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A 1ª seção do STJ decidiu que o cânhamo industrial – uma variedade da cannabis com teor de THC inferior a 0,3% – não pode ser classificado como substância proscrita pela legislação antidrogas, uma vez que sua composição o torna inapto para a produção de drogas.
A decisão, que aborda o tratamento normativo do cânhamo industrial, autoriza a concessão de licenças sanitárias para o plantio, cultivo, industrialização e comercialização dessa variedade para fins medicinais e/ou farmacêuticos, desde que estejam observadas as regulamentações a serem editadas pela Anvisa e pela União.
De acordo com a decisão, os artigos 1º e 2º da lei de drogas (11.343/06) não englobam o cânhamo industrial como substância proscrita, visto que este possui teor de THC (tetraidrocanabinol) inferior a 0,3% e, portanto, não tem capacidade de produzir efeitos psicoativos que possam levar à dependência.
A decisão foi fundamentada pela convenção internacional e pela lei nacional sobre entorpecentes, as quais permitem ao Estado brasileiro estabelecer políticas públicas de controle sobre todas as variedades de cannabis, inclusive o cânhamo industrial.
A 1ª seção também afirmou que, embora o Judiciário não possa atuar diretamente na autorização de usos industriais não medicinais do cânhamo, como têxteis ou alimentos, é função da Anvisa e da União determinar as diretrizes para regulamentação dessa planta com fins restritos aos segmentos médico e farmacêutico.
A decisão também delega à Anvisa e à União a responsabilidade de adotar medidas normativas para prevenir desvios e garantir que a destinação do cânhamo industrial permaneça dentro dos limites legais. Essas medidas incluem verificar a idoneidade das empresas envolvidas, garantir o controle da cadeia produtiva e proteger a segurança pública.
O colegiado fiou o prazo de seis meses para a regulamentação do tema.
O caso
Os ministros analisam o IAC 16, instaurado em março de 2023 no colegiado. Em abril deste ano, o STJ promoveu audiência pública sobre o tema, ocasião em que foram ouvidas pessoas físicas e jurídicas de todos os segmentos, para que pudessem contribuir com informações técnicas, avaliações e opiniões para que chegassem à sessão de julgamento do processo.
Até a solução da controvérsia, foi suspensa a tramitação de todos os processos sobre o tema no país.
O processo partiu de uma demanda judicial da DNA Soluções em Biotecnologia, empresa de pesquisa biológica que pretendia importar sementes de cânhamo com THC de até 0,3%. Segundo a empresa, a cannabis tratada como droga tem THC em torno de 20%.
O pedido foi negado na Justiça paulista e, em recurso ao STJ, a empresa apontou que esse tipo de cultivo não tem enquadramento na Convenção Única sobre Entorpecentes ou restrições nos acordos das Nações Unidas ou em leis de estados internacionais que permitem o cultivo da planta.
Outro argumento é que a Anvisa já permite a importação de extrato de CBD por pessoas jurídicas que pretendem fabricar e comercializar produtos derivados de cannabis para fins medicinais, e as mercadorias são vendidas em território nacional sob valores elevados em decorrência dos entraves necessários à importação dos insumos.
Para a empresa, é um contrassenso permitir a importação de canabidiol extraído do plantio de cannabis no exterior para a fabricação de medicamentos e, ao mesmo tempo, vedar o cultivo da planta no Brasil a partir de sementes importadas certificadas.
A companhia entende que há conflito de competência quando a discussão fica com a Anvisa, uma vez que quem deveria regular essa questão é o ministério de Agricultura.
A ação teve parecer favorável do MPF.
STJ autoriza produção de maconha medicinal e fixa prazo para regulamentação.(Imagem: Freepik)
Voto da relatora
Ao resumir seu voto, que tem mais de 50 páginas, a ministra Regina Helena Costa destacou, inicialmente, que a parte autora postula não somente o direito de cultivar a planta e comercializá-la com finalidades medicinais e farmacêuticas, mas também para destiná-la a outros segmentos industriais, distintos da área da saúde, e questiona atos da Anvisa que proíbem genericamente a importação e cultivo da planta, independentemente da variedade e da concentração de THC.
Contudo, não obstante as inúmeras funcionalidades e o grande potencial comercial do cânhamo como commodity, a possibilidade de se cultivá-la no Brasil para atender finalidades industriais diversas é questão cuja análise é vedada neste processo, visto que, além de tal análise depender da elaboração de políticas públicas especificas, econômicas ambientais ou agrícolas, afetas exclusivamente ao Legislativo, a regulamentação infralegal ora contestada se restringe a aspectos medicinais e farmacológicos da planta, decorrência lógica das competências legais específicas da Anvisa.
Por isso, frisou que o cerne do debate repousa sobre a competência sanitária da Agência, voltada a prevenir, diminuir ou eliminar riscos à saúde ou ao meio ambiente.
“Embora o pedido autoral denote larga amplitude, o exame da controvérsia deve se circunscrever à análise da viabilidade de se importar sementes de cânhamo e seu posterior cultivo para atender somente demandas envolvendo direito à saúde, cuja proteção é causa de pedir da ação.”
A ministra também alertou que a questão em debate não versa sobre descriminalização da maconha, tampouco sobre o cultivo de todas as variedades da planta e para quaisquer fins, não havendo qualquer discussão sobre o uso recreativo da cannabis.
Em seguida, ela explicou os tipos de cannabis com suas diferenças, e citou estudos e pesquisas que indicam o potencial terapêutico de medicamentos derivados da planta, citando mais de 20 enfermidades nas quais é possível se beneficiar desse tipo de substância.
A ministra ainda citou que a distribuição pública dessa medicação onerou a União e os entes federados envolvidos em quase R$ 176 milhões entre 2015 e a primeira metade de 2023, com custo mensal de até R$ 15 mil por paciente.
“Só no Estado de SP, a previsão é de que sejam necessários R$ 416 milhões para atender, em cinco anos, apenas duas síndromes, perfazendo uma média superior a R$ 80 milhões por ano.”
Segundo dados da Anvisa, entre 2015 e 2024 já foram expedidas 326 mil autorizações excepcionais de importação, por pessoa física, para uso próprio, a revelar a dimensão da demanda.
No cenário internacional, Regina Helena citou que o Brasil está defasado em relação à regulamentação de praticamente todo o mundo, visto que o uso terapêutico da cannabis é consentido em vários países. E citou, como exemplo, que 38 dos 50 estados americanos permitem o emprego medicinal da planta. Em Israel, a prática é autorizada desde a década de 90. Na Europa, 23 nações adotam a cannabis medicinal, entre outros países citados pela relatora.
Após extenso voto, a ministra propôs a fixação das seguintes teses:
(i) Nos termos dos artigos 1º, parágrafo único, e 2º, caput, da lei 11.343/06, não pode ser considerado proscrito o cânhamo industrial (hemp), variedade da cannabis com teor de THC inferior a 0,3%, porquanto inapto à produção de drogas, assim entendidas substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência;
(ii) de acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto 54.216/1964) e a lei de drogas, compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da cannabis, inclusive o cânhamo industrial, não havendo atualmente previsão legal e regulamentar que autorize seu emprego para fins industriais distintos dos medicinais e/ou farmacêuticos, circunstância que impede a atuação do Poder Judiciário quanto a esses outros aspectos;
(iii) à vista da disciplina normativa para os usos medicinais e/ou farmacêuticos da cannabis, as normas expedidas pela Anvisa proibindo a importação de sementes e o manejo doméstico da planta devem ser interpretadas de acordo com as disposições da lei de drogas, não alcançando, em consequência, a variedade descrita no item 1 das teses (o cânhamo industrial cujo teor de THC é inferior a 0,3%);
(iv) é lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial por pessoas jurídicas para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos, atrelados à proteção do direito à saúde, observada a regulamentação a ser editada pela Anvisa e pela União, pelos seus diversos ministérios;
(v) em sua atuação normativa, incube à Anvisa e a União, no exercício da discricionariedade administrativa, avaliar a adoção de diretrizes destinadas a obstar o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas, bem como garantir a idoneidade das pessoas jurídicas autorizadas a exercerem essa atividades, sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.
Após discussão entre os ministros, foi fixado, ainda, o prazo de seis meses, a partir da publicação do acórdão, para que a União e a Anvisa atualizem a regulamentação sobre o tema.
Sustentações orais
Falando pela DNA, o advogado Arthur Ferrari Arsuffi afirmou que a luta pela possibilidade do plantio do cânhamo industrial se iniciou muito antes do IAC – é uma luta que começou com mães e pais buscando soluções a problemas graves de seus filhos, e que aos olhos da iniciativa privada é uma grande oportunidade, não só por questões de humanidade, mas também mercadológicas.
“É um tema polêmico, mas não deveria ser. Não estamos diante de nenhum tema que trata de droga, de nenhum tema ligado à pauta de costumes. A gente está diante efetivamente de um tema relacionado à saúde pública, a economia para os cofres públicos, à dignidade da pessoa humana e livre iniciativa da sociedade civil brasileira.”
Quanto ao mercado da cannabis, o advogado observou que há, hoje, duas resoluções da Anvisa: a 660, que permite a importação direta de medicamentos para pacientes, e a 327, que permite a produção e manufatura desses medicamentos em território nacional e comercialização em farmácias, desde que devidamente prescrito.
“Apesar da produção e comercialização serem livres em território nacional, apesar de o SUS custear medicamento a centenas de milhares de pacientes, há uma proibição, a meu ver contrária ao ordenamento jurídico, de produção dos insumos desses medicamentos no Brasil.”
A proibição, explicou o advogado, decorre de artigo resolução 327 da Anvisa que diz que a matéria prima desses medicamentos não pode ser obtida em território nacional, mas sim importada e processada.
“Não há racionalidade, nem econômica e nem jurídica em se proibir que o Brasil, uma potência do agronegócio, produza seus próprios insumos (…) É um prestígio ao mercado internacional, em detrimento do mercado interno”.
Roque Rodrigues Lage, falando em nome da União, destacou que não há hoje, no Brasil, autorização para plantio de cannabis em escala industrial no território nacional, independentemente da espécie, visto que é uma planta classificada como psicotrópico.
“Como se trata de uma planta potencial produtora de THC, com propriedades psicotrópicas, a regulação e fiscalização sobre a exploração deve ser rígida, e ficar a cargo dos poderes Legislativo e Executivo.”
Ele ainda afirmou que o pedido é de autorização ampla, não a particulares, e envolve toda uma cadeia produtiva para produção de medicamentos e demais subprodutos, que seria “matéria eminentemente política”.
Aurélio Rios, falando pelo MPF, afirmou ser importante destacar que o IAC não envolve aspectos criminais do plantio – posse e uso de substâncias entorpecentes proibidos por lei. “Não estamos trabalhando, aqui, em nenhum aspecto sobre a descriminalização de drogas, em particular da Cannabis sativa. E tampouco significa uma concessão implícita de HC preventivo a quem faz uso recreativo de derivados da referida planta.” O tema, frisou, é bem mais restrito.
“É importante dizer que é possível importar produtos importados de cannabis no Brasil com baixo teor de THC, mas o plantio continua proibido. (…) Entende-se, nesse contexto, especialmente para fins terapêuticos, que o plantio controlado no âmbito nacional contribuirá sim para a redução dos custos de produtos derivados de cannabis sativa, tendo como efeito indireto a diminuição do grau de judicialização hoje.”
Como amici curiae, André Estevão falou pelo MP/MG. Ele afirmou que, segundo o professor e pós-doutor Derli, da Universidade Federal de Viçosa, sementes importadas sem THC podem passar a produzir, no Brasil, uma planta com teor mais alto de THC.
Além disso, o plantio a partir de sementes também poderia resultar, por obra de animais e forças da natureza, uma plantação muito além dos limites eventualmente autorizados pela Corte.
Afirmou, por fim, que, ao ouvir dois professores de medicina da área de psiquiatria, Ronaldo Laranjeira e Frederico Garcia, eles afirmaram que não haveria comprovação cientifica de que o canabidiol é positivo para a saúde – apenas para uso na epilepsia.
A advogada Margarete Santos de Brito falou em prol da Apepi – Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal. Ela destacou que foi levada ao tema em razão de sua filha Sofia, que tem crises convulsivas. Em 2013, eles descobriram a cannabis como alternativa terapêutica e, nesses dez anos, estiveram presentes nos três Poderes para falar do cultivo da cannabis em solo brasileiro.
Ela pontuou que, no Legislativo, há cerca de 29 projetos de lei em andamento nas duas Casas. No Executivo, já estiveram em reuniões com vários ministérios, no palácio do Planalto e na Anvisa.
Ela afirmou que a Apepi atende hoje cerca de dez mil pacientes, muitos gratuitamente, e não há nenhuma proteção jurídica. Há 70 funcionários registrados, e uma fazenda de produção de cannabis no interior do RJ com cerca de 5 mil plantas em solo.
Citou, ainda, o decreto 5.912/06, que regulamentou a lei de drogas (11.343) e prevê que o ministério da Saúde deve autorizar o plantio, cultura e colheita de vegetais que possam ser extraídos de drogas para fins medicinais.
Lucas Manoel Dantas falou pela Maria Flor – Associação Canábica em Defesa da Vida, que atende mais de dez mil pacientes oferecendo terapias.
Ele afirmou que a questão chega ao Tribunal por uma omissão legislativa. “É uma incoerência importarmos insumos, quando temos solo agrícola bom para produzir a cannabis medicinal aqui.”
Disse, ainda, que é paciente canábico, e que se comprasse seu medicamento na farmácia, gastaria R$ 7.500 por mês.
Fernanda Rodrigues Reis falou em nome do Sindicato dos Médicos no Estado do Paraná. Ela citou estudos realizados por professores e alunos da Escola Paranaense de Direito em parceria com estudantes de medicina para contribuir com o debate. Ela pontuou que o cânhamo é seguro, não tóxico, e auxilia diversas doenças, e a ausência de sua regulamentação no Brasil limita a expansão econômica e social do país, que é experimentada por outros países.
Anelise Santos de Freitas falou em nome do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores. Defensora pública no Estado do Pará, Anelise acredita que o sistema de Justiça brasileiro, que possibilitou audiência pública e importante discussão, será o responsável por trazer decisão legítima e resolver a situação para que se tenha “uma política pública que garanta o tratamento de cannabis de forma universal”.
Defesa
O escritório Reis, Souza, Takeishi & Arsuffi Advocacia Empresarial representa a empresa DNA. Para Kiara Cardoso, fundadora da DNA e que realiza tratamento médico a partir do canabidiol, levar a discussão no STJ foi histórico, mas o objetivo da empresa é ter a primeira produção de plantas para suprir a indústria nacional. “A flor cultivada pela DNA poderá ser a base do primeiro canabidiol 100% brasileiro, que vai produzir medicamentos que podem atender o SUS, por exemplo, com custos muito mais acessíveis.”
- Processo: IAC 16