de certos entendimentos judiciais pode alimentar novas formas de delinquência e de violência, ou fazer recrudescer a atual criminalidade. 

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    CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 4a. edição. São Paulo: Saraiva, 1999.

    FREUND, Julien. ¿Qué es la política? Tradução de Sofia Nöel. Buenos Aires:Editorial Struhart, 2003.

    GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro:Revan, 1999.

    JEANS, James. Física e filosofia. Tradução de Alberto Candeias. Lisboa:Seara Nova, 1944.

    WHITEHEAD, Alfred North. El concepto de naturaleza. Tradução de Jesús Díaz. Madrid:Editorial Gredos, 1968.

    João Gaspar Rodrigues

    João Gaspar Rodrigues

    MESTRE EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (PORTUGAL). ESPECIALISTA EM DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL PELA UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES/RJ. PROMOTOR DE JUSTIÇA DO MINISTERIO PUBLICO DO AMAZONAS.

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