Admissão da pessoa com deficiência na carreira policial militar   Migalhas
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Admissão da pessoa com deficiência na carreira policial militar – Migalhas

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1. Introdução

Historicamente, desde os tempos mais remotos, as pessoas com deficiência são vistas como incapazes de exercer atividades do cotidiano, desde as mais simples às mais complexas e, deste modo, a eugenia predominou em muitas sociedades, sempre na esperança da preleção de cidadãos perfeitos.

Nos primórdios, ao tempo em que o homem se mantinha de caça e coleta, a prática do abandono ou mesmo do extermínio de pessoas que nasciam com alguma espécie de “deficiência” era absolutamente comum e praticada pelas tribos ou qualquer espécie de germe social, portanto, podendo ser entendida como ética, na medida em que o termo está relacionado aos costumes de determinado povo, ou seja, como um produto do próprio tempo.

Na era de Esparta, a educação fundamentava-se na cultura bélica, onde os homens nasciam e eram preparados para as guerras e, deste modo, imprescindível era a necessidade de pessoas categoricamente plenas em suas capacidades físicas, comprovando o desejo pela eugenia humana.

O grande historiador, filósofo e prosador, Plutarco (43 – 126) em uma de suas obras apresentou o seguinte relato:

(…) depois que a criança nascia, o pai não mais era dono dela para educá-la à vontade, mas a levava para certo lugar a ele deputado que se chamava Lesche, onde os mais antigos de sua linhagem residiam. Visitavam eles a criança e, se a achavam bela, bem formada de membros e robusta, ordenavam fosse educada, destinando-lhe nove mil partes das heranças para sua educação; mas, se lhes parecia feia, disforme ou franzina, mandavam atirá-la num precipício (…) (Plutarco, 1985, p. 01). Grifo Nosso. 

Com efeito, as crianças detentoras de qualquer espécie de “deficiência”, não tinham sequer o que hoje é assegurado pelas normas se entende pelo fundamental direito à vida, pois imprescindível era a necessidade de formação de uma “sociedade” de guerreiros, restando praticado a eugenia humana.

Atenas, cidade destacada pela filosofia, política, artes e leis, também vivenciou os tempos voltados à guerra e neste contexto apresentava as mesmas regras até então.

Platão, renomado filósofo representado entre outras pela obra A Política, defendia a ideia no sentido de que a composição da sociedade advinha de cidadãos plenamente saudáveis e capazes de exercer as atribuições do governo e, deste modo, também primando pela eugenia humana, entendia que crianças nascidas com alguma espécie de “deficiência”, deveriam ser expostas e deixadas para morrer. Segundo consta de sua obra:

(…) Estes encarregados levarão os filhos dos indivíduos de elite a um lar comum, onde serão confiados a amas que residem à parte, num bairro da cidade. Para os filhos dos indivíduos inferiores e mesmo os dos outros que tenham alguma deformidade, serão levados a paradeiro desconhecido e secreto. (Platão. Livro V. p. 214) Grifo Nosso.

Embora com o advento da filosofia, é preciso destacar que a cultura grega ainda estava enraizada pelo conhecimento mitológico e, neste prisma, acreditava-se que uma criança com “deficiência” não era pessoa, mas coisa e sucedia de uma espécie de castigo dos deuses na medida em que a ela não era permitida a condição de ser universal e capaz.

Com a Idade Média, durante algum tempo, permaneceu a ideia no sentido que crianças nascidas com alguma espécie de “deficiência” eram fruto de castigo de Deus e, desse modo, estavam possuídos por demônios, devendo ser queimadas.

Entretanto, com o cristianismo inicia-se uma transformação neste pensamento, onde a criança com “deficiência” não reflete mais um castigo divino, portanto, não estava possuída por demônios, logo, deveria ter o direito à vida.

Conforme narra Pessotti:

O cristianismo modifica o status do deficiente que (…) passa de coisa a pessoa. “Mas a igualdade de status moral ou teológico não correspondera, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil, de direitos” (Pessotti. 1984. p. 4).

Na Idade Moderna, foi dissipada por completo a ideia no sentido de que a criança nascida com “deficiência” deveria ser morta. Entretanto, as pessoas com “deficiência” eram absolutamente estigmatizadas, negligenciadas e abandonadas pela sociedade, fruto de um pretérito de valores postos.

No tocante ao acesso ao mercado de trabalho, como regra, também foi mantida a ideia no sentido de que a pessoa com “deficiência” não detinha capacidade suficiente para realizar atividades laborativas, continuando este segmento de pessoas sob o signo do estigma e da discriminação.

Na Contemporaneidade, infelizmente, não é inoportuno afirmar que tal pensamento permanece quando se trata do exercício de inúmeras funções profissionais, o que refletiu, aliás, na necessidade da constituição de legislações que garantam, à pessoa com deficiência, o acesso ao trabalho e, não por isso, ainda assim, todos os dias se verifica, com certa naturalidade, o direito de acesso ao trabalho sendo relegado e esquecido por empresas privadas e órgãos públicos, o que ocorre não apenas por falta de disponibilidade de vagas nos quadros de pessoal para pessoas com deficiência, também por carência de condições aos meios necessários como acessibilidade inadequada, falta de instrumentos e ferramentas de trabalho adaptadas, inexistência de treinamento de pessoal voltado ao relacionamento com a pessoa com deficiência e suas peculiaridades, entre outras.

No tocante ao tema ora analisado, verifica-se, como regra geral, que as corporações sequer admitem a possibilidade de pessoas com deficiência se inscreverem no processo de seleção admissão a carreira policial militar, o que representa o contrário da evolução dos direitos do homem, direitos fundamentais, direitos humanos, princípio da isonomia de oportunidades, princípio da dignidade, princípio do livre acesso ao trabalho, bem como diante dos avanços da tecnologia e dos valores da sociedade, verdadeira discriminação, segregação de um grupo específico de pessoas, a partir de um “pré-juízo”, firmado na ideia pretérita, antiga e anti contemporânea no sentido de que a pessoa com deficiência é absolutamente incapaz para o exercício da vida plena, logo, para a condição de partícipe no auxílio à sociedade por meio do exercício da função policial militar?

Portanto, com outras palavras: É preciso apresentar o problema central a partir do qual se pretende discursar, a saber: Toda pessoa com deficiência é absoluta incapaz de exercer a função policial militar?

Dito de outra forma: É possível que a pessoa com determinada espécie de deficiência possa exercer a função policial militar?

E mais: Qual o momento adequado para se verificar a capacidade da pessoa com deficiência no tocante ao exercício da função policial militar?

Evidentemente, o trabalho não tem a pretensão de encerrar o tema por uma conclusão definitiva, mas de abrir um canal de diálogo aos interessados, dispondo-se as críticas que possam contribuir e solidificar o pensamento, logo, construir o caminho capaz de levar a administração pública ao real entendimento do seu papel perante o importante segmento das pessoas com deficiência que assim como todas as outras devem ter assegurados direitos mais elementares de acesso ao trabalho, especificamente, quanto à possibilidade de concorrer no processo de admissão à carreira policial militar.

Diante deste contexto de razões, com efeito, o presente trabalho visa demonstrar, a partir do direito contemporâneo que trata do tema, que sim, é plenamente possível a pessoa com deficiência participar dos processos de seleção e admissão para o exercício da função policial militar, a partir de políticas afirmativas que contemplem e garantam o direito apresentado.

Ricardo Nascimento Fernandes

Ricardo Nascimento Fernandes

Militar da Reserva, Professor Doutorando em Filosofia do Direito, Advogado Especialista em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito da Pessoa com Deficiência e Concurso Público, Escritor e Palestrante.

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Ana Paula Gouveia Leite Fernandes

Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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