Tudo passa pela educação   Migalhas
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Tudo passa pela educação – Migalhas

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A internalização de valores socialmente relevantes dá-se antes do ingresso na escola, estendendo-se por todo o período da educação formal na base de processos pedagógicos orientados não apenas à transmissão do conhecimento, mas também à realização concreta das potencialidades humanas, em suas múltiplas dimensões, no que contam muito a participação e o debate. Metodologias ativas de aprendizagem permitem integrar os aspectos racional, ético, estético, emocional e cívico, rumo à construção de um novo sujeito moral.

A vinculação do orçamento à educação, instituída na Constituição de 1934, estava ausente nas Cartas de 1937 e 1967, não por coincidência, em períodos autoritários. Com a “Constituição Cidadã”, a alíquota, para Estados e municípios, foi definida em 25%. Embora bem maior que os percentuais estabelecidos ao longo da história, isto não repercutiu, pelo menos diretamente, na qualidade do ensino público, que, em retrospectiva, teve avanços significativos apenas nos primeiros anos do ensino fundamental, segundo indicadores do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que considera os resultados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e o fluxo escolar.

Não cabe, nesse breve espaço, formular hipóteses para a crise da Educação Básica, mas refletir sobre alguns caminhos, no que importa a menção ao último relatório elaborado pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, segundo o qual a parcela do PIB por nós destinada à educação equipara-se à de países que são referência, em contraste com o nosso investimento na formação de cada aluno, que representa cerca de 30% da média daqueles países, a sugerir uma das chaves do problema.      

Investimentos de qualidade, com a formação de agentes transformadores – aqui pensando em alunos que poderão mais tarde ser professores -, proporcionariam reais condições de escolher melhor os governantes, tornando efetivos o exercício da cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, fundamentos da República (art. 1º, II a IV, da CF/88), ao mesmo tempo em que permitiriam construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de qualquer natureza, com desenvolvimento econômico sustentável, erradicação da pobreza e da marginalização, objetivos indeclináveis  (art. 3º, I a IV, da CF/88).

Para isso, algumas ações seriam necessárias. A melhoria do ensino médio e fundamental, com requalificação dos professores, exigiria a participação da universidade pública, mais especificamente dos pós-graduandos, aos quais seria dado retribuir à sociedade a chance de cursar o ensino público de qualidade. Na jornada de oito horas de trabalho, duas delas estariam reservadas à recapacitação, por meio digital, o que contaria pontos para a progressão na carreira, com consequente valorização do magistério.

Esse diálogo entre a universidade e a escola permitiria superar o déficit de prestação recíproca, havendo de se reconhecer que se a escola se afastou do ambiente da pesquisa, isto somente ocorreu porque a universidade se deixou envolver pela lógica do mercado, esquecendo que o desenvolvimento das nossas competências depende dos estímulos que recebemos logo nos primeiros anos da escola. Dessa rica interlocução talvez pudesse surgir a chave para a equação consistente em saber como democratizar o ensino sem massificá-lo.

O fenômeno da massificação é um dado importante para entender a discrepância dos números relativos ao investimento na educação, há pouco apontada. A máxima utilitarista (ação orientada para produzir a maior quantidade de bem-estar ao maior número de pessoas), inspiradora do Estado-providência, recusando o imperativo categórico (lei moral interior, baseada na razão e no respeito à humanidade, a orientar a ação de todos os homens), leva em conta o resultado prático, de forma que o agente moral, longe do compromisso com uma razão universal, tem em vista o proveito resultante do seu agir.

Da perspectiva utilitarista, se necessário for sacrificar a qualidade de ensino para que um maior número de pessoas tenha acesso à educação, melhor que assim se faça, pois, de outra forma, as consequências não seriam tão vantajosas. Nossa tese consiste em que, investindo-se com critério na formação e requalificação do professorado – para o que indispensável a participação da universidade pública -, a médio prazo seria possível conciliar democratização e qualidade de ensino, lembrando que recursos financeiros existem, porque parte do orçamento se acha vinculada à educação.

É preciso romper o perverso círculo vicioso do ensino de baixa qualidade – o professor ensina mal porque os alunos não têm interesse, e os alunos não têm interesse porque o professor ensina mal -, promovendo estratégias de motivação dos educadores e dos estudantes. De tal sorte, na base de programas flexíveis e amoldados às realidades socioculturais, sob orientação de uma curadoria de conteúdos interdisciplinares – que permitissem desenvolver, com adequada pertinência, temas transversais -, aluno e professor caminhariam juntos na construção de um país melhor.

Trata-se de desafio necessário, sobretudo em tempos de pós-verdade, nos quais a mídia social, sequestrando nossas mentes e nossa linguagem, divulga informações inconsistentes, quando não falsas, transformando-nos em repetidores sem discernimento, com o que grassam a discórdia e a polarização, a exigir a atuação crítica do professor, nessa medida, insubstituível, do que é prova o lugar que ocupa na memória afetiva de cada um de nós.

Luiz Sergio Fernandes de Souza

Luiz Sergio Fernandes de Souza

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC/SP, Mestre e Doutor em Direito pela USP, escritor, é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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