Defensoria Pública e(m) processos estruturais   Migalhas
Categories:

Defensoria Pública e(m) processos estruturais – Migalhas

CompartilharComentarSiga-nos noGoogle News A A

Inegavelmente, o Brasil é um país marcado por gigantescas desigualdades e no qual muitos dos ditos “problemas sociais” são estruturais, caracterizando-se então a “vulnerabilidade estrutural” da sociedade, grupos, comunidades e indivíduos nesse cenário. Essa constatação, provavelmente, é um dos mais importantes pontos-de-partida dos debates realizados no recente “I Encontro Nacional de Capacitação da Defensoria Pública sobre Litígios e Processos Estruturais” da ANADEP.

Em tal contexto, a Defensoria Pública brasileira está intimamente conectada às necessidades sociais e aos direitos humanos (art. 134, CRFB/88). Por isso, a instituição de defesa pública deve assumir protagonismo cooperativo e “horizontal-emancipatório”1 nos debates sobre questões estruturais2 tanto no campo judicial, quanto extrajudicialmente, inclusive servindo como “ponte” entre os litígios individuais e coletivos. Nesses conflitos, o “Estado Defensor” atuará como legítimo “fiel da balança” conectada ao “Microssistema de Proteção das Pessoas Vulneráveis” em prol dos mais fragilizados.

Em outras palavras, diante de processos estruturais, a Defensoria Pública deve ser obrigatoriamente intimada e consultada acerca de seu interesse nas causas impactantes sobre os direitos humanos e as coletividades necessitadas – trata-se de lógica semelhante às conclusões do enunciado 953 da “I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais” do CJF – Conselho de Justiça Federal e à posição do STJ no REsp 1.854.842/CE4.

Por outro lado, tal conclusão é também um reflexo imediato da essencialidade institucional da Defensoria Pública, pois tal intimação viabiliza a análise da própria Defensoria sobre as possíveis atuações necessárias para fins de obstar a antidemocrática sub-representatividade de coletivos vulneráveis. Aí então entrarão em cena posições processuais peculiares e incipientes como o “defensor público do grupo”5 ou o “amigo da comunidade”6, as quais devem conferir maior protagonismo e autonomia jurídica aos grupos vulneráveis. Ou seja, enquanto “expressão e instrumento do regime democrático”, a Defensoria Pública – um “megafone”7 dos necessitados -, deve garantir as “falas” e a “escuta” a todos os grupos vulneráveis até então em exclusão social, política e jurídica.

Outrossim, especialmente diante do fenômeno da despolarização8 e dinamicidade9 das relações processuais, dentre as plurais formas de atuação10 da Defensoria Pública, é importante que a instituição calcule, estrategicamente11, a necessidade de emprestar o “peso” de sua presença institucional enquanto Custos Vulnerabilis12, para intervir nas causas também em tal condição. Com efeito, Cássio Scarpinella Bueno13 explicou que a manifestação Custos Vulnerabilis é “fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser negada a qualquer título”, sendo “irrecusável” para a “construção de uma decisão mais democrática”.

Noutro passo, no CJF também se vê a concepção de oitiva essencial da Defensoria Pública enquanto “Custos Vulnerabilis” – pois o enunciado 169 da “III Jornada de Direito Processual Civil” do CJF ressaltou: “A Defensoria Pública pode ser admitida como custos vulnerabilis sempre que do julgamento puder resultar formação de precedente com impacto potencial no direito de pessoas necessitadas”. Não por outro motivo, o ministro Edson Fachin (ADPF 635/RJ, j. 25/10/24) admitiu a intervenção da DP/RJ – Defensoria Pública do Rio de Janeiro em processo de matriz estrutural versando sobre violência policial.

Por fim, um ponto de sensibilidade necessária ocorre diante da colisão de interesses entre comunidades vulneráveis, na qual surge um peculiar interesse institucional14 da Defensoria Pública15. Em casos tais, além de se garantir a atuação por intermédio de um defensor público do grupo (um representante postulatório), é relevante que a essencialidade institucional também se manifeste como Custos Vulnerabilis a fim de ponderar16 a referida colisão para apresentar uma proposta de solução jurídica que maximize os ganhos e minimize as perdas dos grupos vulneráveis envolvidos.

Por conseguinte, a posição exposta acima é importante não somente por diferenciar os papéis processuais quanto aos representantes postulatórios das comunidades vulneráveis, como também para permitir uma atuação mais impessoal e livre, à luz da ordem jurídica, para o Ministério Público interveniente que, ao contrário do “Estado Defensor”, não é obrigado a tomar para si a posição dos vulneráveis, podendo ser inclusive contrário17 – como já definiu o STJ, por exemplo, nos caso de pessoas incapazes (REsp 135.744/SP19). Aliás, as intervenções institucionais “Custos Iuris” e “Custos Vulnerabilis” devem conviver em caráter democrático, cooperativo, de não-exclusividade20 e sem sobreposição, permitindo-se a colheita das plurais visões institucionais acerca dos conflitos.

Em síntese, algumas conclusões podem ser lançadas através dos seguintes enunciados conclusivos:

  • É obrigatória intimação da Defensoria Pública em casos de processos estruturais frente à vulnerabilidade estrutural potencialmente impactante sobre os necessitados e os direitos humanos, à luz do art. 134 da CF e a LC 80/94 (art. 4º, XI).
  • A partir da intimação, a Defensoria Pública, com seu poder de agenda e autonomia institucional, definirá as posições processuais a serem assumidas processualmente, tudo à luz das normas e da avaliação da melhor estratégia possível para efetivar a proteção dos interesses dos segmentos vulneráveis e dos direitos humanos impactados.
  • Em caso de colisão de comunidades vulneráveis, a Defensoria Pública, enquanto instrumento de combate à sub-representatividade, deve zelar para que todos os interesses comunitários e de grupos em situação de vulnerabilidade sejam representados adequadamente no processo.
  • Sem prejuízo da atuação de representação postulatória do(a) defensor(a) público(a) do grupo vulnerável, a Defensoria Pública poderá intervir institucionalmente enquanto Custos Vulnerabilis ou ainda em outra posição processual estrategicamente definida para conferir a máxima proteção aos direitos humanos dos grupos e indivíduos vulneráveis.
  • Diante da colisão de interesses entre grupos ou comunidades vulneráveis merecedores da atenção da Defensoria Pública, a intervenção institucional Custos Vulnerabilis deverá, preferencialmente, apresentar manifestação de ponderação contendo proposta jurídica que maximize os ganhos e minimize as perdas de todos os segmentos vulnerabilizados envolvidos.
  • Enfim, com o início da caminhada do (ante)projeto da “Lei dos Processos Estruturais”, essa jovem e ilustre “desconhecida” instituição chamada Defensoria Pública será desafiada, cada vez mais, a aprender e ensinar sobre a sua tão singular missão de ser “instrumento e expressão do regime democrático” a partir da CF e do(s) cotidiano(s) de vulnerabilização.

    ___________

    1 KETTERMANN, Patrícia. Defensoria Pública. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 58 e 78.

    2 BAMBIRRA, Tâmara Brant. A Defensoria Pública como Custos Vulnerabilis em demandas estruturais coletivas: uma análise da atuação da Defensoria Pública em litígios estruturais sobre políticas públicas envolvendo Direitos Fundamentais. Itaúna (MG): Universidade de Itaúna, 2022. Dissertação de Mestrado

    3 Enunciado 95: “Nos litígios estruturais ambientais ou climáticos, caberá ao Poder Judiciário comunicar à Defensoria Pública quando o conflito envolver indivíduos, grupos e comunidades em situação de vulnerabilidade.” (“I Jornada Jurídica de Prevenção e Gerenciamento de Crises Ambientais” – CJF, 2024, g.n.)

    4 STJ, REsp n. 1.854.842/CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 2/6/2020, DJe 4/6/2020.

    5 ZANETI JÚNIOR, Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. A Defensoria Pública e os grupos vulneráveis em colisão de interesses: reflexões sobre o “defensor público do grupo” (Defensor Publicus Coetus). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1070, Dez 2024, p. 47-85.

    6 A expressão “Amicus Communitas” ligada à Defensoria Pública foi cunhada por Daniel Gerhard (UFAM): GERHARD, Daniel. CASAS MAIA, Maurilio. O Defensor-hermes, o amicus communitas: a representação democrática dos necessitados de inclusão discursiva. Informativo Jurídico In Consulex, Brasília, v. 22, p. 11-12, 1º jun. 2015.

    7 FRANCO, Glauce Mendes. MAGNO, Patrícia. (Org.) I relatório nacional de atuação em prol de pessoas e/ou grupos em condição de vulnerabilidade. Brasília: ANADEP, 2015, p. 37.

    8 CABRAL, Antônio do Passo. Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre polos da demanda. In: DIDIER JR., Fredie (Org.) Reconstruindo a teoria geral do processo. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 133-192.

    9 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 26. ed. Salvador: JusPodivm, 2024. v. 1. p. 481-485

    10 Sobre a relação entre dinamicidade das posições processuais e Defensoria Pública: Casas Maia, Maurilio. A Intervenção de Terceiro da Defensoria Pública nas Ações Possessórias Multitudinárias do NCPC: Colisão de interesses (Art. 4º-A, V, LC n. 80/1994) e Posições processuais dinâmicas. In: Didier Jr., Fredie. Macêdo, Lucas Buril de. Peixoto, Ravi. Freire, Alexandre. (Org.). Doutrina Selecionada: Parte geral. V. 1. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2016, 1.255-1256.

    11 Sobre a judicialização estratégica de ações estruturais em prol de grupos vulneráveis, conferir o recente texto: FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. A judicialização estratégica de ações estruturais como forma de proteção a direitos fundamentais de grupos vulneráveis. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 239, Jan.- Fev. 2025.

    12 Referencias originárias: CASAS MAIA, Maurilio. Custos Vulnerabilis constitucional: o Estado defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 417, p. 55-57, jun. 2014; CASAS MAIA, Maurilio. Luigi Ferrajoli e o Estado defensor enquanto magistratura postulante e Custos Vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 425, p. 56-58, out. 2014.

    13 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 218.

    14 Sobre o Tema interesse institucional e intervenção de terceiros (Amicus Curiae), vale conferir: Bueno, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 459 ss.

    15 Sobre interesse institucional e intervenção da Defensoria Pública: (1) Casas Maia, Maurilio. A Intervenção de Terceiro da Defensoria Pública nas Ações Possessórias Multitudinárias do NCPC: Colisão de interesses (Art. 4º-A, V, LC n. 80/1994) e Posições processuais dinâmicas. In: Didier Jr., Fredie. Macêdo, Lucas Buril de. Peixoto, Ravi. Freire, Alexandre. (Org.). Doutrina Selecionada: Parte geral. V. 1. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2016, 1.255-1256; (2) Reis, Gustavo. Junqueira, Gustavo. Zveibil, Daniel. Comentários à Lei da Defensoria Pública. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 295-297.

    16 Adotando originariamente tal posição: CASAS MAIA, Maurilio. Legitimidades institucionais no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) no Direito do Consumidor: Ministério Público e Defensoria Pública: similitudes e distinções, ordem e progresso. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 986, p. 27-61, Dez-2017.

    17 Vale conferir a visão eclética de Zaneti Jr., para quem a manifestação contrária ao incapaz somente poderia se efetivar quando existir uma causa autônoma de intervenção para além da incapacidade: ZANETI JR., Hermes. O Ministério Público e o novo Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 192.

    18 STJ, REsp 135.744/SP, Rel. Min. BARROS MONTEIRO, T4, j. 24/6/2003, DJ 22/9/2003, p. 327.

    19 CASAS MAIA, Maurilio. As intervenções constitucionais do Ministério Público (Custos Iuris) e da Defensoria Pública (Custos Vulnerabilis) no microssistema processual de proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade: concorrência e não exclusividade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1.071, Jan. 2025.

    Maurilio Casas Maia

    Maurilio Casas Maia

    Professor (UFAM) e Defensor Público (DPAM). Pós-Doutor em “Direito Processual” (UFES). Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB).

    Leave a Reply

    Your email address will not be published. Required fields are marked *