Anulação judicial de questão e reclassificação de candidato em certame   Migalhas
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Anulação judicial de questão e reclassificação de candidato em certame – Migalhas

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A primazia entre a forma e o mérito é dilema constante em inúmeras discussões jurídicas. Especificamente na seara dos concursos públicos, o embate ganha novos contornos diante da edição da lei estadual 10.516/24, que dispõe sobre a reclassificação de candidatos, em razão de anulação de questões por decisão judicial, nos concursos públicos realizados no Estado do Rio de Janeiro. A despeito da origem carioca, as reflexões que surgem a partir da norma ultrapassam as fronteiras federativas, na medida em que versam sobre os efeitos de decisões judiciais, a presunção de constitucionalidade das leis e o princípio constitucional da igualdade.

Em linhas gerais, a lei estadual 10.516/24 prescreve que toda vez que uma decisão judicial, com trânsito em julgado, determinar a anulação de uma questão do certame, seja no bojo de ação individual ou coletiva, a banca organizadora é obrigada a atribuir para todos os demais candidatos a pontuação relativa à questão anulada. Ato contínuo, os candidatos deverão ser reclassificados no concurso público.

Na tentativa de solucionar eventuais conflitos decorrentes do comando normativo, a lei também dispõe que os candidatos já nomeados serão mantidos no cargo, ainda que passem a figurar fora do número de vagas previsto no edital. Por outro lado, aqueles que sejam deslocados para colocação contemplada pelas vagas adquirem direito subjetivo ao prosseguimento nas demais etapas do certame, ou, na hipótese de etapa única, à nomeação.

Após analisar os recursos interpostos contra o gabarito provisório divulgado, a banca organizadora pode anular questões do certame. Tradicionalmente, esta anulação aproveita a todos. Por outro lado, a inafastabilidade da jurisdição permite que os candidatos ajuízem ações, com a finalidade de anular gabaritos inalterados. Na hipótese de deferimento do pleito, a sentença produzirá efeitos dentro dos limites subjetivos da lide, o que significa que apenas o autor da demanda será beneficiado com a anulação da questão.

Em todo caso, o controle jurisdicional de ato administrativo que avalia questões em concurso público é limitado, por força do princípio da separação de poderes. Sobre o ponto, o STF fixou tese de repercussão geral no sentido de que não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. A despeito disso, não é incomum a judicialização do tema.

Neste contexto, a lei estadual 10.516/24 trata de situações excepcionais, nas quais o Poder Judiciário intervém no caso concreto, para assegurar a juridicidade. Há argumentos legítimos para condenar ou defender a normativa, que convidam ao debate de interesse nacional sobre aspectos jurídicos relevantes.

Entre os argumentos contrários à lei, sustenta-se que invade a competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Ao estender os efeitos da decisão para todos os participantes do concurso, ainda que não tenham sido parte na demanda, a lei põe em xeque a regra prevista no CPC, segundo a qual a sentença faz coisa julgada entre as partes. Além disso, a reclassificação automática de candidatos prejudica terceiros que não participaram do processo, em violação ao contraditório.

Outro pretexto desfavorável remonta à origem da lei, tendo em vista que é de iniciativa parlamentar. Nesta lógica, há quem reconheça o vício formal, por considerar que a competência para apresentação do projeto de lei seria privativa do governador de Estado, à luz do texto constitucional.

Em termos práticos, a reclassificação póstuma prevista na lei 10.516/24 afeta substancialmente os certames compostos por mais de uma etapa. A título de exemplo, menciona-se aqueles que contam com o teste de aptidão física, realizado pelos candidatos aprovados na primeira etapa do concurso. A mudança classificatória exigirá aplicação da etapa física aos novos aprovados dentro das vagas, o que, evidentemente, implica em aumento de custos administrativos.

Por outro lado, os argumentos favoráveis à norma encontram respaldo no princípio constitucional da igualdade, a ser tutelado por todos os entes federativos. Sob esta ótica, ainda que os limites da coisa julgada sejam previstos na legislação processual, é certo que decorrem de criação do legislador, na tentativa de tutelar a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações sociais.

Diante do conflito entre os limites subjetivos da decisão judicial e o respeito à igualdade, elencada como direito fundamental pela CF/88, revela-se razoável sustentar que esta prevaleça. Nesta linha de raciocínio, uma vez anulada uma questão do certame, ainda que fruto de demanda individual, a reclassificação automática de todos os candidatos parece corolário da igualdade e prestigia a escolha impessoal dos que obtiveram a melhor colocação na prova.

Entendimento contrário parece privilegiar a forma em detrimento do mérito. Neste quesito, sustenta-se que o próprio CPC prestigia a solução integral do mérito da controvérsia.

Ainda na seara processual, o art. 506 do CPC dispõe que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros. Interpretado em sua literalidade, não poderia uma decisão judicial que determina a anulação de questão beneficiar apenas o autor da demanda, visto que implicaria em alteração de sua classificação em detrimento de terceiros mais bem colocados. Estes, por sua vez, não foram ouvidos no processo, no entanto, serão atingidos pela nova ordem classificatória, que os prejudica. Seja pela lei estadual 10.516/24, seja pelos efeitos da sentença proferida em processo individual, haverá a reclassificação de candidatos, o que muda, portanto, é o quantitativo deles.

Quanto ao suposto vício de iniciativa da lei estadual 10.516/24, contrapõe-se a presunção de constitucionalidade das leis. Até o momento em que este artigo foi produzido, não consta ação de inconstitucionalidade registrada no site da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

De lado os argumentos favoráveis e contrários à legislação estadual, é certo que a normativa merece aprimoramento, a fim de atenuar a insegurança jurídica, causada pela possibilidade de reclassificação de candidatos a cada nova decisão judicial com trânsito em julgado, além de mitigar os custos administrativos inerentes ao seu cumprimento.

O debate proposto a partir da lei estadual 10.516/24 esbarra em aspectos jurídicos controversos, comumente enfrentados nas demais esferas federativas. A superação da controvérsia não é simples, mas é certo que o assunto é de interesse público e nacional.

Carolina Soares Vahia de Abreu

Carolina Soares Vahia de Abreu

Advogada. Sócia do escritório Galdi, Alonso e Vahia Advogados. Pós-graduada pela Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro.

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