CompartilharComentarSiga-nos no A A
ADC 49 e a modulação de efeitos: Distinções cruciais entre débito e crédito do ICMS na aplicação do precedente nos casos ajuizados após o julgamento do mérito pelo STF.
Muitos contribuintes discutem ou discutiam acerca da não incidência do ICMS nas operações de simples transferência entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte. O direito em questão se apoia na correta aplicação das normas infraconstitucionais, respeitando o limite material estipulado pelo art. 155, inciso II, da CF/88, bem como, na súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça, ratificada no Tema 259 do STJ.
A controvérsia foi objeto de deliberação pelo STF, que, em 14/8/20, estabeleceu a tese de que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia” – tema 1.099 da repercussão geral. Além disso, o STF enfrentou novamente essa questão no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade 49, reconhecendo, em 19/4/21, a inconstitucionalidade do art. 12, inciso I, da LC 87/96 (lei Kandir).
Todavia, a matéria discutida na referida ação declaratória foi objeto de modulação em embargos de declaração julgados em 19/4/23, determinando que sua eficácia se daria de forma prospectiva, a partir do exercício financeiro de 2024. Dessa forma, caso os Estados não disciplinassem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular, seria reconhecido o direito dos contribuintes a realizar tal transferência.
Porém, da leitura da decisão que implementou a modulação, restaram dúvidas se a modulação seria a fim de determinar pela não incidência do ICMS, sem qualquer ajuste de efeitos temporais, ou, se isso seria aplicável tão somente para a possibilidade ou não de transferência dos créditos nessas operações.
E isso decorre do fato de que da leitura do voto condutor do acórdão que julgou os embargos de declaração na ADC 49, onde se depreende que as razões de decidir do ministro Edson Fachin foram:
- A transferência interestadual da mercadoria entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é equivalente a mera movimentação física, não afetando a conclusão do mérito do processo;
- A decisão de mérito não restringe o direito do contribuinte aos créditos na aquisição das mercadorias que vierem a ser transferidas, mantendo assim os créditos da operação anterior em respeito ao princípio da não cumulatividade, inviabilizando assim qualquer estorno de crédito;
Destrinchando a decisão em comento, podemos identificar que os fundamentos se deram com base no entendimento de que a decisão não afronta o princípio da autonomia dos estabelecimentos, pois restou preservada a competência dos estados da federação por não repercutir em deveres instrumentais, reconheceu-se, todavia, a presença dos requisitos da segurança jurídica que justifiquem a modulação de efeitos. Neste aspecto o ministro Facchin ponderou que diante da necessidade de preservação as operações praticadas pelos contribuintes, especialmente aqueles beneficiados por incentivos fiscais e ante o risco de revisão de operações de transferências realizadas no passado (existência de precedente no âmbito de matérias que versem sobre o ICMS na Corte onde foi aplicada modulação para postergar os efeitos da decisão, como na ADIn 4171).
Com isso, positivou-se regra processual de modulação da decisão de mérito da ADC 49 em que verificamos comando impositivo expresso, contendo dois núcleos semânticos na parte final do voto:
Primeira parte (antecedente): “No cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal, julgo procedentes os presentes embargos de declaração para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito.”
Segunda parte (consequente): “Exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos.”
Conforme acima transcrito, a conclusão do relator foi a fim de acolher a modulação de efeitos postergando a eficácia da decisão, exclusivamente, no que toca a possibilidade de os contribuintes livremente transferirem os créditos de ICMS verificados na origem quando da aquisição das mercadorias pelo estabelecimento remetente. Tal conclusão se extrai diante da estrutura linguística e lógica do texto de enunciação da regra jurídica positivada1, senão, vejamos.
A estrutura do discurso é claramente dividida em duas partes, onde a primeira trata da situação fática a ser implementada (efeitos futuros) e a segunda da condição a ser verificada, ou seja, exaurido o prazo sem que sobrevenha regulamentação acerca da transferência de crédito (afinal, acerca do débito do imposto o tribunal já se posicionou no julgamento de mérito).
A clareza na separação temática indica um aspecto comum em comandos judiciais, separando as consequências jurídicas em duas partes, mediante uso de uma conjunção condicional – onde a segunda parte apenas se aplica se essa condição anteriormente consignada se verifica. O uso de sujeitos de direitos e objetos de efeito, em que apesar da primeira parte especificar uma regra temporal, a segunda foca em uma situação especifica atinente aos créditos.
Ou seja, o foco (núcleo) é a transferência de créditos.
Em termos de argumentação lógica, conclui-se que existe uma relação de condicionalidade, onde a condição imposta ao Estado é a regulamentação do ponto controvertido e que incide indiretamente no mérito do processo (que á a transferência de créditos), ao passo que verificada essa situação, entra em vigor a regra temporal “pró-futuro”. Por conta disso, para que haja coerência sistêmica, se a modulação fosse aplicada de maneira indiscriminada, incidirá em situações para as quais não necessitaria o Estado de um período de adaptação e regulamentação, situação evidentemente distinta da que se discute nos autos.
Finalmente, a especialidade do consequente é específica à questão da transferência do crédito, delimitando o campo de aplicação dessa modulação a essa situação em particular.
Ou seja, a modulação apenas se implementou para garantir e evitar eventual glosa dos créditos tomados pelos contribuintes no período anterior ao da decisão em comento, haja vista que o STF já possuía entendimento favorável à não incidência do ICMS desde o julgamento do Tema 1.099 em 15/8/20.
A aplicação indiscriminada da modulação em discussão resultaria em evidente afronta ao comando inserido no art. 926 do CPC, que prevê a necessidade de uniformização da jurisprudência dos tribunais com a finalidade de mantê-la estável, íntegra e coerente, com a observância dos precedentes firmados pelo STJ e STF. Esse dispositivo está em perfeita consonância com o princípio da segurança jurídica e da uniformidade da aplicação do direito, conforme preconizado no art. 102 da CF/88, que atribui ao STF o papel de guardião da Constituição.
Decisões vinculantes, especialmente em controle concentrado de constitucionalidade, devem ser respeitadas, uma vez que possuem força obrigatória para todo o Judiciário, conforme reforçado no art. 103-A da Carta Magna, ao instituir a súmula vinculante por exemplo.
É dizer que a aplicação de maneira não conforme ao precedente invocado seria equivalente à inobservância do precedente ou sua aplicação para caso concreto para o qual não se poderia invocá-lo, afrontando de igual modo o art. 927 do Estatuto Processual vigente. Tal situação gera uma grave violação ao princípio da legalidade e à necessidade de observância dos precedentes, uma vez que o art. 105 da CF/88 confere ao STF, competência para orientar e vincular os demais tribunais e juízos de primeira instância.
A pertinência na prevalência de uma aplicação distinta do precedente formado na ADC 49, conferindo efeitos práticos distintos para o débito de ICMS e o crédito nas operações entre estabelecimentos do mesmo contribuinte vem sendo privilegiada por julgadores no âmbito do próprio TJSP.
Em tais ocasiões, pesou em favor dos contribuintes o fato de que a não incidência do ICMS em meras transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte já era tratado através da súmula 166 do STJ2 e recentemente no Tema 1.0993 do STF. Já em relação a possibilidade de transferência dos créditos, este aspecto é decidido em separado, conferindo o direito a partir de 2024, mas sem limitar a não incidência do imposto antes desse marco temporal.
Citamos a decisão de mérito proferida na Apelação/Remessa Necessária 1001502-4.2022.8.26.0047, mantida posteriormente em sede de juízo de retratação que foi assim decidida:
“Verifica-se que o E. STF modulou os efeitos da decisão da ADC nº 49, a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. Note-se que a decisão de mérito da inconstitucionalidade ocorreu em 19/04/2021 (acórdãode mérito da ADC 49), tendo sido a presente demanda ajuizada posteriormente, em 03/03/2022. Assim, em face do decidido pelo STF nos embargos de declaração da ADC 49, acima citado, bem como da data de ajuizamento da presente demanda, não se cogita da possibilidade de transferência de créditos antes de 2024.Tal transferência só poderá ocorrer a partir de 2024, caso os Estados não regulamentem a questão por convênio do CONFAZ até lá.” (Desembargador relator Cláudio Augusto Pedrassi)
Importante mencionar que no caso citado, a decisão que aplicou a modulação exclusivamente para surtir efeitos para limitar a transferência de créditos foi mantida no STF nos autos do RE 1492237 de relatoria da ministra Carmén Lúcia ante a inexistência de interesse recursal na pretensão da Fazenda, por compreender que o critério aplicado para distinguir os efeitos da modulação em relação ao débito e crédito do ICMS nas operações em comento foram corretos.
Infelizmente, igual entendimento, aplicando ou validando a distinção das situações que requerem a modulação, diversos casos vem sendo julgados pelo STF para prover o recurso da Fazenda para aplicar integralmente a modulação, sem qualquer ressalva (STF – RE: 1496926 SP, relator: FLÁVIO DINO, Data de Julgamento: 21/10/24, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 21/10/2024 PUBLIC 22/10/2024; STF – RE: 1494574 SC, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 14/10/2024, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 23-10-2024 PUBLIC 24-10-2024); STF – ARE: 1518412 PA, Relator: CRISTIANO ZANIN, Data de Julgamento: 15/10/2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15/10/2024 PUBLIC 16/10/2024;STF – RE: 1513764 SP, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 15/10/2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15/10/2024 PUBLIC 16/10/2024; STF – RE: 1505428 TO, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 11/10/2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 14/10/2024 PUBLIC 15/10/2024; STF – RE: 1516752 SP, Relator: NUNES MARQUES, Data de Julgamento: 01/10/2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 08/10/2024 PUBLIC 09/10/2024).
Conforme bem observado no artigo “Transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo titular – O dia seguinte da modulação de efeitos na ADC 49” a modulação serviu a proteger os contribuintes que eventualmente realizaram o destaque (débito) e se beneficiaram na origem (crédito), quanto para a Fazenda, a fim de evitar o ajuizamento de demandas pleiteando o indébito tributário nessas hipóteses. Entendimento diverso, resultaria no desvirtuamento da finalidade da técnica modulatória.
No mesmo sentido, a modulação não pode afetar operações já praticadas, diante da melhor compreensão e interpretação do acórdão que modulou os efeitos na ADC 49 (nesse sentido são as pertinentes conclusões colhidas do artigo de Lucas Zapater Bertoni.4
Ou seja, qualquer aplicação e interpretação da modulação no sentido de limitar o direito dos contribuintes de não se submeterem ao destaque do ICMS em operações de transferências de mercadorias, afronta a segurança jurídica, estabilidade da jurisprudência dos tribunais, e o princípio da não-cumulatividade assegurado no art. 155, II, §2º, “I” da CF/88 – o qual deve ter sua efetividade garantida e de maneira plena5 – visto que desde o julgamento do Tema 1.099, a temática havia sido pacificada (isso sem falar da súmula 166 do STJ e diversos precedentes daquela corte nesse mesmo sentido).6
__________
1 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação”. MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil. PERELMAN, Chaim. Tratado da Argumentação. MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law: A Theory of Legal Reasoning.
2 “SÚMULA 166 do STJ: “Não constituiu fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do contribuinte”.
3 Tema nº 1099: Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.
4 “Reflexões e incertezas do julgamento da ADC 49: Quanto aos créditos, e agora? – disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/387680/reflexoes-do-julgamento-da-adc-49-quanto-aos-creditos-e-agora – acessado em 29/10/24)
5 “A regra da não-cumulatividade trazida pela Constituição da República não consubstancia mera sugestão, que o legislador ou a Fazenda Pública poderão, ou não, acatar, mas um princípio constitucional de eficácia plena, devendo ser observado, indistintamente, pelo contribuinte, pelo legislador, e pela Fazenda Pública Estadual.” CARRAZZA, Roque Antonio. 2015. p.87).
6 “Em suma, está se criando precisamente o cenário de macrolitigância fiscal que a Corte quis evitar com a modulação na ADC 49. Assim, a melhor interpretação da modulação determinada na ADC 49 é a de que devem ser “preservadas” as situações consolidadas – tanto do contribuinte que destacou e recolheu o ICMS quanto do contribuinte que não destacou e não recolheu o ICMS. Na prática, isso significa que ações que visam à preservação de situações consolidadas, simplesmente para afastar cobranças de ICMS, mesmo que ajuizadas após 19 de abril de 2021 devem ser julgadas procedentes, já que alinhadas à ADC 49. Esse raciocínio de preservação de situações já consolidadas foi adotado na modulação de efeitos determinada na ADI 5659, quando se declarou a constitucionalidade da incidência de ISS sobre o software e se reconheceu a validade dos pagamentos feitos no passado, tanto a título de ISS quanto de ICMS. É bem verdade que o STF foi mais expresso naquele procedente sobre o conteúdo da modulação. Contudo, não se pode usar a modulação de efeitos ADC 49, feita em prol da segurança jurídica, para gerar insegurança e prejuízo a contribuintes que confiaram em décadas de jurisprudência estável. Uma análise detida dos fundamentos da ADC 49 não deixa dúvidas: não é cabível qualquer cobrança retroativa de ICMS sobre transferências. É nesse sentido que a modulação deve ser modulada.” (PEROBA, Luiz Roberto. GÂNDARA, João Rafael. in Impossibilidade de cobrança retroativa de ICMS nas transferências de mercadorias.
Wesley Albuquerque
Advogado e sócio na Ribeiro & Albuquerque Advogados Associados. Direito Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Dir. Tributário pelo IBET-SP.