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Introdução
Em primeiro lugar, não há como escrever um artigo sobre cinema e cultura neste momento sem parabenizar o histórico globo de ouro de Fernanda Torres em disputadíssima contenda na qual haviam nomes muito conhecidos pelo público brasileiro consumidor de cinema, tais como Angelina Jolie, Nicole Kidman e Tilda Swinton. A inédita estatueta concedida como prêmio de melhor atriz em filme de drama se deu por uma brilhante atuação em “Ainda Estou Aqui” de Walter Salles e isto é motivo de muito orgulho para o nosso país.
Mas infelizmente não vivemos somente de festejar. Celebremos, mas sem tirar os pés do chão e com os olhos voltados para a nossa realidade.
Após escrever alguns artigos ao longo destes últimos anos a respeito do vídeo por demanda, tributação da Condecine, combate à pirataria e das operações de isenção fiscal no audiovisual e novas tecnologias de mídia, bem como publicar dois livros a sobre o assunto, sempre procurei abordar mais os aspectos técnicos e argumentativos enfatizando algumas irregularidades jurídicas voltadas para o Direito constitucional-tributário. Mas ainda faltava escrever sobre o tamanho do problema. Pois já dizia o ditado popular: “o bolso é o órgão mais sensível do corpo humano” e, quando se trata de verba pública, piora porque estamos falando do bolso de todos nós, brasileiros.
Nessa toada, precisamos tratar do passivo tributário do art. 39, X da MP 2.228-1/01 que, infelizmente (e em posição diametralmente oposta ao prêmio de Fernanda Torres), “ainda está aqui” entre nós.
Do funcionamento da operação tributária do art. 39, X
Partindo da explanação acerca do funcionamento da operação tributária do art. 39, X da MP 2.228-1/01, o mecanismo de isenção fiscal condicionada na modalidade de Condecine Remessa tem amparo nos arts. 32, parágrafo único, e 33, §2º da MP 2.228-1/01 e funciona da seguinte maneira: as programadoras estrangeiras são obrigadas a recolher 11% do valor da remessa ao exterior dos lucros decorrentes da exploração de obra cinematográfica a título de Condecine.
No entanto, como forma de incentivar o cinema nacional, a mesma MP, no seu art. 39, X, faculta a essas programadoras investirem 3% em projetos de produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de longa, média e curta metragens de produção independente, de co-produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de produção independente, de telefilmes, minisséries, documentais, ficcionais, animações e de programas de televisão de caráter educativo e cultural, brasileiros de produção independente, e desde que previamente aprovados pela ANCINE.
Em outras palavras, ao invés de pagar 11% a título de Condecine em seu valor total, a MP estimula o investimento direto no cinema nacional independente, por meio do investimento de 3% da base de cálculo em um projeto de produção brasileira independente, desde que existente (devidamente protocolado na agência) e previamente aprovado pela ANCINE.
A operação de isenção fiscal é bastante vantajosa para o contribuinte, pois além de não ter que recolher o montante equivalente a 11% sobre a remessa dos lucros para o exterior e só ter que dispender de 3% para investir em um projeto brasileiro independente (o que representa uma economia de aproximadamente, 73%1 do valor do tributo). Sem olvidar que o contribuinte ainda pode se valer do investimento para obtenção do montante de até 49% dos direitos patrimoniais sobre a obra audiovisual – o equity – que fora objeto do respectivo aporte pelo contribuinte2. Isto denota a possibilidade de o investidor obter o direito de perceber a remuneração advinda da exploração econômica da obra, bem como do licenciamento de produtos derivados.
Cabe ainda realçar que esse procedimento deve ocorrer dentro do prazo de 270 dias, em respeito ao parágrafo 3º do art. 39 da MP 2.228-1/01, caso contrário destinar-se-ão ao FNC e serão alocados em categoria de programação específica denominada fundo setorial do audiovisual.
Contudo, quando se oferece uma facilidade, existe sempre o risco de tentarem levar mais do que foi concedido. Em termos mais simples, no jargão da sabedoria popular: “quando se dá a mão, já querem o braço inteiro”.
Não raramente, mecanismos inicialmente bem-intencionados de incentivo fiscal acabam sendo utilizados de forma oportunista, levando a distorções que comprometem a eficácia do sistema e geram prejuízos para o erário. Esse é exatamente o caso em análise: o que era para ser um mecanismo de incentivo e desenvolvimento do cinema nacional acabou, em muitos casos, se tornando uma estratégia de evasão fiscal, na qual o foco principal não é o apoio ao setor audiovisual, mas sim a maximização dos lucros empresariais.
Das irregularidades e o mau uso do art. 39, X da MP 2.228-1/01: Como se construiu o passivo tributário da Condecine remessa na cultura
Imagine-se que a base de recursos tributáveis com fundamento no art. 32 parágrafo único da MP 2.228-1/01 seja de 100 milhões de reais em remessas para o exterior. De acordo com o fluxo natural de tributação, o contribuinte deverá recolher a alíquota de 11%, ou seja, R$ 11 milhões de reais a título de Condecine Remessa que serão destinados ao FSA, recolhendo-se primeiro 30% de DRU3 (3 milhões e 300 mil reais).
De conseguinte, ao FSA – Fundo Setorial do Audiovisual, seriam destinados 7 milhões e 700 mil reais, que serão aplicados em projetos audiovisuais por seleção pública e que podem ter como licenciadores até mesmo concorrentes do contribuinte original ou mesmo emissoras de televisão pública, estatal ou comunitária – eles podem ser aplicados em infraestrutura, capacitação, projetos para cinema, televisão ou outras mídias. Esse seria o fluxo de tributação normal, ordinário.
Por outro lado, caso a programadora opte por fazer uso do mecanismo de isenção fiscal condicionada, previsto no art. 39, X da MP 2.228-1/01, ao invés de recolher o tributo na alíquota de 11% sobre o valor da remessa, esta irá investir 3% sobre o valor que seria remetido ao exterior (total de 3 milhões de reais) em projetos audiovisuais de produção independente. Assim, além de gerar conteúdo para incluir na sua própria grade de programação ou estoque via plataformas de streaming, também passará a ser detentora de até 49% sobre os direitos patrimoniais da obra.
Dito de outro modo, utilizando-se do mecanismo de isenção fiscal condicionada, a programadora adquire conteúdo sem despender de seus recursos próprios, mediante a utilização de recursos públicos. Além disso, a referida programadora se rentabiliza na condição de investidor. Além disso, há também a economia significativa de, aproximadamente, 73% do valor integral do tributo devido, ou seja, 8 milhões de reais no caso hipotético, que seria o valor remanescente (do) recolhimento com base na alíquota de 11% aposta no art. 32 parágrafo único da MP 2.228-1/01.
Assim, a programadora teria um prazo de 270 dias para realizar o aporte dos recursos no projeto, na forma do § 3º do art. 39 da MP 2.228-1/01. Caso contrário, os 3 milhões de reais serão destinados ao Fundo Setorial do Audiovisual.
Agora imaginemos que esse “projeto” produzido por produtora brasileira o qual deveria ser previamente aprovado pela ANCINE jamais tenha sido protocolado na agência, em outras palavras que ele seja um projeto inexistente, ou seja, fantasma. De modo que as condicionantes da isenção fiscal sequer tenham sido preenchidas.
E, ainda, com o fito de conferir ainda mais sofisticação ao exemplo, poder-se-ia cogitar de que se tenha burlado o prazo de 270 dias, de modo que a cada vez que o período estivesse perto de chegar ao final, fosse pleiteado uma “realocação” do investimento para um outro projeto na tentativa de “zerar” a contagem do prazo, ou seja, vários simulacros, até se alcançar um projeto existente, protocolado e previamente aprovado, que fosse entregue ao final.
Primeiramente, caso demonstrado um comportamento malicioso por parte do contribuinte no intuito de realizar o depósito voltado apenas para economia tributária de, aproximadamente, 73%, sem preocupação com a aplicação efetiva em uma obra produzida por produtora brasileira independente, parece clara a não configuração da norma isentiva do art. 39, X da MP 2.228-1/01. Nesse mesmo sentido é o disposto no art. 27, § 1º da IN SRF 267/02, que deixa irrefutável que os projetos realizados com recursos da isenção de que trata no art. 39, inciso X da MP 2.228-1/01 devem ser previamente aprovados pela ANCINE.
A partir desse conjunto de informações, cabe à Secretaria da Receita Federal, com fundamento no art. 38, inciso I da MP 2.228-1/01, deve cobrar o recolhimento integral do tributo na hipótese sob alíquota de 11%, desconsiderando integralmente o investimento de 3º na obra fantasma, haja vista que pela natureza condicionada da isenção, o mero depósito dos valores não é suficiente para expurgar a necessidade de recolhimento integral do tributo. Caso contrário, a Condecine Remessa prevista no parágrafo único do art. 32 da MP 2.228-1/01 se tornaria letra morta, havendo, assim, uma subversão completa da finalidade da Cide de atuar na correção e no fomento ao mercado audiovisual, trazendo possivelmente uma desventurada concentração de recursos públicos em prol de determinadas empresas.
Contas na mesa: Qual é o tamanho do passivo tributário do art. 39, X da MP 2.228-1/01?
De acordo com o relatório de auditoria Interna cujas impressões foram publicadas na imprensa, foram identificados problemas na captação de, ao menos, R$ 200 milhões em projetos, e indicou evasão fiscal na ordem de R$ 157,7 milhões. Cita a referida matéria que “dos 64 projetos com irregularidade, em 47 os recursos foram aplicados antes que o esboço da obra fosse aprovado ou submetido à análise. Outros 17 tiveram recursos aplicados após o prazo legal de 270 dias”4.
Mas acontece que esses números publicados na imprensa precisam ser melhor explicados e devidamente relacionados com as explanações constantes nos tópicos anteriores, o que será fundamental para termos uma noção do tamanho do rombo. Essas duas informações que foram reunidas precisam ser tratadas separadamente.
Dessa maneira, vale mencionar que esse valor de 157,7 milhões de reais é oriundo de uma série de recolhimentos feitos à menor pelos contribuintes ao utilizar o mecanismo da isenção fiscal condicionada do art. 39, X da MP 2.228-1/01. Portanto, a título meramente exemplificativo, tal como se verifica na planilha esposada no livro “Condecine e Poder Regulamentar”(págs. 63 e 64) extraída de dados públicos obtidos por intermédio da LAI – Lei de Acesso à Informação, houve casos de remessa no montante de R$ 98.084.666,67 (noventa e oito milhões oitenta e quatro mil seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e sete centavos), em que o recolhimento de 3% deveria ter sido na quantia de R$ 2.942.540,00 (dois milhões novecentos e quarenta e dois mil quinhentos e quarenta reais), mas alguns “zeros foram suprimidos” e totalizaram o recolhimento efetivo no mísero montante de R$ 2.942,54 (dois mil novecentos e quarenta e dois reais e cinquenta e quatro centavos).
Tendo isso em mente, além do fato de que esse montante de quase 158 milhões de reais diz respeito aos recolhimentos à menor que devem ser devidamente integralizados, mas com base nisso, já dá para imaginar que o volume de evasão fiscal oriundo da operação dos simulacros (filmes fantasmas) é muito maior.
Partindo da premissa adotada no tópico anterior e considerando que o recolhimento tributário deve ser realizado em sua integralidade, uma vez que a condicionante da isenção fiscal não fora realizada, é de se ressaltar que o recolhimento não deve ser mais de 3%, mas sim de 11% (alíquota cheia).
Dessa maneira, caso uma programadora faça uma remessa no montante de 100 milhões de reais e aponte um projeto inexistente ou fantasma como condicionante para a obtenção da isenção fiscal, ela perde o direito de recolher 3% (como forma de investimento) e passa a ter que pagar 11% (alíquota cheia) a título de tributo, devendo ser devidamente cobrada desses 3 milhões acrescido de juros, multa e da penalidade administrativa pela evasão fiscal.
Aí é que nos importa a segunda parte da informação jornalística para estimarmos o valor da evasão fiscal. Pois a matéria aduz que: “dos 64 projetos com irregularidade, em 47 os recursos foram aplicados antes que o esboço da obra fosse aprovado ou submetido à análise. Outros 17 tiveram recursos aplicados após o prazo legal de 270 dias”. Ou seja, 64 projetos irregulares macularam os procedimentos de obtenção de isenção condicionada por parte da programadora. Nesse sentido, deve ser buscado, tal como no exemplo anterior, não somente a complementação dos 3% como no caso do recolhimento à menor, mas o valor cheio dos 11% pela ausência do preenchimento das condicionantes da isenção fiscal. Esse dado deve ser observado com o comentário constante no próprio relatório de auditoria (pág. 19), no sentido de que foram identificados 47 projetos audiovisuais em que a aplicação de, ao menos, parte dos recursos foi feita pela investidora/programadora antes que o projeto audiovisual estivesse aprovado na ANCINE. Tal número corresponde a cerca de 25% do total de projetos analisados. Ou seja, foram detectadas irregularidades em 25% dos projetos constantes nas amostras auditadas.
Diante do exposto, já é possível imaginar a evasão fiscal enorme, pois conforme apontado no relatório de auditoria, a cada 4 projetos analisados, 1 deles estava irregular e, ainda de acordo com a tabela da página 16 do relatório, a soma dos valores remetidos ao exterior nos anos apurados de 2013 a 2017 foi de R$ 17.136.437.463,80 (dezessete bilhões cento e trinta e seis milhões quatrocentos e trinta e sete mil quatrocentos e sessenta e três reais e oitenta centavos).
E agora, este escritor já cansado, deixa para o leitor a tarefa derradeira de realizar o cálculo final dessa estimativa com base na verificação de irregularidades em 25% dos projetos analisados e da necessidade de recolhimento de 11% sobre o valor da remessa, isso sem olvidar, juros, multa, correção monetária e as penalidades administrativas em razão do ato de evasão fiscal.
Quem conseguir calcular e cobrar esses valores merece até um prêmio por salvar os recursos do cinema brasileiro, preterindo milhares de artistas, produtores, diretores, realizadores, roteiristas, animadores, funcionários, entre outros, de poder exercer seu trabalho e mostrar o talento brasileiro para o mundo.
Viva o cinema nacional, viva Fernanda Torres e um viva para o futuro salvador dos recursos públicos da cultura (que “já está aqui” entre nós)!
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1 Neste aspecto, o valor depositado na conta de recolhimento do projeto referente a 3% equivale, mais precisamente, a 27,272727…% do valor total do tributo que seria recolhido sob a alíquota cheia de 11%. A economia de 73% foi resultado de um arredondamento, porquanto o número preciso seria 72,7272…%.
2 Consoante disposto no art. 1º, IV da MP 2.228-1/2001, as obras cinematográfica e videofonográfica de produção independente que são passíveis de obtenção de recursos públicos – incluindo aqueles oriundos de renúncia de receita (isenção fiscal) – são aquelas cuja empresa produtora, detentora majoritária dos direitos patrimoniais sobre as obras, não tenha qualquer associação ou vínculo, direto ou indireto, com empresas de serviços de radiodifusão de sons e imagens ou com operadoras de comunicação eletrônica de massa por assinatura. Desse modo, para que seja detentora majoritária dos direitos patrimoniais de alguma obra, (falta um sujeito) deve ter no mínimo 51% sobre os direitos patrimoniais dela.
3 A Desvinculação de Receitas da União – DRU é um mecanismo que permite ao governo federal dispor de um percentual de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. A principal fonte de recursos da DRU são as Contribuições, que correspondem a cerca de 90% do montante desvinculado.
4 BITENCOURT, Rafael. ANCINE Aponta Prejuízos em Fundo do Audiovisual de 350 milhões. Valor Econômico. Publicado em 22/01/2019. Brasília. https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/01/22/ancine-aponta-prejuizos-em-fundo-do-audiovisual-de-r-350-milhoes.ghtml . Acesso em 26 de abril de 2021.
Magno de Aguiar Maranhão Junior
Doutorando em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela UERJ. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela UERJ. Professor da Souza Marques e especialista em Regulação da ANCINE.