A simplificação da linguagem jurídica e o acesso à Justiça   Migalhas
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A simplificação da linguagem jurídica e o acesso à Justiça – Migalhas

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A linguagem jurídica, especialmente a forense, sempre foi marcada por tecnicismos e complexidade. Essa característica, embora útil em muitos contextos, frequentemente distancia o cidadão comum do sistema de justiça, criando barreiras que dificultam o pleno exercício da cidadania. Quem nunca ouviu a piada de que os advogados transformam o simples “proibido estacionar aqui” em algo como: “É vedada a utilização deste espaço público para a paralisação prolongada de veículos automotores, sob pena de aplicação das sanções administrativas previstas no ordenamento jurídico vigente”? A crítica é bem-humorada, mas aponta para um problema real: a linguagem jurídica muitas vezes se torna um obstáculo à compreensão.

Diante disso, há uma crescente defesa pela simplificação da linguagem do Direito, visando torná-lo mais acessível e compreensível para todos. Recentemente, o sempre genial Lênio Luiz Streck defendeu, em um artigo denominado “Com ‘linguagem simples’, mundo jurídico se apequena e vira um brechó”, a necessidade da manutenção do “linguajar jurídico” diferenciado. O linguajar simples, segundo sua erudição expoente ao citar Hegel, seria “uma apreciação ingênua do e sobre o mundo“.

Sempre contundente, com profusão de fundamentos, o mestre Lênio defende a necessidade da preservação de um modelo mais formal de linguajar, quase que literário. 

É sempre uma tarefa árdua discordar de tamanho cabedal de conhecimento. Porém, ouso fazê-lo. Muito mais tomado por uma visão de mundo diferenciada, por um conhecimento empírico, do que pelo enfrentamento da verticalidade filosófica de Lênio. Em linhas gerais, são gostos diferentes.

O acesso ao conhecimento impõe a necessidade de que outros atores sociais possam ter acesso à informação. Sobretudo, à informação que diga respeito ao seu processo, que trata de sua liberdade, de seus bens, de sua família. Afinal, o direito à informação consiste no direito de informar, de se informar e ser informado, conforme as lições de Paulo Bonavides. E o direito de ser informado é o direito de receber informações claras, precisas e oportunas, especialmente de instituições públicas, para garantir a transparência e a cidadania. 

O conhecimento também deve ser democratizado! E neste desdobramento, a possibilidade de acesso à informação forense que conste de uma petição inicial ou de uma decisão judicial (ou, como diriam os formalistas, “neste diapasão, a exequibilidade de fruição das informações de índole forense insertas em uma peça vestibular ou em um decisum jurisdicional”) deve ser acessível a todos aqueles que tenham meridiano esclarecimento. 

Capão Pecado” é um livro escrito pelo autor brasileiro Ferréz (Reginaldo Ferreira da Silva). Publicado originalmente em 2000, a obra é um dos marcos da literatura marginal no Brasil.

Ferréz retrata a realidade da periferia de São Paulo, especialmente do bairro Capão Redondo, onde o autor cresceu. A narrativa aborda temas como violência, desigualdade social, criminalidade e as dificuldades enfrentadas pelos moradores da periferia, sempre com uma linguagem direta e crua, característica da literatura marginal. “Capão Pecado” contém erros de português intencionais, mas eles fazem parte do estilo literário escolhido por Ferréz. Esses “erros” não são fruto de desconhecimento da norma-padrão, mas sim uma escolha estilística que visa dar autenticidade à narrativa, refletindo a oralidade e o cotidiano da periferia paulistana, especialmente do Capão Redondo, onde a história se passa. E poucas vezes se viu tanta transferência de informação quanto neste livro. Ferréz efetivamente dialogou com seu público!

Informar é, basicamente, ser claro e objetivo; é ser acessível ao seu público-alvo. E o público-alvo da atividade forense é o povo.

Não se quer negligenciar a gramática. Não se trata de pregar erros de concordância, de uso de expressões chulas ou mesmo a aceitação do esdrúxulo (quem nunca ouviu falar “da cônjuge”). O que se quer é a simplificação objetiva, de modo a tornar compreensível o exposto em um processo a qualquer cidadão. Afinal, ele é o destinatário da jurisdição.

Termos como “Ex positis, e considerando o fumus boni iuris e o periculum in mora, defiro a medida liminar ad cautelam, ex vi legis”, podem ser substituídos por “Diante do exposto, considerando a probabilidade do direito e o risco de dano, concedo a medida liminar como precaução, conforme a lei”; 

“Tendo em vista a impossibilidade de configurar o “animus lucrandi” por parte do recorrido no presente caso, dada a ausência de elementos probatórios que demonstrem cabalmente a prática reiterada de conduta que revele intuito de obtenção de vantagem indevida, não há como prosperar o pleito recursal” fica bem melhor assim: “Como não há provas suficientes de que o recorrido agiu com intenção de obter lucro de forma ilícita, o pedido do recurso não pode ser aceito”.

Um dos principais defensores da simplificação da linguagem jurídica foi o jurista italiano Mauro Cappelletti, que, em sua obra sobre o acesso à Justiça, destacou que o sistema jurídico deve ser acessível em todas as suas dimensões, inclusive na linguagem. Para Cappelletti, o acesso ao Direito não se limita a aspectos físicos ou econômicos, mas também exige uma linguagem clara que permita ao cidadão compreender seus direitos e os procedimentos judiciais (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

No Brasil, o ministro do STF Luís Roberto Barroso é um dos que defendem a simplificação da linguagem jurídica. Barroso enfatiza que a clareza e a objetividade devem ser norteadoras das decisões judiciais e demais atos processuais, pois a linguagem rebuscada frequentemente se torna um obstáculo para a efetivação dos direitos fundamentais (BARROSO, 2016).

Algumas iniciativas práticas têm buscado implementar a simplificação da linguagem no âmbito dos tribunais e outros órgãos jurídicos. Entre elas destaca-se o programa de Linguagem Simples do TJ/SC, que busca adequar os documentos e as comunicações institucionais para uma linguagem mais clara e acessível. O programa utiliza técnicas de design de informação, revisão textual e consulta ao público-alvo para garantir que os textos produzidos sejam compreensíveis (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA, 2023).

Outro exemplo é o projeto Linguagem Clara do TJDFT, inspirado em movimentos internacionais como o “Plain Language Movement”. Esse projeto tem como objetivo principal revisar sentenças e despachos, eliminando redundâncias e complexidades desnecessárias, além de treinar servidores e magistrados na redação clara e direta (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS, 2023).

A simplificação da linguagem jurídica não é exclusividade do Brasil. Em âmbito internacional, países como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália lideram o movimento “Plain Language”, que visa a clareza nas comunicações legais e administrativas. Organizações como o Center for Plain Language e o Plain English Campaign promovem treinamentos e certificações, além de incentivarem governos e empresas a adotar práticas de linguagem clara (PLAIN ENGLISH CAMPAIGN, 2023).

A simplificação da linguagem jurídica é uma ferramenta essencial para a democratização do Direito. Ao romper as barreiras do tecnicismo, o sistema jurídico se aproxima da sociedade, permitindo que os cidadãos compreendam seus direitos e deveres de maneira mais plena. Como bem apontado por Mauro Cappelletti, o acesso à Justiça só será completo quando a linguagem do Direito deixar de ser um privilégio e se tornar um bem acessível a todos.

Não há de se condenar aqueles que preferem música clássica. Pelo contrário, elas são refinadas e refletem um gosto esmerado. Mas, o povo prefere sertanejo e funk porque fala a “língua” dele.

A confiabilidade na Justiça passa necessariamente pela sua compreensão. E, para tanto, a linguagem jurídica deve ser de modo tal a permitir que o povo possa entendê-la.

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1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.

4 MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: Repensar a Reforma, Reformar o Pensamento. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

5 PLAIN ENGLISH CAMPAIGN. About Us. Disponível em: https://www.plainenglish.co.uk. Acesso em: 9 jan. 2025.

6 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

7 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Programa Linguagem Simples. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br. Acesso em: 9 jan. 2025.

8 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Projeto Linguagem Clara. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br. Acesso em: 9 jan. 2025.

Jesualdo Almeida Junior

Jesualdo Almeida Junior

Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutorando pela USP. Mestre e Doutor em Direito. Professor. Sócio de Jesualdo Almeida Junior Advogados Associados. Pres. Conselheiro Estadual da OAB/SP.

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