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O programa de Leniência do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica1 está em evolução constante.2
A primeira fase (2000-2011) foi voltada à instituição do programa de leniência no Brasil, com a busca pela atração aos primeiros proponentes, sobretudo utilizando-se de cartéis internacionais para as primeiras investigações.
Em seguida, na segunda fase (2012-2016), houve a consolidação do Programa de Leniência Antitruste, com uma tendência de aumento de casos de cartéis nacionais, a partir do aumento do risco de detecção, da tomada de consciência da severidade das penas possivelmente impostas pelo Tribunal do CADE, e pelo foco na robustez da colaboração.
Já na terceira fase (2016-2020),3 passou-se a um foco maior em cartéis nacionais em licitação, como uma decorrência natural do contexto que se vivia, no Brasil, das investigações relacionadas à Lava Jato.
Passado esse período, e diante do aumento de discussões nacionais em outras esferas – sobretudo anticorrupção4 – sobre a validade jurídica de acordos de leniência, bem como discussões internacionais sobre o custo de negociações de acordos de leniência multijurisdicional e o aumento do private enforcement pelos prejudicados por cartel (inclusive endereçados pela lei 14.470/22, que alterou a lei 12.529/11)5, passa-se a uma quarta fase (2020-atual), que estamos atualmente vivendo, de “recalibração dos incentivos” ao Programa de Leniência.
A imagem abaixo evidencia essas fases do Programa de Leniência Antitruste do CADE:
A proposta de atualização do Guia de Acordo de Leniência e a consulta pública realizada pelo CADE (“Consulta Pública” ou “Proposta de Novo Guia de Leniência do CADE”), que se encerra em 20/1/25, não poderia vir em melhor hora, diante dessa quarta fase atual Programa de Leniência Antitruste do CADE.
Para que se compreenda, de modo didático, as principais alterações – sob o ponto de vista dessa autora – das propostas contidas na consulta pública, serão publicados uma série de artigos, nos quais serão endereçados os pontos trazidos em cada uma das seções específicas para cada capítulo da Proposta de Novo Guia de Leniência.
Parte I. Aspectos gerais do Programa de Leniência Antitruste do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
Uma das alterações mais significativas da Proposta de Novo Guia de Leniência do CADE diz respeito à ampliação da interpretação de ilícitos passíveis de enquadramento para a celebração de Acordo de Leniência pelo CADE e, consequentemente, de possíveis signatários dos acordos.
Até então, o Guia tinha a redação voltada para a prática de “cartel”, em especial cartéis hardcore. A partir da nova redação,6 o escopo de infrações passíveis de enquadramento para a celebração de Acordo de Leniência passa a ser explicitamente exemplificativo, abarcando não apenas acordos expressos (os hardcore cartels ou até mesmo os softcore cartels), mas também acordos tácitos, troca de informações concorrencialmente sensíveis como condutas autônomas e influência à adoção de conduta comercial uniforme.
Trata-se de alteração que reflete a prática recente do CADE, que tem iniciado investigações a partir de Acordos de Leniência com este escopo mais ampliado – em especial sobre práticas consideradas irregulares de benchmarking envolvendo, em específico, informações de recursos humanos7.
Há, sobre este ponto, espaço para concordância ou não com a adequação dessa expansão de ilícitos passíveis de serem objeto de celebração de Acordo de Leniência, dado que a celebração de um Acordo de Leniência poderia pressupor, para alguns, uma conduta presumidamente ilícita, como o cartel, e não uma conduta que pode ser lítica, como uma troca de informações e ou um benchmarking. Para outros, porém, há espaço para se argumentar que o art. 86 da lei 12.529/11 não expressamente restringe o tipo de infração à prática de cartel. Independentemente da concordância sobre a ampliação ou não do escopo dos acordos, é possível que a mudança na redação da Proposta de Novo Guia de Leniência do CADE sinalize questionamentos sobre a eficácia dessa interpretação para casos instaurados anteriormente à mudança do Guia.
Seria oportuna, nesta nova redação da Proposta de Novo Guia de Leniência do CADE, uma correção, no sentir dessa autora, de uma imprecisão terminológica contida no Guia de Dosimetria do CADE. Quando da discussão sobre a alíquota a ser aplicada em casos de cartel, o Guia de Dosimetria indica que a alíquota de referência para casos de condutas concertadas incluindo cartéis difusos seria de 8%, podendo ser superior a esse valor ou chegar a um mínimo de 5%. Ocorre que, entre parênteses, ao identificar o que seriam exemplos de “cartéis difusos”, o Guia de Dosimetria descreve “cartéis difusos (ex: trocas de informações esporádicas ou não sistemáticas, revelação unilateral de informações, tabelamento de preços etc.)”. Nesse ponto, é relevante diferenciar casos de cartel, sejam eles hardcore ou difusos, de casos de influência de conduta comercial uniforme (nas suas subespécies de recomendação a concorrentes, revelação unilateral de informações e convite a cartelizar)8 e de casos de troca de informação sensível como conduta autônoma. São condutas com contornos distintos, com níveis de prejuízo ao mercado distintos e com possíveis justificativas legítimas, no caso de troca de informações.
Como consequência dessa interpretação abrangente do escopo de ilícitos passíveis de enquadramento para a celebração de Acordo de Leniência, há também uma proposta de ampliação da interpretação de pessoas legitimadas para a celebração dos acordos. Chama a atenção, assim, a inclusão da possibilidade de celebração de Acordos de Leniência por associações9, que tipicamente são envolvidas em investigações de influência à conduta comercial uniforme. A lógica subjacente e implícita do Guia parece simples: se associações podem ser investigadas por práticas reportadas em Acordos de Leniência e, portanto, poderiam ser compromissárias de TCC – Termos de Compromisso de Cessação, esses entes também deveriam poder propor e celebrar Acordos de Leniência.
Neste ponto, há dois caminhos possíveis. O primeiro, de se entender que, para que associações sejam legitimadas sem questionamentos para a assinatura de Acordo de Leniência, caso seja essa a decisão de política pública10 adotada pelo CADE, que haja uma alteração via legislativa. Os incisos do §1º do art. 86 da lei 12.529/11 expressamente determinam como requisito para a celebração de Acordo de Leniência que a “empresa” seja a primeira a se qualificar, que a “empresa” cesse seu envolvimento, que a “empresa” confesse sua participação. As bases do Direito Privado são claras em indicar que associações são entes que não desempenham atividade econômica, quanto menos atividade econômica empresária.11 Ademais, associações são pessoas jurídicas de direito privado distintas das sociedades empresárias (art. 44 do CC).12 Assim, ciente do princípio basilar da hermenêutica jurídica de que a lei não contém palavras inúteis, a existência expressa de menção a “empresa” poderia indicar quem seria o proponente esperado de um Acordo de Leniência no Brasil.
O segundo caminho possível é reconhecer que o caput do art. 86 contém uma previsão mais genérica, permitindo a celebração de Acordo de Leniênia “(.) com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica”. Essa redação mais ampla é que a sustenta a celebração de Acordos de Leniência exclusivamente com pessoas físicas e que poderia, em tese, também legitimar a celebração de acordos com outras pessoas jurídicas para além das empresas. Para que essa interpretação ampliativa seja possível, portanto, é forçoso reconhecer que às associações, bem como às demais pessoas jurídicas de Direito Privado distintas de sociedades empresárias/empresas, não será aplicável, portanto, os requisitos de ser a primeira a se qualificar, de cessar seu envolvimento, de confessar sua participação, pois todos estes são exigidos apenas das “empresas”. Ou seja, caso haja um Acordo de Leniência celebrado por uma empresa, a associação poderia, em tese, ser também signatária de um segundo Acordo de Leniência no mesmo processo, dado que a ela não seria aplicável o requisito da primazia. Por outro lado, caso o signatário seja a associação, a empresa não poderia assinar, dado que a ela sim seria aplicável o requisito de ser a primeira empresa a se qualificar.
Ainda sob a perspectiva de pessoas legitimadas para a celebração dos acordos, houve a consolidação – positiva, a nosso ver – do posicionamento do Tribunal13 sobre a possibilidade de investigação e condenação de pessoas físicas não administradoras, cabendo a essas, assim, também a possibilidade de celebrar Acordo de Leniência.
Ademais, é relevante mencionar a inclusão – positiva, a nosso ver – realizada nessa seção sobre a possibilidade de concessão de imunidade derivada a pessoas jurídicas do grupo econômico e seus respectivos funcionários sem a necessidade de admissão de participação na conduta.14
Parece-nos que a inclusão visa a endereçar uma imprecisão histórica, que tipicamente leva à confusão da responsabilidade solidária do grupo econômico pelo pagamento de eventuais sanções pecuniárias (art. 33 da lei 12.529/11) da responsabilidade pelo ilícito em si,15 que decorre do princípio geral do direito da obrigatoriedade da individualização da conduta. Ou seja, conforme advirto há alguns anos e agora parece explícito no Guia, se outras empresas do grupo econômico da proponente assinam o Acordo de Leniência – ou são compromissárias de TCCs -, o fazem tão somente para fins de eventual responsabilização do grupo pelas sanções pecuniárias e não personalíssimas,16 não sendo elas responsáveis pela prática ou seu envolvimento na conduta reportada, não devendo, assim, ser incluídas no polo passivo do processo administrativo.
Nos próximos artigos dessa série, comentaremos as demais alterações propostas no Guia de Leniência do CADE, bem como sugestões de alteração no Guia, no regimento interno do Cade e/ou na própria lei 12.529/11.
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1 ATHAYDE, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil – Teoria e Prática. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Fórum, 2022.
2 ATHAYDE, Amanda. FIDELIS, Andressa. Nearly 16 of the Leniency Program in Brazil. 2016. In ATHAYDE, Amanda. Estudos em Direito da Concorrência. Kindle: https://amzn.to/49QYpFt.
3 CRAVEIRO, Priscilla. Uma régua na Leniência Antitruste: as taxas de sucesso e de declaração de cumprimento como medidas de efetividade do Programa de Leniência do Cade. FGV, 2020.
4 ATHAYDE, Amanda. Anulação, rescisão e repactuação de acordo de leniência: distinções incipientes mas necessárias. Revista da CGU. 31 Dez. 2024. ATHAYDE, Amanda. PIAZERA, Bruna. FREITAS, João Victor. ROS, Luiz. CRAVEIRO, Priscila. Doing the Math of Cartels: Unpuzzling Organized Corporate Crimes. SSRN. Maio 2022.
5 ATHAYDE, Amanda. TREVISO, Carolina.Se, quando e como aplicar a lei n° 14.470/2022 nas ações reparatórias por danos concorrenciais? Uma análise sobre a aplicabilidade no tempo das normas de direito material e processual. Revista de Direito da Concorrência. Num. 11 (2)(2023). p. 172-191.
6 Dentre os trechos que sinalizam essa ampliação interpretativa, destaca-se o seguinte: “Para além do cartel clássico, ou seja, um acordo entre agentes econômicos com fins anticompetitivos de maior grau de institucionalização, o acordo de leniência também é aplicável a outros tipos de conduta anticompetitiva, tais como: (i) cartel difuso, cujo grau de institucionalização é menor vis a vis o cartel clássico; (ii) troca de informações concorrencialmente sensíveis como uma conduta autônoma, quando não caracterizada a estruturação de um acordo propriamente dito entre agentes econômicos; e (iii) influência à adoção de conduta comercial uniforme, dentre outras. Dentre os muitos exemplos práticos de infrações à ordem econômica que podem ser objeto de acordo de leniência estão: (i) acordos para fraudar o caráter competitivo de uma licitação; (ii) acordos para fixar, manter, diminuir ou controlar salários ou outros fatores de caráter remuneratório; (iii) acordos que impossibilitam a contratação de empregados de outras empresas (“no-poach”); (iv) cartéis de compra; (v) troca de informações concorrencialmente sensíveis envolvendo salário ou outros fatores de caráter remuneratório; (vi) troca de informações concorrencialmente sensíveis no âmbito de acordos de cooperação técnica e P&D etc.”
7 Procedimento Preparatório nº 08700.004548/2019-61 (Apartado de Acesso Restrito nº 08700.004537/2019-81) (“MedTech”). Processo Administrativo nº 08700.000992/2024-75 (Autos Restritos nº 08700.000994/2024-64) (“GECON”). Processo Administrativo nº 08700.001198/2024-49 (Autos Restritos nº 08700.001200/2024-80) (“GEAB”). Processo Administrativo nº 08700.007061/2024-06 (“Empilhadeiras”).
8 ATHAYDE, Amanda. ROCHA E SILVA, Leonardo. FERNANDES, Luís Henrique Perroni. Anúncios públicos unilaterais de preços e outras condições comerciais: considerações iniciais e proposta de metodologia para a análise antitruste. Revista de Direito da Concorrência. V.12. n. 2 (2024). https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/1056
9 Trecho destacado: “As associações, por si, são elegíveis para celebração de acordos de leniência se tiverem participado de infração contra a ordem econômica por meios próprios e não apenas por meio de seus membros. Normalmente, a conduta imputada às associações é a influência à adoção de conduta comercial uniforme – que, embora não seja tipificada como crime (como a prática de cartel prevista no art. 4º da Lei nº 8.137/1990) -, pode sujeitar pessoas físicas e jurídicas a elevadas multas administrativas”.
10 Nesse sentido, reconhece-se que o Direito da Concorrência deve ser visto como instrumento de implementação de políticas públicas. FORGIONI, Paula. Fundamentos do Antitruste. São Paulo, RT: 2024. 13ª Ed. Capítulo 1.
11 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
12 Para maiores detalhes sobre o conceito de empresa e sociedade empresária, recomenda-se o podcast Direito Empresarial Café com Leite, do qual a autora deste artigo é a idealizadora e entrevistadora. https://open.spotify.com/show/3rgLXFIScTgCGHqidktCG1
13 Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78 (Representante: Cade ex officio. Representados(as): MAHLE Behr Gerenciamento Térmico Brasil Ltda. (atual denominação de Behr Brasil Ltda.); Denso do Brasil Ltda.; Denso Sistemas Térmicos do Brasil Ltda.; Modine do Brasil Sistemas Térmicos Ltda. (atual denominação de Radiadores Visconde Ltda.); Valeo S.A.; Valeo Sistemas Automotivos Ltda.; Valeo Sistemas Automotivos Ltda. – Divisão Climatização; Valeo Sistemas Automotivos Ltda. – Divisão Sistemas Modulares; Valeo Sistemas Automotivos Ltda. – Divisão Térmicos Motor; Valeo Sistemas Automotivos Ltda. – Divisão Valeo Service; Adalberto Penachio; Adriana Bueno de Camargo Motta; Carlo Chiarle; Carlos José Zilveti Arce Murillo; Christophe Michel; Emy Yanagizawa; Fernando Marcelo Bottura; Helida Ferreira Duarte; Manoel Feitosa Alencar Junior; Mário Tano; Max Davis Forte; Omar Cecchini Said; Paulo Benedito Arroyo; Paulo Shigueru Ninomiya; Pierre Alain Yves Le Marie D’Archemont; Rafael Galperin; Reginaldo Pereira Hermógenes; Renato Luís Barbi; Renato Vilches; Roberto João Dal Medico Junior; Samuel Barletta; Scott Lee Bowser; Sérgio Gonsalez Noriega; Sílvio Ricardo Valente Taboas e Yuri Daniel Pereira da Motta.) Voto Vista do Presidente Alexandre Cordeiro Macedo: “Ocorre que a possibilidade de se imputarem sanções a pessoas físicas não administradoras configura entendimento cediço e amplamente consolidado na jurisprudência do Cade, de modo que excluir a responsabilização dessas pessoas com base apenas no cargo que deixam de ocupar não me parece razoável.”.
14 Trecho destacado: “A SG/Cade poderá conceder imunidade derivada a outras empresas do mesmo grupo econômico do proponente (e seus respectivos funcionários) sem que tais pessoas físicas e jurídicas precisem admitir envolvimento na conduta reportada, desde que o proponente (e seus funcionários) admitam sua participação na conduta.”.
15 ANDREOLI, Daniel. FONSECA JR., Marco Antonio. A formiga ou o formigueiro? A responsabilidade solidária concorrencial. Jornal Estado de São Paulo, 26.2.2021.
16 FRAZÃO, Ana, Direito da Concorrência – Pressupostos e Perspectivas. São Paulo: Ed. Saraiva, 2017. pp. 311-314. “De toda sorte, a solidariedade pode ser adaptada, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, para se estender aos desdobramentos pecuniários das sanções impostas. […] Uma coisa é entender que a controladora pode e deve responder pelas consequências das sanções impostas à controlada, notadamente o pagamento de multa e o cumprimento de obrigações não personalíssimas que foram impostas à controlada. Outra coisa, muito diferente, é entender que a controladora pode ser considerada solidariamente culpada e condenada, sofrendo diretamente todas as consequências da punição, inclusive para efeitos de reincidência. […] Não se pode imaginar que a solidariedade a que se refere a lei envolve a possibilidade de condenação solidária de pessoas jurídicas pelo simples fato de serem integrantes do mesmo grupo econômico”.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.