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A obesidade sempre foi um ponto crítico no nosso país. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a obesidade é um dos mais graves problemas de saúde, visto que atinge milhões de brasileiros e traz consequências graves, como hipertensão, diabetes tipo 2, problemas cardiovasculares, gordura no fígado, entre outras condições associadas.
Como se não bastasse, vivemos a era dos doramas, as famosas séries asiáticas, que conquistaram o coração do público brasileiro. No entanto, os padrões de beleza representados pela cultura asiática, têm influenciado na percepção de imagem corporal no Brasil, fazendo com que muitos idealizem os corpos das atrizes dos doramas. Idealização desconectada da nossa realidade cultural, promovendo metas quase inatingíveis quando considerada a saúde e não apenas a estética, gerando ainda um paradoxo, pois enquanto uns buscam atingir padrões irreais de magreza outros lutam contra a obesidade e enfrentam dificuldades em relação ao acesso a tratamentos.
Através do cálculo do IMC – índice de massa corporal, é possível identificar se uma pessoa está no seu peso ideal ou não. Para tanto, basta dividir o peso pela altura, elevada ao quadrado.1
O resultado do IMC indica os marcadores abaixo:
- Abaixo do normal: entre 18,5 ou menos;
- Normal: entre 18,6 e 24,9;
- Sobrepeso: entre 25,0 e 29,9;
- Obesidade grau I: entre 30,0 e 34,9;
- Obesidade grau II: entre 35,0 e 39,9;
- Obesidade grau III: acima de 40.
A maioria dos brasileiros se encontra com sobrepeso ou com algum grau de obesidade, já apresentando quadros de alerta a sua saúde como hipertensão e outras doenças associadas e é nesse momento que se inicia a busca pelos tratamentos que ante a realidade econômica do país nem todos conseguem custear.
Em 2018, a Anvisa aprovou o uso do medicamento Ozempic (semaglutida) para o tratamento do diabetes tipo 2. Recentemente, foi constatado que seu uso também ajuda no controle de peso, e consequentemente, na obesidade, devido à sua ação no sistema de regulação do apetite. Isso gerou uma verdadeira “febre” pela busca do “remédio milagroso”, muitas vezes por pessoas que não necessitam desse medicamento nem para o tratamento do diabetes, nem para a obesidade.
Vale destacar que embora o Ozempic tenha sido aprovado pela Anvisa, o medicamento não está disponível no rol da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar e também não está incluída na RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais e por essa razão, o SUS e os planos de saúde não estão obrigados a fornecer o medicamento, no entanto, é válido lembrar que cada caso é um caso e essa não obrigatoriedade pode ser convertida quando o Judiciário é acionado.
A obesidade é uma doença e, como toda doença, deve ser tratada. A CF/88 impõe a saúde como um direito fundamental, vejamos:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.2
Sendo a saúde um direito fundamental, é dever do Estado garantir o acesso a todos os meios necessários para o tratamento da obesidade. Assim, quando o médico prescreve o Ozempic como tratamento adequado para uma pessoa que sofre com obesidade e esta não possui condições financeiras de arcar com os custos, o medicamento deve ser fornecido pelo plano de saúde ou pelo SUS, nos casos em que o paciente não possui convênio com plano de saúde. Contudo, o alto custo do medicamento tem gerado debates sobre sua acessibilidade, especialmente no âmbito do SUS e dos planos de saúde.
É necessário compreender que a obrigatoriedade que se busca ao ajuizar uma ação para obter o medicamento é em relação à pessoas comprovadamente com obesidade mórbida, cujo IMC indica a obesidade grau III ou aquelas que se encontram com obesidade grau II, observada as suas particularidades.
Uma pessoa com obesidade grau III, ou mórbida, não consegue realizar atividades simples, como respirar adequadamente ou caminhar do sofá até a cozinha, por exemplo. Além disso, a diabetes tipo 2, que frequentemente afeta essas pessoas, é uma das condições tratadas pelo medicamento. Essas razões, juntamente com um laudo médico e a prescrição do medicamento, deveriam ser suficientes para justificar o custeio do tratamento pelo plano de saúde ou pelo SUS.
No entanto, quando se fala em emagrecimento, a sociedade muitas vezes associa a questão à estética, ignorando as graves consequências da obesidade. Esse preconceito gera um impasse, pois, para muitos, emagrecer está associado apenas a “fechar a boca”, desconsiderando a complexidade dessa condição de saúde.
Os pacientes com obesidade grau III, em regra, necessitam de uma cirurgia bariátrica para auxiliar na perda de peso. Contudo, não basta estar com obesidade mórbida para que o procedimento seja realizado e os problemas sejam resolvidos. Na verdade, o processo vai além disso. Antes de passar pela cirurgia bariátrica, é necessário que o paciente se adeque às condições mínimas exigidas, que incluem: avaliação clínica com endocrinologista e cardiologista, avaliação nutricional e avaliação psiquiátrica ou psicológica. Além disso, muitas vezes é necessário perder alguns quilos antes de se submeter à cirurgia.
Ocorre que pessoas com obesidade mórbida geralmente têm grande dificuldade em perder peso. Muitas vezes, devido a comorbidades, fazem uso de medicamentos à base de corticoides, que contribuem para o aumento de peso, dificultando ainda mais a chegada ao peso necessário para a cirurgia. Além disso, há casos específicos em que, por razões de saúde, os pacientes não podem ser submetidos à cirurgia bariátrica e não conseguem emagrecer utilizando métodos convencionais.
A série de reality show Quilos Mortais Brasil, inspirada na versão americana (My 600-lb Life), aborda exatamente esse ponto: a dificuldade de emagrecer e a luta para atingir o peso necessário para a cirurgia, nos casos dos pacientes que podem se submeter a ela.
Os casos judicializados exigindo que os planos de saúde custeiem o medicamento Ozempic têm dividido opiniões entre os Tribunais.
Beneficiário de plano de saúde que buscava obrigar a operadora a fornecer o medicamento Ozempic para o tratamento de obesidade e outras condições relacionadas têm pedido negado. A sentença, proferida pela juíza de Direito Flavia de Azevedo Faria Rezende Chagas, da 2ª vara Cível da Regional Oceânica de Niterói/RJ, considerou que o medicamento, destinado a uso domiciliar, não está incluído no rol de cobertura obrigatória da ANS.3
Enquanto a 2ª Câmara de Direito Privado de São Paulo deferiu o pedido de outro beneficiário de plano de saúde que buscava o mesmo, ou seja, obrigar a operadora a fornecer o medicamento Ozempic para o tratamento da obesidade e outras doenças, o pedido foi acolhido. No acórdão, o relator Álvaro Passos utilizou a súmula 102 do TJ/SP como base para o deferimento, alegando que a escolha do tratamento adequado é de competência exclusiva do médico.4
Com base nos exemplos de decisões citados acima, embora a decisão de negar a obrigatoriedade de o plano de saúde fornecer o medicamento Ozempic ao paciente, sob o respaldo deste não estar incluído no rol da ANS seja acertada, a magistrada pode tomar como base o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF/88, sendo este um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro.
O Poder Judiciário existe para garantir a justiça e a aplicação das leis, protegendo os indivíduos e garantido os seus direitos fundamentais estabelecidos na CF/88, resolvendo assim, conflitos de interesses entre as partes com a aplicação da norma jurídica mais adequada ao caso específico de cada processo, dada as particularidades de cada caso.
Uma pessoa com obesidade mórbida, hipertensão, depressão, diabetes tipo 2 e outras comorbidades decorrentes da obesidade, com prescrição médica para o uso do Ozempic, histórico de consultas médicas e exames, bem como laudos que atestam seu estado de saúde e que já tentou diversos métodos alternativos para emagrecimento sem sucesso, encontra no uso do Ozempic, muitas vezes, uma ponta de esperança para vencer a obesidade.
Buscar no Judiciário o auxílio necessário para ter o direito à dignidade garantido e, ainda assim, ter seu pedido negado é profundamente frustrante, sobretudo porque seu objetivo não é estético, mas alcançar uma vida digna e com qualidade, preservando a saúde.
Em 2023, a Anvisa aprovou o primeiro medicamento injetável para a perda de peso. O Wegovy, também a base de semaglutida, assim como o Ozempic, porém formulado e dosado especificamente para auxiliar na perda de peso em pessoas com obesidade ou sobrepeso.
Embora o medicamento tenha sido aprovado em 2023, sua comercialização no Brasil se deu há pouco tempo e o preço assim como o Ozempic é extremamente elevado, principalmente quando levado em consideração que se trata de um medicamento para tratar a obesidade, logo, usado em forma de protocolo, geralmente não sendo uma única caneta suficiente para o tratamento.
Ainda assim, este medicamento também não está incluído no rol da ANS ou no RENAME, o que consequentemente não obriga o fornecimento pelo plano de saúde ou SUS, cabendo consequentemente uma análise subjetiva entre o histórico do paciente e os princípios norteadores do direito.
Ademais, o Wegovy ainda é pouco conhecido pelas pessoas e sua comercialização no Brasil ainda é escassa, fazendo com que o Ozempic ainda seja, ao menos neste momento o medicamento mais prescrito para o tratamento da obesidade, embora em sua forma “off-label” (fora da indicação original).
Vale ainda destacar, que o rol da ANS é taxativo, logo, os convênios de saúde não estão obrigados a arcar com medicamentos e/ou procedimentos não previstos no rol, no entanto, como toda regra há uma exceção, a obesidade é uma delas, pois não existe no rol um medicamento para esse tratamento, ou seja, embora o medicamento Ozempic não está presente no rol da ANS e consequentemente os planos de saúde não estarem obrigados a fornecer, não existe no rol uma alternativa eficaz, efetiva e segura para o tratamento, devendo, portanto, o judiciário deferir o pedido, desde que comprovada a sua real necessidade.
A lei 14.454, de 21/9/22, aborda justamente esse ponto, vejamos:
Art. 10.
§ 12. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e para os contratos adaptados a esta Lei e fixa as diretrizes de atenção à saúde.
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” (NR)
(grifo nosso)
Assim, considerando que a obesidade é uma doença que traz impacto a saúde, ferindo o principio da dignidade da pessoa humana, bem como os efeitos comprovados do uso do Ozempic como um medicamento “off-label” para o combate a obesidade, sendo este imprescindível a saúde do paciente, torna a obrigação do fornecimento do medicamento aos pacientes que comprovadamente necessitam dele para a sua dignidade, e não conseguem adquirir o mesmo onerosamente por sua própria conta, ante sua vulnerabilidade econômica, torna assim, dever dos planos de saúde e do Estado, fornecer o medicamento a esses pacientes. Ressalto ainda que dificuldades orçamentárias não podem ser um pretexto para negar o direito à saúde e à vida. Preservando assim, os direitos básicos expostos no art. 5° da CF/88.
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1 Calculadora de IMC. Disponível em: https://abeso.org.br/obesidade-e-sindrome-metabolica/calculadora-imc/ – acesso em 25 de novembro de 2024
2 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm – acesso em 25 de novembro de 2024
3 Plano de saúde não terá de fornecer Ozempic para tratar obesidade. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/415755/plano-de-saude-nao-tera-de-fornecer-ozempic-para-tratar-obesidade – acesso em 25 de novembro de 2024
4 PODER JUDICIÁRIO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Registro: 2024.0000003018 – Acórdão. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=17480683&cdForo=0 – acesso em 25 de novembro de 2024
Justiliana Sousa
Advogada. Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela UNINASSAU.