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Os avanços em prol de maior equidade étnico-racial decorrem da luta e da mobilização dos movimentos negros por reconhecimento de direitos e liberdade, historicamente usurpados da população afrodescendente. São esforços coletivos voltados ao aperfeiçoamento das instituições sociais e do sistema de Justiça, visando ampliar os mecanismos de enfrentamento ao racismo e todas as suas formas de violação.
Em nível internacional e nacional, a evolução dos instrumentos normativos estampa o compromisso estatal de combater e corrigir as desigualdades raciais, a exemplo da convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial – decreto 65.810/69, convenção 111 da OIT – Organização Internacional do Trabalho sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, convenção interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância – decreto 10.932/22, estatuto da igualdade racial – lei 12.288/10, leis de cotas no ensino superior – lei 12.711/12 e Agenda 2030 da ONU1, entre outros.
No plano constitucional, o compromisso do Estado brasileiro decorre expressamente da CF/88, que dentre seus princípios e objetivos fundamentais, alçou a dignidade da pessoa humana (art. 1º), a igualdade e a não-discriminação (art. 5º, caput e 3º, IV) como baluartes interpretativos e inspiradores do ordenamento e do sistema judicial.
Tais preceitos garantem o acesso pleno à Justiça e à igualdade de oportunidades, independentemente de raça, além do enfrentamento ao racismo (art. 5º, XLII, CF/88) como um dever do Estado e de todos os indivíduos. Afinal, não é possível conceber a efetiva busca pela igualdade sem considerar a raça enquanto elemento social que forjou a sociedade brasileira, assentando toda a estrutura econômica, política e jurídica, desde os primórdios escravista; e que continuam a perpetuar múltiplas desigualdades até os dias atuais.
Nesse contexto, o papel dos agentes do sistema de Justiça é essencial para o desmantelamento de estruturas de violência e de reprodução da opressão, cuja atuação deve orientar-se por um Judiciário mais plural, democrático, inclusivo e legítimo simbolicamente aos interesses coletivos da sociedade e da população afrodescendente.
Com esse propósito, o CNJ adotou uma série de medidas e programas voltados à eliminação da desigualdade e do racismo estrutural nos ramos judiciais, a exemplo do pacto nacional do judiciário pela equidade racial e do protocolo com perspectiva racial nos julgamentos – resolução 598, de 22/11/24, cuja observância é obrigatória por todo o Judiciário brasileiro.
Trata-se de debate fundamental para a sociedade, em favor da atuação estatal antidiscriminatória, do aperfeiçoamento das instituições e do compromisso com a promoção dos direitos fundamentais. No presente ensaio, detalharemos algumas reflexões sobre o protocolo para o combate à discriminação e os avanços para uma justiça reparatória no sistema brasileiro.
Como ponto de partida, cumpre destacar que, é indissociável à noção de Justiça a efetivação dos conteúdos relativos a direitos humanos, gênero, raça e etnia de forma interseccional. Afinal, não há como avançarmos para uma sociedade que se pretenda livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88), sem erradicar as primitivas formas de violações de direitos, que continuam a perpetrar exclusões de grupos vulnerabilizados, direta ou indiretamente.
Diante de tal constatação, torna-se imperioso que os “sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade da sociedade”2, pois sendo a formação social e política do Brasil marcada por “processos históricos e culturais de discriminação contra a população afrodescendente”3, somente o reconhecimento e a real consideração das diferenças étnico-raciais nos permitirão avançar concretamente para a dimensão de uma igualdade simbólica (ou por reconhecimento).
Isto é, a ausência de diversidade em postos de poder tanto favorece a sub-representação e a marginalização de grupos vulnerabilizados, como propicia a reprodução dos mesmos estereótipos em decisões judiciais e processos deliberativos, em que a própria atividade hermenêutica é reprodutora de preconceitos de raça e cor em tribunais brasileiros4.
Com efeito, não se pode mais tolerar que as formas de opressões tão vívidas no mundo dos fatos continuem a ser reproduzidas no mundo dos autos, sob o argumento falacioso de aparente neutralidade do Direito. Em verdade, argumentos que carreiam a suposta tese de controle subjetivo de decisões judiciais a partir dos protocolos negam a responsabilidade histórica do Estado em reprimir violências e afrontam a própria ordem constitucional.
Em outra oportunidade, ponderamos sobre o Direito e o contexto político como mecanismos reprodutores da opressão, que ora reproduzimos:
O debate acerca da interseccionalidade assume relevância como meio de ruptura da narrativa dominante, que invisibiliza as formas de opressão social e que vê no direito um instrumento adicional para normalizar tais políticas de supressão e de violências cotidianas. […]
Afinal, o discurso de democracia racial ou mito da universalidade carece de real efetividade, pois a formação da estrutura social, cultural e política é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para negros e negras. Um país com mais de 300 anos de escravidão só sustenta esse modelo a partir de uma sociedade conivente e tolerante com a opressão e seus mecanismos bem definidos – física, social, econômica, política – e dispersos na estrutura da sociedade.5
Em verdade, não se pretende o controle subjetivo de decisões, todavia, não há como negar a pretensão dos protocolos em enfatizar perspectivas e lentes de raciocínio sobre os fatos em análise, a partir dos critérios de raça, de classe e de gênero.
No mesmo sentido, SEVERO refere que não “se trata então, de incentivar o subjetivismo, mas de contestá-lo.”; afinal, devem prevalecer os “compromissos que o Direito assume (sem reconhecer que o faz), para então aplicar as regras do jogo com menos ingenuidade, tensionando essa estrutura social opressiva.”6
Portanto, a atuação jurisdicional é primordial não só para impedir a reprodução de novas opressões, mas, especialmente, para concretizar “um novo paradigma constitucional de enfrentamento ao racismo”; e as diretrizes do protocolo com perspectiva racial vêm ao encontro estratégico desta finalidade.
Nesse viés, dentre os diversos objetivos a que se propõe a resolução 598 de 2024 – CNJ, podemos elencar: a) o aprimoramento do tratamento às(aos) jurisdicionadas(os), cuja realidade difere daquela dos julgadores; b) o incentivo à auto-reflexão e escuta qualificada das(dos) jurisdicionadas(os); c) a consideração com igual relevância e peso de todos os relatos do processo na conformação do entendimento; d) o despertar a percepção de julgadores(as) para as condições materiais e simbólicas que incidem sobre os fatos e conflitos em análise; e) expandir os parâmetros normativos das decisões judiciais, com o recurso à legislações internas e internacionais de promoção da equidade racial; f) ampliar a perspectiva de julgadores(as) nos processos sob a sua responsabilidade, acerca do dever do Estado de garantir direitos e erradicar todas as formas de violações; entre outros7.
Nota-se que tais iniciativas possibilitam a intervenção ampliada em políticas judiciárias sobre igualdade racial, prevendo estratégias de aplicação e implementação do protocolo em cinco partes, sendo: i) A introdução, que contém o aparato principiológico e normativo para reprimenda ao racismo e as suas formas de violação; ii) parte conceitual, com as noções teóricas e doutrinárias sobre antidiscriminação, racismo estrutural e interseccionalidades; iii) diretrizes práticas e guia para magistrados e magistradas nas diferentes etapas processuais; iv) questões raciais por ramos do Direito e seus impactos específicos nas searas de família, infância e juventude, criminal, eleitoral, trabalhista e outras; v) estratégias para incorporação das diretrizes, com formação continuada da magistratura e todo o corpo funcional, monitoramento contínuo e supervisão correicional de padrões de discriminação.
Diante das considerações, a materialização do protocolo representa além da construção coletiva do grupo de trabalho, com magistrados e diversos especialistas na temática, também um contributo para a transformação institucional e o fortalecimento de política judiciária atenta aos marcadores sociais de diferença, fruto de desigualdades históricas em desfavor da população negra.
Por derradeiro, com a implementação do protocolo, espera-se que haja impactos significativos na condução dos feitos judiciais e dos processos decisórios para reduzir vieses de discriminação, sejam conscientes ou aparentemente neutros, mas que importam em desrespeitos e violações desproporcionais e injustas, além da reprodução dos estigmas construídos socialmente em detrimento de grupos racializados.
Com efeito, a construção de mecanismos abordando a perspectiva racial traz diversos benefícios em diversas ordens, pois promovem uma comunicação mais inclusiva, levantamento de dados e estatísticas para avaliação e diagnóstico da atividade judicante, bem como para a formulação de políticas na matéria e contribuir para um Brasil mais justo.
1 Agenda 2030 das Nações Unidas – ODS – Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16: “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/16. Acesso em: 17/12/24.
2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução 598, de 22/11/24. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 290/24, de 25/11/24, p. 18.
3 BARROSO, Luís Roberto; OSORIO, Aline. “Sabe com quem está falando?”: Notas sobre o princípio da igualdade no Brasil contemporâneo. Revista Direito e Práxis, vol. 7, 13, 2016, pp. 204-232. Disponível em https://www.redalyc.org/pdf/3509/350944882008.pdf. Acesso em 18/12/24.
4 A respeito, confira o texto em referência: ENÉAS, Iago de Oliveira; ESTRELA, Laís Brenda Soares de Brito; SANTOS, Maiana Pires de Almeida; SANTOS, Sarah Beatriz Mota dos. O Judiciário como fonte reprodutora do racismo: Uma análise do processo hermenêutico nas decisões judiciais. Língu@ Nostr@, Vitória da Conquista, v. 8, n. 2, p. 38 – 54, jul/dez. 2021.
5 LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Desigualdade de Gênero e Raça: Questões Centrais e Discriminações. In: ALMEIDA, Dione; SANTANA, Fabio; FERNANDES, Felipe; et al (org.). Advogando sob as Lentes de Gênero e Raça. São Paulo: Mizuno, 2024.
6 SEVERO, Valdete Souto. Por que protocolos para julgamento com perspectiva racial e de gênero? Diálogo necessário. In: Revista Consultor Jurídico, dez. 2024. P. 5
7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2024, op. Cit., p. 12.
8 ALMEIDA, Dione. Desigualdade de Gênero e Raça no Direito do Trabalho e a Necessidade de um Direito Antidiscriminatório. Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista. 2024. Disponível em: https://abrat.adv.br/textos/desigualdade-de-genero-e-raca-no-direito-do-trabalho-e-a-necessidade-de-um-direito-antidiscriminatorio.pdf
9 CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
10 COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.
11 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução 598, de 22/11/24. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 290/24, de 25/11/24, p. 2-193. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original121813202411266745bc8528359.pdf
12 ______. Resolução 490, de 8/3/23. Diário da Justiça eletrônico [do] CNJ, Brasília, DF, 48/23, de 13/3/23, p. 2-4. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/compilado190722202306076480d56a63031.pdf
13 CORDEIRO, Débora Cristina da Cruz. LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Subalternidade e desvalorização da trabalhadora doméstica brasileira: uma leitura sobre raça, gênero e classe. In: ANABUKI, Luísa Nunes de Castro; CARDOSO, Lys Sobral; (org). Escravidão na interseccionalidade de gênero e raça: Um enfrentamento necessário. Brasília: MPT, 2023. P. 393 – 418.
14 LEÃO, Semírames de Cássia Lopes. Desigualdade de Gênero e Raça: Questões Centrais e Discriminações. In: ALMEIDA, Dione; SANTANA, Fabio; FERNANDES, Felipe; et al (org.). Advogando sob as Lentes de Gênero e Raça. São Paulo: Mizuno, 2024. P. 53 – 60.
15 SEVERI, Fabiana. Julgamentos sob perspectiva: análise sobre armadilhas citadas por Lenio Streck. In: Revista Consultor Jurídico, dez. 2024.
16 STRECK, Lenio Luiz. As armadilhas dos julgamentos sob ‘perspectiva’ propostas pelo CNJ. In: Revista Consultor Jurídico, dez. 2024.
Semírames de Cássia Lopes Leão
Mestra em Direitos Humanos pela UFPA. Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Unama). Especialista em Direito Previdenciário (FBB). Membro da Escola da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT); do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP); e da Seção de Jovens Juristas da Sociedade Internacional de Direito do Trabalho e da Seguridade Social (SIDTSS). Docente e Pesquisadora.