Coronelismo e lawfare podem instrumentalizar o combate às fake news   Migalhas
Categories:

Coronelismo e lawfare podem instrumentalizar o combate às fake news – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

No Brasil, tornou-se uma prática recorrente rotular como “fake news” qualquer narrativa que contrarie opiniões ou gere desconforto. O combate à desinformação é importante, mas essa simplificação é perigosa, pois escancara questões que ameaçam os alicerces da democracia. Entre os desafios mais graves estão a fragilização da liberdade de expressão, a perpetuação de dinâmicas coronelistas que ainda marcam a sociedade brasileira e o uso estratégico e abusivo do poder judiciário, conhecido como lawfare.

Neste artigo, proponho três abordagens fundamentais. Primeiro, estabelecer uma distinção conceitual clara entre fake news e guerras de narrativas, com foco especial no contexto político. Em segundo lugar, analisar as diferenças no tratamento jurídico desses fenômenos, destacando as implicações de cada um. Por fim, trago reflexões sobre os cuidados necessários para proteger a democracia, especialmente diante do envolvimento crescente do judiciário em questões sensíveis que podem exacerbar práticas de lawfare.

Fake news e guerras de narrativas: Uma distinção conceitual

O conceito de fake news não é uma novidade histórica, mas adquiriu maior visibilidade e reformulação com a chegada da internet e das redes sociais. Práticas de desinformação sempre existiram, sendo amplamente utilizadas em regimes autoritários e contextos de guerra para manipular a opinião pública. Contudo, foi no século XXI que o termo fake news ganhou notoriedade global, particularmente após as eleições presidenciais nos Estados Unidos em 2016. Nesse cenário, estudiosos como Hunt Allcott e Matthew Gentzkow definem fake news como “notícias intencionalmente falsas, criadas para enganar, geralmente com motivações econômicas ou políticas”1.

Por outro lado, as guerras de narrativas se distinguem das fake news porque não envolvem a fabricação deliberada de mentiras, mas sim a disputa por interpretações sobre os mesmos fatos, ainda que com exageros, sensacionalismos ou equívocos. A pluralidade de visões é um direito fundamental de todo cidadão, permitindo que cada pessoa construa e compartilhe sua percepção dos acontecimentos, mesmo que contrarie a narrativa predominante. Afinal, todos os fatos estão sujeitos a diferentes leituras.

Por exemplo, uma política pública pode ser vista como um avanço por alguns e como prejudicial por outros. Da mesma forma, uma declaração polêmica de um político pode ser interpretada com indulgência por seus apoiadores ou usada como uma arma pela oposição. Essa liberdade de interpretar e expressar opiniões é uma base essencial da democracia. Impedir as pessoas de narrar e reinterpretar os fatos seria uma forma de censura, incompatível com os princípios democráticos e os direitos fundamentais.

Confundir fake news com guerras de narrativas, portanto, representa um perigo significativo para a liberdade de expressão. Enquanto as fake news envolvem a disseminação intencional de falsidades, as narrativas são o exercício legítimo do direito de opinar, criticar e oferecer diferentes perspectivas sobre a realidade. Respeitar essa distinção é crucial para proteger a democracia e evitar que o combate às fake news seja usado como um subterfúgio para silenciar vozes dissidentes.

Implicações jurídicas e seus desdobramentos

O tratamento jurídico das fake news no Brasil ainda está em construção, e, atualmente, não há uma tipificação específica que criminalize o ato de publicar notícias falsas. Nem o CP nem as legislações extravagantes tratam de maneira direta a prática como crime autônomo. Por isso, quando se trata exclusivamente de fake news, as consequências jurídicas têm se restringido ao âmbito eleitoral e cível, amparadas pela lei das eleições, pela LGPD e pelo Marco Civil da Internet.

A lei das eleições, em seu art. 57-H, autoriza a Justiça Eleitoral a determinar a remoção de conteúdos falsos que possam comprometer a transparência e a lisura do processo eleitoral. Além disso, permite ao Judiciário aplicar multas e até declarar a inelegibilidade de candidatos que utilizam estratégias de desinformação, associada a outros elementos, para obter vantagens eleitorais. A LGPD, por sua vez, estabelece diretrizes para o uso de dados pessoais, coibindo práticas abusivas relacionadas à coleta, processamento e utilização dessas informações. Já o Marco Civil da Internet regula o uso da rede no Brasil, protegendo princípios como liberdade de expressão e privacidade, ao mesmo tempo em que determina que provedores de aplicação sejam responsabilizados apenas se, após ordem judicial, não removerem conteúdos considerados ilegais. Esse dispositivo é frequentemente acionado para exigir a retirada de notícias falsas de plataformas digitais sem ferir os direitos dos usuários.

No âmbito penal, as discussões sobre a necessidade de criminalizar as fake news ganharam força com o PL 2630/20, conhecido como PL das Fake News. O projeto visa regulamentar a desinformação no ambiente digital e propõe medidas como a identificação de contas automatizadas e conteúdos patrocinados, a transparência nas políticas de moderação de conteúdo, a penalização de usuários e empresas que promovem ou financiam notícias falsas e a exigência de que plataformas digitais adotem ações rápidas para remover conteúdos prejudiciais à segurança pública ou ao processo democrático. Embora avance no combate à desinformação, o PL enfrenta intensos debates sobre possíveis impactos na liberdade de expressão.

Voltando às narrativas, elas, por sua vez, não envolvem a criação de falsidades, mas refletem repercussões de notícias, visões pessoais ou coletivas sobre fatos. Todos os acontecimentos estão sujeitos a múltiplas interpretações, e essa pluralidade de visões é essencial para a democracia. Mesmo diante de distorções, deliberadas ou não, a liberdade de interpretação faz parte do exercício democrático. Até mesmo as críticas mais contundentes, como as que associam políticos a características pejorativas, estão protegidas pela liberdade de expressão e pela liberdade política.

Narrativas, mesmo quando ácidas, provocativas, desconfortáveis ou distorcidas, não geram consequências jurídicas porque integram a dinâmica natural do debate público. Cabe aos políticos enfrentarem-nas com contra-argumentos e propor narrativas alternativas que dialoguem com a sociedade. Essa interação entre perspectivas distintas fortalece o pluralismo e a participação cidadã, pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Coronelismo e lawfare: Alertas cruciais para a proteção da democracia

Vivemos em um país ainda profundamente marcado por dinâmicas coronelistas. Esse fenômeno não se limita à política nacional, mas afeta especialmente o interior do Brasil, onde coronéis – como empresários influentes, grandes proprietários e famílias tradicionais – possuem o poder de mobilizar o judiciário para perseguir opositores políticos. Uma interpretação equivocada do conceito de fake news pode desencadear uma onda de perseguições locais, enfraquecendo a liberdade de expressão no ambiente virtual. Isso compromete a capacidade das pessoas de se posicionarem, denunciar suspeitas de crimes e criticar atores políticos, minando a saúde democrática e a pluralidade de opiniões.

O coronelismo, como conceito, é amplamente associado à estrutura política e social que predominou no Brasil durante a Primeira República (1889-1930), mas que, como bem destaca Victor Nunes Leal em seu clássico Coronelismo, Enxada e Voto, persiste de maneira adaptada em diversos contextos. Trata-se de um sistema em que lideranças regionais, os “coronéis”, exercem poder político e econômico desproporcional, influenciando decisões públicas e o comportamento das instituições. Esse domínio muitas vezes se traduz na cooptação de órgãos públicos e na manipulação de recursos e estruturas legais para manter sua hegemonia2.

Já o conceito de lawfare foi popularizado por autores como John Comaroff3 e David Kennedy4, sendo definido como o uso estratégico do sistema jurídico para alcançar objetivos políticos. No Brasil, o termo tem ganhado destaque ao descrever situações em que o aparato judicial é instrumentalizado para perseguir adversários políticos, enfraquecer opositores e consolidar poder. Quando combinado ao coronelismo, o lawfare se torna ainda mais perigoso, pois transforma ferramentas de justiça em instrumentos de opressão, perpetuando desigualdades históricas e corroendo a confiança pública nas instituições.

Nesse contexto, é essencial que os atores do sistema de justiça e os órgãos envolvidos no combate às fake news atuem com máxima neutralidade e rigor técnico. O combate às notícias falsas é imprescindível para a proteção da democracia, mas deve ser conduzido de forma criteriosa, evitando interpretações amplas ou enviesadas que possam ser utilizadas como pretexto para silenciar vozes críticas. Juízes, delegados e promotores têm a responsabilidade de distinguir entre desinformação deliberada, que precisa ser combatida, e narrativas legítimas que fazem parte do exercício democrático da liberdade de expressão.

O Ministério Público, como fiscal da lei, deve garantir que investigações sobre fake news não se tornem instrumentos de perseguição política. A polícia Federal e a polícia civil, por sua vez, precisam conduzir inquéritos de forma técnica e independente, protegendo cidadãos de pressões locais ou regionais que busquem instrumentalizar suas atuações. Esses cuidados são fundamentais para preservar a integridade das instituições e evitar que o combate às fake news se transforme em um novo mecanismo de repressão, alimentando práticas coronelistas ou de lawfare.

Concluir sem destacar a importância desses alertas seria negligenciar o papel central da justiça e das forças de segurança na proteção dos direitos fundamentais. O Brasil enfrenta desafios históricos para consolidar uma democracia plena, e reconhecer as armadilhas do coronelismo e do lawfare é um passo essencial para superar práticas que fragilizam a liberdade de expressão e a pluralidade política. Cabe às instituições se firmarem como pilares da justiça e da igualdade, garantindo que o futuro seja marcado pelo fortalecimento da democracia e pela defesa intransigente dos direitos de todos os cidadãos.

____________

1 ALLCOTT, Hunt; GENTZKOW, Matthew. Social Media and Fake News in the 2016 Election. Journal of Economic Perspectives, v. 31, n. 2, p. 211-236, 2017. DOI: 10.1257/jep.31.2.211.

2 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: O Município e o Regime Representativo no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

3 COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Law and Disorder in the Postcolony. Chicago: University of Chicago Press, 2006.

4 KENNEDY, David. Lawfare and Warfare. In: COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Lessons from the War on Terror. Princeton: Princeton University Press, 2010.

Patrick Luiz Martins Freitas Silva

Patrick Luiz Martins Freitas Silva

Professor de Direito Constitucional. Mestre (PUC-RJ) e Doutorando (UFRJ) em Direito.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *