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A LREF – Lei de Recuperação de Empresas e Falência dispõe que “todos os créditos existentes na data do pedido” (art. 49) estão sujeitos à recuperação judicial. Dessa forma, são considerados concursais apenas os créditos que não estão excluídos pelo art. 49 e seus parágrafos e que permanecem pendentes de pagamento na data do pedido de recuperação judicial.
Todavia, o art. 6º, § 13 da lei 11.101/05, trata de uma exceção à aplicação da recuperação judicial aos contratos e obrigações decorrentes de atos cooperativos entre sociedades cooperativas e seus cooperados. O dispositivo é expresso no sentido de que “não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da lei 5.764/71, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica”.
Em linhas gerais, a exclusão dos atos cooperativos da recuperação judicial deve-se à relação única entre cooperativa e cooperado, onde o cooperado é simultaneamente fornecedor e beneficiário das atividades da cooperativa. Com a reforma da lei 14.112/20, créditos decorrentes desses atos foram excluídos da recuperação judicial, argumentando-se que eventuais crises deveriam ser resolvidas internamente, garantindo igualdade entre cooperados.
No entanto, a lei não considera as diferenças econômicas entre atos cooperativos. Enquanto serviços e produção têm características de mercado real, operações em cooperativas de crédito pertencem ao mercado monetário. Essa exclusão pode distorcer o mercado de crédito e impactar processos de recuperação, já que operações financeiras entre cooperativas de crédito e cooperados, mesmo similares às de bancos tradicionais, ficam fora do concurso de credores. Isso pode afetar as taxas de juros e criar problemas, como a seleção adversa na concessão de empréstimos. A medida foi adicionada à legislação de forma rápida e sem debate adequado, sendo vista como um episódio problemático no processo legislativo1.
Nesse contexto, é importante ressaltar que o dispositivo em questão deixa margem para dúvidas, ao não esclarecer adequadamente a exclusão de créditos provenientes de operações com cooperativas de crédito, o que gera incertezas e pode trazer implicações significativas para o mercado financeiro.
Há bastante tempo, discute-se justamente a natureza de instituição financeira das cooperativas de crédito, as quais, embora apresentem uma aparência cooperativista, frequentemente relativizam sua essência, assemelhando-se em muitos aspectos às instituições financeiras tradicionais. Sobre a questão, Marcelo Barbosa Sacramone explica brilhantemente a origem das cooperativas de crédito em parecer elaborado no Agravo de Instrumento 1001207-77.2023.8.13.0000:
[…] as cooperativas de crédito surgiram como resposta à crise econômica, que restringiu o acesso de pequenos comerciantes e produtores rurais ao crédito. Historicamente, sempre se pautaram no espírito colaborativo. Disponibilizavam aos seus associados crédito de curto-prazo a taxas mais acessíveis para financiar os empreendimentos, pois, como tinham conhecimento amplo do mercado local e dos seus agentes, eram capazes de restringir com relativa facilidade a participação na cooperativa aos membros da comunidade com boa reputação e, ainda, outorgavam-se recíproca e ilimitada responsabilidade pelos atos da cooperativa.
[…] Sob a exigência da colaboração e do cooperativismo, de acordo com o art. 2º da lei complementar, impôs-se, para sua caracterização, que “as cooperativas de crédito destinam-se, precipuamente, a prover, por meio da mutualidade, a prestação de serviços financeiros a seus associados, sendo-lhes assegurado o acesso aos instrumentos do mercado financeiro”. 28. Pela interpretação harmônica da lei complementar 130/09 vis a vis as previsões da lei 5.764/1971, é possível concluir que as atividades das cooperativas de crédito devem se voltar à prestação de serviços financeiros pautados pela mutualidade (leia-se, reciprocidade) com os seus associados. 29. Desta forma, as cooperativas de crédito, em desrespeito aos fins para os quais foram essencialmente pensadas, não poderiam atuar com a intenção de aferição de lucros perante os seus associados, sob pena de se caracterizarem como verdadeira instituição financeira e de terem seu regime de privilégios desnaturados.
Note-se, por oportuno, que ao contrário das demais cooperativas, as cooperativas de crédito são diretamente supervisionadas pelo Banco Central do Brasil e estão sujeitas às normas estabelecidas por essa entidade supervisora do sistema financeiro, o que lhes confere um regime regulatório mais rigoroso e alinhado às práticas das instituições financeiras tradicionais.
O debate em questão, sob o viés das normas consumeristas, STJ equiparou as cooperativas de crédito às instituições financeiras2, determinando que o CDC deve ser aplicado a essas entidades, conforme estabelece a súmula 297. Essa equiparação é significativa porque coloca as cooperativas de crédito sob um regime de proteção ao consumidor, alinhando-as às práticas das instituições financeiras tradicionais.
Além disso, o STJ também se debruçou sobre a regulamentação específica das cédulas de crédito rural, comercial e industrial. Essas cédulas são regidas pela lei 6.840/1980 e pelo Decreto-lei 413/1969, que conferem ao CMN a responsabilidade de definir as taxas de juros aplicáveis a essas operações. Contudo, na ausência de regulamentação específica por parte do CMN, aplica-se o limite de 12% ao ano, conforme previsto no Decreto 22.626/1933, conhecido como a lei de Usura3.
Esses entendimentos jurídicos destacam justamente a complexidade do cenário envolvendo as cooperativas de crédito, notadamente na esfera do direito da empresa em crise. Embora a recente exclusão de créditos de atos cooperativos do regime de recuperação judicial tenha sido incluída de forma literal na nova legislação, essa questão exige uma interpretação que vá além do texto normativo.
À vista disso, é necessário adotar uma abordagem sistemática e teleológica, levando em conta a regulamentação específica das operações financeiras e o papel das cooperativas de crédito no mercado financeiro. Esse tipo de interpretação busca harmonizar a legislação recente com a estabilidade e proteção do sistema financeiro, evitando distorções e incertezas que possam impactar negativamente tanto os cooperados quanto o mercado de crédito como um todo.
Defende-se, assim, que a lei 11.101/05, especialmente após as alterações introduzidas pela lei 14.112/20, exige uma análise integrada das legislações que afetam a sua interpretação, particularmente no que se refere às cooperativas e suas operações no contexto de recuperação judicial.
Primeiramente, a lei 5.764/71, que regula as cooperativas no Brasil, estabelece a natureza autossustentável dessas entidades, o que implica em um regime distinto das instituições financeiras. As cooperativas, portanto, não realizam atividades bancárias como as demais instituições financeiras, o que justifica sua exclusão do regime de recuperação judicial para créditos decorrentes de atos cooperativos, conforme a reforma de 2020.
No entanto, as cooperativas de crédito, reguladas pela lei complementar 130/09, são uma exceção. Elas são supervisionadas pelo Banco Central do Brasil e estão sujeitas a normas que as equiparam às instituições financeiras. Isso gera uma tensão na aplicação da LREF, pois as cooperativas de crédito operam de maneira similar às instituições bancárias, o que levanta a questão sobre sua inclusão ou exclusão no processo de recuperação judicial.
Além disso, a lei 6.840/80 e o decreto-lei 413/69 tratam das cédulas de crédito, com regulamentação própria, e determinam que o CMN – Conselho Monetário Nacional tem a responsabilidade de fixar as taxas de juros dessas operações. Na ausência de regulamentação específica, aplica-se a limitação de juros da lei de Usura (Decreto 22.626/1933), que impõe uma taxa máxima de 12% ao ano. Essas normativas demonstram que a legislação que rege as cooperativas de crédito tem especificidades que devem ser consideradas ao se aplicar a LREF, especialmente no que se refere às operações financeiras.
Por fim, o projeto de lei 815/22, em tramitação na Câmara dos Deputados, busca reorganizar as cooperativas, criando uma distinção clara entre as cooperativas gerais e as cooperativas de crédito. Este projeto reconhece as diferenças entre esses tipos de cooperativas e propõe um tratamento jurídico diferenciado, o que reforça a necessidade de uma interpretação mais cuidadosa e sistemática do art. 6º, § 13 da lei 11.101/05.
Nesta senda, portanto, para determinar se o ato realizado foi cooperativo ou de mercado, é necessário analisar os encargos e juros estabelecidos nas operações celebradas entre o credor e o produtor rural em processo de recuperação judicial. Essa análise permitirá distinguir os atos cooperativos, que devem ser tratados internamente pela cooperativa, das operações de mercado, que seguem a dinâmica do sistema financeiro tradicional e, portanto, merecem um tratamento diferenciado no contexto da recuperação judicial.
Nesses termos, ante as justificativas supracitadas, conclui-se que se a atuação associada não proporciona os benefícios sociais que o associado obteria individualmente, o objetivo social da cooperativa de crédito não é alcançado, e a mutualidade é comprometida, já que o lucro passa a ser o foco e o associado não recebe a sobra proporcional da operação.
Assim, se o contrato é celebrado em condições de mercado, sem a observância da mutualidade, a operação deixa de ser considerada um ato cooperativo, e a cooperativa de crédito deve ser tratada como uma instituição financeira. Nesse caso, o crédito deve ser submetido à recuperação judicial, para evitar violação do princípio da isonomia e garantir tratamento igualitário entre créditos de natureza idêntica, como os mútuos bancários.
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1 MATTOS, Eduardo da Silva. Recuperação de empresas [livro eletrônico]: curso avançado em direito, economia e finanças / Eduardo da Silva Mattos, José Marcelo Martins Proença. – 1. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
2 AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA RECURSAL DA PARTE DEMANDADA. 1. Não há falar em ofensa aos arts. 489 e 1022 do CPC/15, porquanto todas as questões fundamentais ao deslinde da controvérsia foram apreciadas pelo Tribunal a quo, sendo que não caracteriza omissão ou falta de fundamentação a mera decisão contrária ao interesse da parte, tal como na hipótese dos autos. 2. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, equiparando-se a atividade da Cooperativa àquelas típicas das instituições financeiras, aplicáveis são as regras do CDC, a teor do enunciado sumular 297/STJ. Precedentes. 3. Agravo interno desprovido. (STJ – AgInt no AREsp: 2198090 SC 2022/0269608-3, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Julgamento: 30/10/2023, T4 – 4ª turma, Data de Publicação: DJe 03/11/23)
3 STJ – AgInt no AREsp: 906114 PR 2016/0102060-2, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 06/10/16, T4 – 4ª turma, Data de Publicação: DJe 21/10/16.
Letícia Marina da S. Moura
Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.