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Tipos de jornadas de trabalho
Na grande maioria dos países, as leis fixam jornadas de trabalho bem extensas e deixam para a negociação direta o limite que melhor se ajusta aos diferentes setores econômicos e tipos de empresa. Por que isso?
A jornada acertada por negociação (contratada) pode ser reduzida ou aumentada com relativa facilidade, ao contrário da jornada legal que exige longas discussões nos parlamentos, em especial, quando é fixada por Constituição, como no Brasil, em que o art. 7º, Inciso XIII fixa em 8 horas por dia e 44 por semana. Por meio de negociações coletivas setoriais, por ramo ou por empresa, a jornada média contratada é de 39 horas por semana. Na grande maioria dos países da América Latina, a jornada legal é de 48 ou 44 horas semanais, mas as jornadas negociadas e contratadas são menores. Assim ocorre também na Europa, América do Norte e Ásia.
A flexibilidade para reduzir ou ampliar a jornada de trabalho é de grande utilidade para atender os diferentes momentos da atividade econômica. Numa época de forte recessão, diminuir a jornada e o salário constitui uma prática inteligente para preservar empregos, o que foi utilizado com sucesso no Brasil, na pandemia do Covid-19, e é utilizado rotineiramente na Alemanha para o mesmo propósito – é o sistema do kurzarbeit.
Em época de forte atividade econômica, é igualmente inteligente ampliar a jornada de trabalho para atender as necessidades do momento – ajustando-se entre as partes a remuneração pelo trabalho extra. Essa flexibilidade é importante também para acompanhar as mudanças nos processos de produção, inclusive as que decorrem do avanço tecnológico.
A fixação de jornadas curtas por lei ou por constituição dificulta os ajustes acima indicados. Um exemplo eloquente dessa disfuncionalidade é a jornada dos bancários que trabalham apenas 6 horas por dia e 30 por semana, com exceção dos que desempenham funções de confiança que seguem uma jornada de 8 horas por dia e 40 semanais.
Este artigo utiliza o caso dos bancários para mostrar como uma regra rígida se torna obsoleta ao longo do tempo e impede a negociação de formas mais adequadas para atender os novos tempos.
O que justificou a legalização de uma jornada de 6 horas por dia? As condições originais prevalecem nos dias atuais? Trabalhadores de atividades semelhantes à dos bancários têm jornada de 6 horas por dia?
Histórico da jornada dos bancários
A jornada de 6 horas diárias no setor bancário tem raízes profundas. Até 1933, os empregados de banco estavam enquadrados na categoria de comerciários que trabalhavam 8 horas por dia, inclusive aos sábados. Mas, desde 1923, eles lutavam para ter uma jornada mais curta. Naquele ano foi criada a Associação dos Funcionários dos Bancos de São Paulo.
Em 1932 eclodiu a primeira greve dos empregados de bancos em Santos, reivindicando melhoria salarial e um “horário higiênico” de trabalho. O pleito se baseava no desgaste físico e mental que envolvia as atividades manuais de recebimento de grandes somas de dinheiro. E mais. O acompanhamento das contas dos clientes era feito pelo manuseio de fichas individuais, preenchidas à mão. O fechamento diário do caixa era uma exigência rigorosa dos bancos. Diferenças de centavos requeriam virar a noite para serem corrigidas. No rol de suas atividades diárias, os empregados dos bancos eram responsáveis também pelo cálculo dos juros pagos aos correntistas e pelo lançamento em livros próprios. Na esteira do pleito pela redução e jornada, eram citadas as más condições sanitárias das agências bancárias, o que estaria determinando uma alta incidência de tuberculose nos seus empregados.
Com base em todos esses argumentos, em 1933, Álvaro Cechin, diretor da Associação dos Funcionários dos Bancos de São Paulo, pleiteou e conseguiu do governo a edição do decreto 23.322 que fixou a jornada diária em 6 horas e 36 horas semanais, incluindo os sábados. O mesmo decreto deu a esses empregados a denominação de “bancários”.
Apesar dessa “conquista”, o decreto não agradou os bancários que pleiteavam trabalhar 32 horas semanais nos moldes da semana inglesa. Em 1943, a CLT repetiu a jornada de 6 horas contínuas e 36 horas semanais, inclusive sábados, mas abriu exceção para os exercentes de cargos de confiança que teriam uma jornada de 8 horas diárias. Em 1952, a lei 1.540 manteve as 6 horas diárias e excetuou os sábados. Em 1969, o decreto-lei 915, terminou com o trabalho aos sábados. Por fim, a própria CLT sintetizou as várias modificações no atual art. 224.
“A duração normal do trabalho dos empregados em bancos, casas bancárias e caixa econômica federal será de 6 horas contínuas nos dias úteis, com exceção dos sábados, perfazendo um total de 30 horas de trabalho por semana.”
I – A obsolescência das velhas regras
Ao longo desse período – quase 100 anos -, a indústria bancária se transformou por completo. Os ambientes de trabalho tornaram-se confortáveis e seguros. A maioria dos bancários trabalha sob ar-condicionado, em móveis ergonômicos e medidas de proteção à saúde e segurança. Os controles de contas e todas as tarefas de rotina passaram para a informática. Muitas operações são realizadas pelos próprios clientes. As agências tornaram-se lojas eletrônicas de serviços financeiros e estão cada vez mais vazias em vista da facilitação do uso das vias eletrônicas. A cordialidade, o bom atendimento, o domínio de informações do mercado financeiro e as atividades criativas passaram a ser a essência do trabalho do bancário.
Na maioria dos países, a jornada legal dos bancários é de 48 horas por semana, com trabalho aos sábados. Mas, com base na negociação, essa jornada é ajustada ou reduzida de acordo com as necessidades e momentos do ano. Essa é a vantagem de se ter um marco legal alto e liberdade para negociar abaixo disso.
O inverso é problemático. No Brasil, as várias tentativas para ampliar a jornada legal dos bancários e legalizar o trabalho aos sábados fracassaram.1 Até hoje, os dirigentes sindicais da categoria insistem na manutenção do “horário higiênico”, alegando a incidência de novas doenças como é o caso da LER, hipertensão, stress, depressão, “burnout”, síndrome do pânico, moléstias cardiovasculares e outras.
Nada indica, porém, que essas doenças sejam específicas dos bancários. Aliás, é impossível comprovar que as condições de trabalho dos bancários de hoje são mais adversas do que as dos mecânicos de uma linha de montagem de automóveis ou dos trabalhadores da construção civil, das vidrarias, das siderúrgicas e dos comerciários dos supermercados, shopping centers, hotéis e restaurantes que trabalham 8 horas por dia e 44 horas por semana.
Mais grave é o fato dessa jornada se manter reduzida num mundo em que vários outros profissionais que exercem atividades semelhantes às dos bancários o fazem por meio da negociação, como ocorre com a grande maioria dos trabalhadores do Brasil: 8 horas por dia e 40, 42 ou 44 horas por semana.
II – As assimetrias trabalhistas
Profissionais de cooperativas de crédito ou de Fintechs, para usar exemplos da mesma área dos bancários, trabalham jornadas normais que, muitas vezes incluem sábados, domingos e feriados, como é o caso, por exemplo, das operações de crédito e financiamento junto às feiras de automóveis, de máquinas agrícolas e leilão de imóveis. Aliás, essas atividades também cabem para os bancários, pois envolvem discussão presencial, minuciosa e customizada com os clientes.
O Poder Judiciário encontrou uma justificativa para a manutenção dessa assimetria que tem pouca base nas características do trabalho desses profissionais. No entendimento majoritário dos tribunais do trabalho, a equiparação entre funcionário de cooperativa de crédito e de banco não é possível devido “diferenças estruturais e propósitos distintos das cooperativas que atendem apenas os seus cooperados e sem finalidade lucrativa, enquanto as instituições bancárias prestam serviços ao público em geral e têm finalidade lucrativa”.
Esse entendimento é bastante questionável, pois as semelhanças são maiores do que as diferenças entre as atividades dos empregados das cooperativas e as dos bancários. Além do que, qualquer pessoa pode ser cliente de um banco ou de uma cooperativa de crédito. E, com relação ao argumento da ausência da finalidade lucrativa, é conhecido o fato de muitas cooperativas registrarem lucros. A sua finalidade não é mais social do que a da Caixa, por exemplo.
O mesmo ocorre com os funcionários das Fintechs. Aliás, neste caso, a assimetria é maior, pois, elas contratam funcionários como pessoas jurídicas e sem restrição de jornada de trabalho. Muito comum são as Fintechs que fornecem crédito direto para os consumidores. Funcionam como financeiras digitais com jornada de 44 horas semanais. Há também as financeiras tradicionais, antes presenciais e hoje digitais, que oferecem crédito direto, para as quais a jurisprudência trabalhista equiparou aos bancários com jornada de 6 horas diárias e 30 semanais.
Como se vê, há um zigue zague na interpretação dessas empresas pela Justiça do Trabalho. Ainda assim, a situação dos bancários é diferenciada em um outro campo: os benefícios concedidos por meio das convenções coletivas aprofundam a referida assimetria. Os bancários usufruem de licenças ampliadas (paternidade e maternidade), adicional por tempo de serviço, gratificações (de função e de caixa), vários tipos de auxílios (creche, refeição, deslocamento noturno e outros), tempo livre para estudo e para atendimento de assistência médica – além de um nível salarial bem acima da média dos demais brasileiros.
Custos das operações e custo do crédito
Sem a maioria desses benefícios, os empregados das cooperativas de crédito e das Fintechs trabalham 8 horas por dia e 40 por semana ou mais. Isso faz uma enorme diferença na equação de produção dessas entidades. Jornadas mais curtas e benefícios mais amplos encarecem sobremaneira a operação dos bancos, o que força o repasse para a taxa de juros dos empréstimos que concedem.
Há ainda as despesas não-trabalhistas que encarecem a operação dos bancos. Estes têm dispêndios elevados para instalar e manter uma infraestrutura gigantesca nas milhares de agências físicas e nos escritórios de apoio (back office) – o que não ocorre com as cooperativas de crédito e Fintechs, muitas das quais, sequer têm agencias físicas. Soma-se a tudo isso a necessidade de os bancos alocarem recursos vultosos para garantir a segurança dos seus clientes nas agências e no transporte de valores.
III – Cautela com a jornada 4 x 3
O caso das jornadas legais dos bancos ilustra os problemas que decorrem de períodos curtos quando há necessidade de se trabalhar mais ou de promover uma simetria de competividade entre entidades do mesmo ramo ou setor.
As tentativas de equalização das jornadas entre os bancos e as diversas entidades financeiras têm enfrentado barreiras no Congresso Nacional. Os parlamentares reconhecem que os bancários trabalham em condições confortáveis e superiores às da maioria dos brasileiros. Apesar disso, poucos se oferecem para mudar a lei atual com receio de perder votos. Esse é o grande problema da fixação de jornadas legais de curta duração. Motivos políticos impedem a sua flexibilização.
O exemplo aqui relatado constitui um sinal de cautela para os que intencionam reduzir a jornada legal de todos os brasileiros de 44 para 36 horas semanais e de 6 dias de trabalho para apenas 4 por semana como pretende a PEC de autoria da deputada Erika Hilton (PSOL/SP), e sem redução de salário.Além da rigidez aqui relatada, os brasileiros teriam quase 200 dias de folga por ano. Ou seja, trabalhariam 45% e descansariam 55% do tempo. Desconheço país que remunere mais o descanso do que o trabalho.
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1 Durante o governo do Presidente Jair Bolsonaro foram propostas várias medidas provisórias para a ampliação da jornada dos bancários (MP 905, MP 1043, MP 1045), mas, foram todas derrubadas pelo Congresso Nacional.
José Pastore
Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP – Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.